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terça-feira, 25 de junho de 2024

A qualidade de Bernardo Silva, o inquantificável


"Talvez o eterno Pepe e os seus jovens 41 anos que se encheram de cortes certeiros, posicionamentos impecáveis e interceções espertas também merecessem, mas, além de abrir o caminho da vitória com o primeiro golo, Bernardo mostrou, durante 90 minutos, que a sua valia tem de ser vista e não caçada nos números: o pequeno grande jogador de Portugal jogou, fez jogar e pincelou o relvado com toques discretos, mas fundamentais.

Há quem tenha alergia a que se usem termos futebolísticos nestas paragens e fujam de overlaps, da profundidade, do “jogo interior” e de underlaps normalmente enquanto acenam que não é suposto pegar nestas denominações mais técnicas que são usadas por quem trabalha no futebol, e com sentido, porque, às vezes, precisam de ser descascadas. Então: quando, aos 22 minutos e pela primeira vez no Portugal-Turquia, o embalado Nuno Mendes se desmarcou por dentro de Rafael Leão, que tinha à bola encostado à linha, ou seja, entre ele e a baliza, deu-se o underlap que chocalhou as fundações defensivas do adversário e proporcionou o acontecimento onde pretendo chegar.
O lateral esquerdo da seleção cruzou rasteiro e para trás, astuto a explorar o contra-movimento dos aflitos defesas turcos e fiel ao olhar de esguelha com que já teria visto Bernardo Silva, a chegar à área vindo da direita. A bola a que Ronaldo tentou e, felizmente, não chegou, travou conhecimento com o pé esquerdo de Bernardo para o primeiro golo e já que começámos por termos e expressões, prossigamos nesse reino onde pouco antes de a partida arrancar, no buraco negro sem fundo que são os grupos de WhatsApp, recebi uma curiosa, seguida de uma frase:
Foram “zerardo” e “um gajo com zero números em competições grandes tem é de sentar”.
Ambas visaram o marcador do golo. Salientar que a troça do autor visou Bernardo Silva enviesadamente será um eufemismo quando ele não se trata de um jogador quantificável, nenhum é, no fundo, mas há bastantes em quem os números habitam sem fim quando é um caso de proliferação de golos, quando Bernardo encostou o pé à bola já descrita um desses jogadores era traído pela relva, Cristiano tropeçou, caiu e enrolou-se na relva e ele tem 39 anos, fez o 208.º jogo pela seleção, leva 130 golos, 15 marcados em seis Europeus onde já deu sete assistências (36 ao todo), a mais recente seria neste Portugal-Turquia que o elevou também a ser o tipo que mais golos deu no torneio. E estaríamos aqui a escrever páginas se o tónico fosse versar sobre quantificação do capitão da seleção.
Mas não foi ele o luminoso farol que forneceu a calma quando Portugal a procurou nos momentos em que os turcos, esbaforidos na primeira parte, pressionaram no embalo da euforia, a caírem em referências individuais e marcações ao homem, e, na segunda, correram desnorteados atrás do prejuízo e, cedo descobririam, de várias sombras. Os espaços escancarados pela urgência da Turquia foram água para boca no jogo de Bernardo, a par de acertos posicionais na seleção nacional que como azeite nessa mesma água, o fizeram sobressair.
No hemisfério inicial, Portugal teve a sua fidelidade à romaria de João Cancelo por terrenos interiores, ele um falso lateral a ir pedir bola como um médio, ao centro, deixando Bernardo colado à faixa onde restringiu as suas receções graciosas e os toques repelentes de perdas de bola. Cruzando o equador do jogo, o canhoto estatelou-se no conforto que mais o beneficia.
Fazendo Cancelo um reset às suas definições, ficando mais na lateral direita, Bernardo Silva dedicou-se a deambular livremente, mostrando o seu pé-cola por fora, por dentro, perto de Ronaldo, longe da linha, a cutucar segredos com Bruno Fernandes, a multiplicar combinações sem pensar com o João que tinha do seu lado porque com eles dispostos assim o pensamento é acessório, a síncrona genialidade em parelha é que manda ali.
O saber dar o passe necessário no momento preciso, com a força ideal, em zonas onde os molares mastigam o jogo e os caninos dos adversários tentam cortar intenções é a dentuça predileta de Bernardo. Para o último passe a rasgar houve Bruno Fernandes, na organização dos primeiros passes para se abandonar a área existe Vitinha, quem tem o 10 estampado na camisola pisa, sem problemas, essas duas dimensões, mas é num jogo como este foi, a deixá-lo pisar todos esses terrenos quando o seu radar convier, que o seu brilho é mais reluzente.
E Bernardo lançaria Cancelo na linha de fundo, Bernardo desmarcou-se que nem punhal espetado no coração da área para quase chegar a um passe de Bruno a isolá-lo, Bernardo conduziu uma jogada depois em que fixou o adversário, soltou, correu, recebeu um singelo passe de Ronaldo que a sua movimentação pediu e quase marcou com um remate mascarado de passe à baliza, típico de quem dispensa a força por ter tanto jeito. “Zerardo” a jogar e a gerar jogo, basta que a seleção o rodeie com jogadores e lhe dê a bola.
Dizer que Bernardo Silva foi o melhor de Portugal contra a Turquia é usar um adjetivo insuficiente para o qualificar num texto que dispensou os números para vocês perceberem a ideia. O pequeno enorme futebolista, conceda-se lembrar o 2 e o 9 que tem na idade, nunca marcara ou assistira em fases finais pela seleção nacional e quem consome a bola apenas com as lunetas das estatísticas a filtrar a vista encostou-se nessa evidência após o jogo com a Chéquia. Foram precisos poucos dias passarem para Bernardo encher o campo dele próprio, sem números, porque ele não é quantificável."

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