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quinta-feira, 18 de outubro de 2018

O sexto continente e a nação-internet

"Estão em marcha alterações culturais e civilizacionais de grande amplitude que apenas aguardam uma oportunidade para explodir à superfície.

A internet, pela sua dimensão e projecção, é uma espécie de sexto continente, mas, como sempre, constituído por sub-regiões muito heterogéneas. No início afirmou-se o mito libertário da internet, uma “internet primordial” ao serviço dos cidadãos, de uma sociedade interpares e dos seus bens comuns colaborativos. Porém, muito rapidamente, assistimos à emergência de uma internet das grandes plataformas tecnológicas ao serviço do hipercapitalismo e dos grandes predadores que exploram os chamados “mercados biface”, mercados livres para os cidadãos utilizadores, mas pagos para aqueles que aí desejam anunciar os seus produtos e serviços. À nação-internet falta, digamos, uma “classe média digital” para democratizar o sexto continente.

A grande bifurcação da nação-internet
Neste momento a nação-internet passa por uma grande bifurcação. De um lado, a multidão, os cidadãos utilizadores, cidadãos anónimos e inocentes que aceitaram uma servidão voluntária e foram capturados por um número crescente de dispositivos tecnológicos, de outro, os gigantes tecnológicos administrando uma imensa economia das multidões e gerando lucros monumentais que canalizam para paraísos fiscais e sociedades offshores. Meio século depois, o mito libertário da internet já se esfumou. O problema hoje – que na sua essência é um problema de extra-territorialidade e repartição do poder - reside em saber, em primeiro lugar, como regular estes mercados biface emergentes em benefício das sociedades e dos seus cidadãos e, em segundo lugar, como regressar a uma internet primordial, bem distribuída, que nos possa conduzir até à sociedade colaborativa, aos ambientes inteligentes e aos bens comuns da humanidade enquanto instrumentos de realização dos direitos fundamentais, se quisermos, uma espécie de nova fronteira para o direito constitucional.
No futuro próximo, a evolução mais interessante dirá respeito às variadas formas de bifurcação da era digital. Entre redes distribuídas e descentralizadas herdeiras de uma internet primordial, colaborativa e cidadã, por um lado, e redes centralizadas ao serviço de um hipercapitalismo das grandes plataformas tecnológicas e empresariais, por outro.
No plano conceptual as redes sociais sempre existiram, o que muda, agora, é a compressão espácio-temporal e a fenomenologia da interacção. Isto é, na era digital estamos a fazer o caminho que nos levará da democracia representativa à democracia participativa e desta à democracia interactiva. Assim, quanto maior for o espaço ocupado pelas redes distribuídas maior será a conectividade e a interactividade entre os cidadãos. A fenomenologia da interacção significa que tudo muda a todo o momento e que as regras prévias que enquadram a representação e a participação não resistem à dinâmica desconstrutiva e reconstrutiva da interacção permanente. No final, a eficácia, a eficiência e a equidade de uma organização social e de uma nação-estado dependerão, em cada momento, do equilíbrio dinâmico entre estas três geografias e geometrias democráticas.
É aqui que nos encontramos hoje, a virtualização da sociedade pelas tecnologias digitais, a saber: a uberização e a plataformização das actividades, a inteligência artificial e a robotização das operações, a smartificação dos ambientes e dos territórios, a pluriatividade e o plurirrendimento dos mercados de trabalho, a emergência de um imenso quarto sector colaborativo e solidário. Todos estes factores de inovação acrescentam realidade à realidade já existente (realidade aumentada), inteligência à inteligência já existente (inteligência artificial) e homem ao homem já existente (homem aumentado).
A bifurcação da era digital significa, ainda, que temos pela frente uma batalha gigantesca, qual seja, a de estreitar o abismo que se abre entre sociedades e territórios com e sem acesso às tecnologias digitais, mas, também, entre sociedades e territórios com e sem humanidade. Em pano de fundo, a mesma matéria-prima e os mesmos transformadores. Falo dos dados infra-pessoais, a nossa pegada digital, e dos seus processadores universais, os algoritmos. É a sociedade algorítmica que chega.
Um longo caminho espera a nação-internet antes de se tornar “independente”. Até lá a nação-internet continuará a ser colonizada pelos grandes conglomerados tecnológicos que usarão e abusarão da sua posição dominante para afirmar o princípio da extra-territorialidade. Nessa trajectória, mais ou menos longa, continuaremos a ser, muito provavelmente, os idiotas úteis dos mercados biface que somos hoje e enquanto os níveis de “adição digital” não baixarem vamos continuar a acreditar que temos acesso directo à realidade e à verdade, sem necessidade de qualquer tipo de intermediação ou representação política, pois tudo o que é necessário já estará nos nossos “menus de aplicações”. 
Muito provavelmente, a próxima colisão desta revolução tecnológica será a propósito das políticas regulatórias para os mercados digitais. Neste sentido, os conglomerados tecnológicos não devem abusar da sua vertente extra-territorial nem subestimar os poderes do estado-administração em lidar com a revolução digital. Se do lado das grandes plataformas se pode falar em “colonização digital”, cuidado, pois do lado dos estados nacionais pode haver a tentação de “balcanização da internet”, isto é, de circunscrever uma internet nacional de acordo com a lei, a idiossincrasia e a cultura nacionais. 
O sexto continente continua a crescer e a deslocar-se. Uma imensa “nuvem virtual” cobre o mundo físico dos restantes continentes. Ninguém pode prever como estes dois universos, físico e virtual, irão coabitar e interagir no próximo futuro. Apenas poderemos dizer que nada ficará como dantes, até mesmo a evolução da nossa própria espécie que, em virtude da crescente hibridação homem-máquina, caminha em direção à imortalidade, seja lá o que isso for.

Os tópicos principais do próximo futuro
Aqui chegados, se quisermos fazer uma ordenação mais conceptual do problema, os principais tópicos de reflexão, agora e no futuro próximo, serão, talvez, os seguintes: - É fundamental manter a porta aberta da utopia que liberta, pois ela continua a ser necessária ao nosso imaginário colectivo para combater a compressão espácio-temporal, isto é, a atopia e a acronia da sociedade automática e algorítmica,
- É fundamental aprofundar as inovações institucionais da democracia colaborativa e interactiva, em ordem à democratização do estado-plataforma que irá chegar em breve e em força, com grande impacto sobre o perímetro político-administrativo e a estratificação social da função pública e da sociedade em geral,
- É fundamental aprofundar os processos regulatórios da economia das plataformas, das mais pequenas e localizadas, que devem ser incentivadas, às mais gigantescas e extra-territoriais que devem ser objecto de controlo rigoroso; aguarda-se que o mercado único digital da união europeia possa ser uma fonte inspiradora nesta matéria,
- É fundamental aprofundar o remix da pluriatividade e do plurirrendimento e rever a estrutura e organização dos mercados de trabalho e emprego; é um imenso campo para dar azo à inteligência e imaginação no que se refere às novas formas de trabalho, emprego e empreendimento em direcção ao chamado “quarto sector”,
- É fundamental incentivar o regresso dos bens comuns e o seu papel na estruturação do “quarto sector” onde se inclui a economia social, solidária, comunitária e colaborativa e, também, a abertura ao rendimento básico universal ou um seu sucedâneo próximo,
- É fundamental aprofundar a transformação digital e a virtualização da sociedade, no sentido de uma economia dos ícones, de uma (i)conomia, e estar muito atento à inversão das cadeias de valor em resultado da incorporação de elementos imateriais e intangíveis desta nova (i)conomia, o que, em si mesmo, é uma oportunidade única para os territórios mais desfavorecidos,
- É fundamental aprofundar a economia do Big Data, as métricas e os procedimentos dos calculadores universais, os algoritmos, e os processos de normalização decorrentes da “governamentalidade algorítmica”, e não esquecendo nunca que eles são uma criação humana que pode ser revertida a qualquer momento,
- Finalmente, é fundamental actualizar a prioridade atribuída aos bens comuns da humanidade, alargar a base dos direitos fundamentais da pessoa humana e colocar no local certo a bioética e a biopolítica em ordem a não inverter os termos da equação entre inteligência humana e inteligência artificial.
Já há, entretanto, muito caminho percorrido. Os bioprogressistas de Sillicon Valley, por via do “solucionismo” tecnológico, apostam tudo na inteligência artificial, nas plataformas digitais e nos ambientes inteligentes da sociedade algorítmica. A realidade ganha, assim, múltiplas dimensões, enquanto o homem e a humanidade caminham para o transumanismo e a pós-humanidade.
Num registo, digamos, mais conservador, o dos valores e limites bioéticos e biopolíticos, constatamos que a sociedade política não tem sido capaz de delimitar os termos do debate público onde esta discussão deve ocorrer. Por um lado, parece adquirido, teremos mais economia das plataformas, a uberização de muitas actividades, o regresso dos bens comuns, a emergência da economia colaborativa e do quarto sector. Por outro lado, porém, estamos sem argumento orientador para algumas trajectórias de ciência-ficção. Talvez o mais inquietante neste caminho seja mesmo tentar perceber até onde um projecto de vida, levado a cabo no horizonte de um tempo longo, pode ser substituído e tomado por uma colecção de episódios e actos de consumo sem guião nem argumento. Por isso perguntamos:
- Vamos continuar a ser os idiotas úteis ao serviço dos mercados biface e dos grandes conglomerados tecnológicos, colocando a nossa pegada digital à sua inteira disposição?
- Vamos ser, cada vez mais, um mero algoritmo orgânico à disposição dos algoritmos inorgânicos de serviço?
- Vamos manter os níveis de “adição digital” e continuar a acreditar que temos acesso directo à realidade e à verdade, sem qualquer tipo de intermediação ou representação política?
- Vamos inventar ou “produzir” a nossa identidade digital, convertê-la num activo pessoal e pô-la a render no universo real e material?
Sabemos como a digitalização da sociedade altera bastante as convencionais categorias da relação social e, portanto, a nossa sociabilidade. A fronteira entre o real e o virtual fará cada vez menos sentido, por isso, a sociedade, nos dias de hoje, é essencialmente um assunto interpretativo (veja-se a pós-verdade e as fake news) e muitos efeitos são não-desejados, não-intencionais e contraintuitivos. Por isso, as novas categorias do social, a sua matéria-prima, são a virtualidade, o risco, a simulação, a dissimulação, a representação. A simulação e a dissimulação não deixam ver o princípio da realidade e a plurissignificação da realidade segrega tanta contingência como liberdade. O universo digital e a cibercultura estão fascinados pela distinção entre autenticidade e simulação e a desordem entre consciência e inteligência passou a ser uma linha vermelha entre algoritmos orgânicos e inorgânicos, um lugar onde se deposita, apesar de tudo, a esperança de uma revelação.

Notas Finais
No quadro da grande transformação digital em curso há um aspecto que é muito perturbador e que coloca em rota de colisão a governação da coisa pública (o governing) e a governamentalidade da sociedade algorítmica. Na linha da desintermediação institucional, o discurso emergente diz-nos que o governo é uma indústria ineficaz, as instituições em geral são caras e preguiçosas e a democracia é cada vez mais desajeitada para lidar com a governação algorítmica. Quer dizer, temos de encontrar rapidamente um novo modo de pensar, de estar e fazer a política, sob pena de sermos reduzidos a uns idiotas úteis da governação algorítmica!!
Nesta sequência, poderíamos dizer que os algoritmos tanto podem ser uma guarda pretoriana de um candidato a ditador, como a guarda avançada de um capitalismo global e predador como, ainda, uma rede distribuída de proximidade ao serviço de uma sociedade mais igual e democrática. Ao ser tudo isto, o algoritmo revela aquilo que nós já sabíamos, isto é, a sua funcionalidade instrumental ao serviço de “homens sem rosto”, que, geralmente, desprezam os limites da política e as responsabilidades públicas que lhe são inerentes.
De facto, estão em marcha alterações culturais e civilizacionais de grande amplitude que apenas aguardam uma oportunidade para explodir à superfície. Eis algumas dessas questões finais que aqui deixo para reflexão:
- O humanismo como singularidade desde o século XVI: que humanismo vamos reabrir para lá dos algoritmos, do Big Data e do dataísmo, ou seja, haverá uma nova espécie humana, novas variedades em construção para lá do nosso algoritmo bioquímico?
- O que fazer com a nossa minúscula ilha de consciência, ou seja, será o pós-humanismo uma transição para outros universos de sentido e de estados mentais?
- Para lá dos modelos matemáticos da sociedade algorítmica, quem são os homens sem rosto que nos governam e qual é o grau de responsabilidade pública e democrática que eles nos devem?
- E sobre a governança da sociedade algorítmica, como é que o pensamento e a acção política lidam com estas novas “corporações do algoritmo, do Big Data e do dataísmo”?
Em síntese final, depois de tanto acaso e necessidade, de tanto determinismo e aleatoriedade, de tanta arte, política e filosofia, estaremos nós reféns da governação algorítmica, seremos nós os novos crentes do dataísmo? E nesta encruzilhada do tempo, onde fica o nosso livre-arbítrio e a incerteza sobre o futuro, afinal, a nossa pequena margem de liberdade?"

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