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quinta-feira, 14 de novembro de 2019

Cérebro e corpo

"Voltou o mito físico. As equipas portuguesas não ganham na Europa? Há um problema de intensidade. Os jogadores mais criativos não garantem vitórias em todos os jogos? Troque-se por robustos, para ganhar duelos. E é ver tantos dos narradores televisivos - até dos muito bons que têm surgido – a sublinhar com entusiasmo e a cada transmissão o “andamento” de uma equipa ou a “potência” de um jogador, como se algum dia Matuidi pudesse valer mais que Pjanic. Leio até que é necessária uma “revolução física” em Portugal e espanto-me, tão longe já estamos do tempo em que o futebol se trabalhava por fatias e como se não fosse verdade o que nos ensina Damásio, que “cérebro e corpo são ingredientes da mesma sopa”. Num certo tempo era a estatura, que os futebolistas cá do rectângulo olhavam alemães e ingleses como se do Gulliver se tratasse. Já não sucede. Depois era a preparação física, com métodos importados que faziam correr mais. Já não há segredos a esse nível e se há coisa que os portugueses exportam é precisamente o saber do treino. Um dos problemas estará mesmo aí, que os melhores treinadores portugueses trabalham quase todos fora do país e a elite, seja qual for a actividade, não passa de uma primeira camada. E sim, há a questão orçamental, que impede maior equilíbrio na Liga, somada a vícios antigos - algum anti-jogo próprio dos latinos ou os concertos de apito próprios dos nossos árbitros - que levam a um tempo útil de jogo que envergonha. Se o problema fosse só de “andamento”, como poderia o Braga ganhar no campo do Wolverhampton ou o Vitória de Guimarães olhar nos olhos o Arsenal e por duas vezes? A questão é bem mais de qualidade que de intensidade.
Para começar, nenhum dos chamados grandes tem sido garantia de espectáculos interessantes. O Benfica foi dominador e rigoroso defensivamente nos Açores? Globalmente sim, como tem sido por regra, no tal registo defensivo que é um paradoxo, quase uma charada: tem uma das melhores defesas da Europa porque não sofre golos em Portugal, mesmo se sofre sempre golos quando joga na Europa. Confuso o suficiente, de facto. Falta intensidade, dizem uns quantos. Acontece que a diferença individual do ano passado para o momento actual tem essencialmente três nomes - Félix, Rafa e (ainda um pouco de) Jonas - e nenhum deles é o protótipo do monstro físico. O FC Porto no Bessa foi intenso e combativo? Foi, como é também quase sempre, mas, nesse como noutros jogos, com futebol mais seguro que formoso, mais competente que criativo, mais rigoroso que inspirador. E não é seguramente por falta de jogadores potentes ou rápidos que a qualidade de jogo portista não tem sido melhor. Aliás, é ver como um jogador do perfil de Nakajima, como de Óliver antes, tenta ir ao encontro de uma ideia de jogo que claramente não caminha ao encontro dele. E o pouco que joga o Sporting não pode ser creditado à fragilidade morfológica de Eduardo e Doumbia nem à falta de robustez dos seus centrais e laterais. Pelo contrário, o melhor que apresenta garante-se na leveza com que a bola circula pelos pés de Bruno Fernandes e Vietto, sendo que nenhum chega a 1,80m, nem provocam juntos qualquer sobrecarga num elevador.
Enquanto isso, talentos óbvios mas sem “arcaboiço” - e esta palavra antiga do futebol ilustra uma certa visão arcaica - como Daniel Bragança, Tiago Dantas ou Fábio Vieira (Vítor Ferreira também serve), esperam que alguém repare definitivamente que lhe sobra em cérebro o que falta no corpo. Outros há que tiveram de esperar menos, em qualquer dos ditos grandes, meteoros que a robustez fez subir depressa mas descer rápido também, pouco depois. O que está a faltar ao campeonato português não se mede em quilos e centímetros. Aliás, simplesmente não se mede, que qualidade será sempre diferente de quantidade. 

Nota colectiva: O Liverpool é talvez a melhor equipa de que me recordo em situações de contra-ataque. Na sombra dos fabulosos Salah e Mané e do coriáceo Van Dijk, a tendência é normalizar os demais. Acontece que também entre os “potentes” reinam os “inteligentes”: há dois laterais de qualidade mas Alexander-Arnold é mesmo extraordinário, porventura o melhor do mundo hoje; e num meio campo que parece de cromos repetidos sobressai uma raridade chamada Wijnaldum, à vez médio defensivo ou ofensivo, a jogar por dentro ou por fora, segundo avançado ou falso 9, o melhor actor secundário que existe num relvado.

Nota individual: Paulo Dybala independentemente do desagrado de Ronaldo, e da dificuldade em conjugá-los que Sarri honestamente assume, ver de novo o melhor Dybala é uma grande notícia para o futebol. Ele faz num palmo o que a tantos custa fazer em metros. E a facilidade com que passa bolas à baliza define os eleitos. Tem Golo? Não, tem muito mais que isso. Tem um talento incrível, também a finalizar."

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