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quarta-feira, 25 de março de 2020

Não, não foi um jogo para meninos

"Foi, na altura, a maior receita de um espectáculo de beneficência até aí realizado no Reino Unido. O Benfica foi a Glasgow bater-se com o Celtic num jogo magnífico que valeu todos os elogios da imprensa britânica.

Curioso número: o três. Pelo menos no que diz respeito a jogos entre Benfica e Celtic. Ora, reparem: Taça dos Campeões, 1969-70 - Celtic 3-0 Benfica; Benfica 3 - 0 Celtic (depois passaram os escoceses graças àquele embirrento sistema da moeda ao ar); Liga dos Campeões 2006-07  Celtic 3 - 0 Benfica; Benfica 3 - 0 Celtic... Verdade que já se encontraram depois disso, e o resultado abracadabrante não se repetiu. Ainda assim: curioso número. Mas o assunto não se fica por aqui.
No dia 12 de Dezembro de 1974, em Glasgow, a UNICEF concluiu uma gala de recolha de fundos para crianças desvalidas com um espectáculo que prometia: Celtic-Benfica.
Prometia e cumpriu.
Estava um troféu em disputa: a Children's Cup, oferecida por um fidalgo escocês. Uma taça de categoria que, diga-se já aqui, o Benfica trouxe para Lisboa.
Uma desilusão, no entanto percorria Celtic Park: Eusébio, a contas com mais um dos seus problemas joelhos, não viajou para a Escócia. Aos 32 anos ainda o povo suspirava por ele... Infelizmente, muitos adversários inimputáveis arruinaram-lhe o resto da carreira.
Faz frio em Glasgow, em Dezembro no ano inteiro. Sei-o bem, já lá estive várias vezes.
Fazia frio em Dezembro de 1974, mas os adeptos não viraram as costas ao jogo. Mais de 30 mil pessoas arrostaram a noite gelada.
Fizeram bem. Assistiram a um desafio electrizante.
À velocidade da luz
O início do Benfica desenrolou-se, para aí, a uns trezentos mil quilómetros por segundo, que é, como sabem, a velocidade da luz.
'The Mighty Benfica!', anunciara a imprensa britânica, orgulhosa da presença encarnada.
Cruyff tinha sido convidado para reforçar o Celtic. Aceitaria, bem como o Ajax, seu clube. Uma lesão de última hora tirou-o da festa. Tal como aconteceu com Pelé, que fora uma das hipóteses em cima da mesa. Tentativas frustradas de colmatar a ausência de Eusébio.
Aos 10 minutos, o Benfica já estava a ganhar por 2-0.
As bancadas vibravam, plenas de olhos esbugalhados.
Móia era o homem do momento. Com o apoio de Simões, Nené e Ibraim, surgira por duas vezes na cara de Hunter e não falhara. O primeiro golo foi logo na jogada inicial da partida.
Os escoceses rebelaram-se. Caíram sobre a defesa lusitana, atarraxaram os parafusos a Humberto Coelho e Messias, obrigaram Vítor Martins a recuar cada vez mais até que este, aos 37 minutos, cometeu falta sobre Wilson, que tinha recebido um passe soberbo de um jovem claramente em ascensão. O seu nome? Kenny Dalglish! Com ponto de exclamação.
Penálti! McCluskey enganou José Henrique: 1-2.
Seria o resultado do primeiro tempo.
Com o recomeço, a correlação de forças alterou-se: o Celtic tornou-se ameaçador. Forçou o ritmo, o público levou a equipa ao colo até ao golo do empate, apontado aos 49 minutos por Johnstone, que se escapou a Artur e rematou rasteiro, venenoso. Pouco depois, surgiu o 3-2. Glavin, aos 67.
Nené chateou-se. No minuto seguinte, arrancou logo à entrada do meio-campo escocês e foi por ali fora, correndo como um garoto em busca de papoilas num campo de gipsófila, vergando adversários como vimes com o poder da sua rapidez, chutando para um canto inacessível aos esforços de Hunter.
Valera a pena o dinheiro pago pelo bilhete.
Nunca no Reino Unido um espectáculo de beneficência obtivera bilheteira tão valente: mais de 20 mil libras esterlinas.
De um lado e do outro, os movimentos finais foram agressivos. Ambas as equipas quiseram ganhar, todos os jogadores fizeram por isso. Mas o empate não se desfez.
Tal como tinha sido antecipadamente estabelecido, o troféu ficaria agora nas mãos de quem soubesse ter a arte de triunfar nas grandes penalidades.
Irrepreensíveis, os jogadores encarnados: Vítor Baptista, Nené, Vítor Martins, Humberto Coelho...
Respondiam os do Celtic: McCluskey, McDomald, Wilson, Johnstone...
Depois, McNeill viu Zé Gato desviar a bola só com um olhar felino.
E Toni resolveu o assunto.
'No child's play!', escreveu Hugh Taylor no Herald do dia seguinte. Um trocadilho com pilhéria. E acertado, apesar da UNICEF, não foi um jogo para meninos. 'Benfica, those portugueses nem of war, may had been frozen to the marrow in more northern latitudes, but they went on to win, honourably and entertainingly!'
Uma vénia para os que souberam vencer com honra, encantando espectadores exigentes.
Glasgow é cidade onde se respeita o futebol de categoria."

Afonso de Melo, in O Benfica

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