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quarta-feira, 23 de maio de 2018

Dar sentido ao destino dos portugueses

"Políticos e partidos deixaram-se aprisionar pelo populismo primário clubístico, não distinguindo entre os interesses privados dos clubes, a missão pública dos partidos e as responsabilidades do Estado.

Simon Schama, historiador britânico, escreveu no Financial Times no último fim de semana, que seria excessivo esperar que o casamento real britânico, que agora ocorreu, aliviasse o fardo de ansiedades que pesam sobre aquela nação, “que avança para uma saída sem um claro sentido de destino” – o chamado Brexit. Faço a mesma pergunta que Schama: qual é o sentido de destino dos portugueses?
Em Portugal, a palavra “nação” ainda tem uma sonoridade bafienta, e por isso é raramente utilizada. Mas a verdade é que vivemos na “Europa das nações” e muitos dos 193 países membros da organização que se chama Nações Unidas, a que correspondem outros tantos estados soberanos, contêm diversas nações.
Mesmo o Estado português tem duas línguas oficiais, o português e mirandês, descendente do asturo-leonês, a língua provavelmente falada por Henrique e Teresa, os dois “estrangeiros” que foram pais de Afonso Henriques, o homem que iniciou a difícil transformação de feudos e de zonas de influência ou controlo islâmico no que viria a ser um reino, um Estado, um império, uma república.
Os portugueses eram e são, por enquanto, a população da Península Ibérica que preserva a composição genética ancestral euro-hispânica mais unificada, reflexo da menor exposição do território a invasões, migrações e miscegenação, quer de populações germânicas do Norte da Europa, quer de berberes do Magrebe. Mas a divisão do país em feudos e zonas de influência persiste.
A ideia de que as sociedades humanas organizadas em nações são um organismo colectivo, um ser biológico, e a consequente visão da história como “um complexo inextricável dos instinctos animaes dos povos” foram expressas pelo historiador Guilherme de Oliveira Martins, em 1885.
Trinta e quatro anos depois, para o poeta Fernando Pessoa, admirador de Henry Ford, não bastava a organização natural biológica. Importava também descobrir o “sentido concreto” da necessidade de organizar a nação. Para Pessoa, o progresso de Portugal exigia que o comércio e a indústria tivessem “organização como conjunto nacional” e da “sociedade portuguesa”. A visão biológica de Pessoa pode ser vista como estando próxima da do economista liberal austríaco Friedrich von Hayek, seu contemporâneo, também ele um “organísmico” no que respeita à divisão do conhecimento e a uma “ordem geradora de conhecimento” (knowledge generating order).
O economista Richard Thaler (Nobel da Economia 2017), e outros como Daniel Kahneman, desenvolveram a teoria da economia comportamental e das finanças, e das consequências das limitações da racionalidade na tomada de decisões. Ou seja, a luta entre a racionalidade e os instintos animais, a luta pelo autocontrolo da nossa bioquímica, é eterna.
O carácter da nação, considerado como uma emanação do conjunto biológico gerador de conhecimento situado em Portugal, foi violentado na passada semana. Depois de anos de corrupção ao mais alto nível, de golpes desferidos directa e indirectamente contra o bem-estar e progresso dos portugueses, depois dos incêndios assassinos do verão passado, sucedeu agora a agressão física, criminosa e repugnante, contra portugueses e estrangeiros.
Porque ocorreu num meio eminentemente popular – o futebol – abriu uma extensa ferida no moral da nação e na sua auto-estima. A agressão foi premeditada e organizada por pessoas obcecadas e ignorantes da repercussão que o seu tresloucado ato teria muito para além do futebol. Para além do impacto interno, foi fragilizada a imagem internacional de Portugal, um labor penoso, demorado e complexo para a construção de fundamental e crucial capital de confiança, de percepção positiva sobre este conjunto de pessoas ocidentais que, supostamente, se autogovernam.
É inevitável que o que se tem passado em Portugal transmite a percepção, e para alguns confirma-a, que os portugueses não sabem ou não querem impor a lei, a ordem, a transparência, a accountability, a organização, a competência, a especialização, as melhores práticas, e que são incapazes de proteger os seus e os seus melhores – desde os melhores cérebros que fogem para outras paragens, onde são apreciados e recompensados, às melhores pernas, desportistas profissionais e técnicos de gabarito internacional. Vexame internacional foi a mensagem imediata do Presidente da República para exprimir o que ele, como Chefe de Estado e como indivíduo, e muitos milhões de portugueses sentiram naquele dia de maio de 2018.
Somos todos, em macro ou em ínfimo grau, responsáveis pelo progressivo descalabro moral de costumes e valores em Portugal. Políticos e partidos políticos deixaram-se aprisionar pelo populismo primário clubístico e, com a notável excepção de Rui Rio enquanto foi presidente da Câmara do Porto e agora como líder do PSD, eximiram-se de colocar firmes baias entre os interesses privados dos clubes, a missão pública dos partidos e as responsabilidades do Estado.
A bússola moral que podem e devem ser as confissões religiosas, em particular a Igreja Católica, não existe. Talvez nas igrejas. No átrio, apenas silêncio. As televisões transformaram-se em veículos de propagação e normalização de mau gosto e grosseria. Os principais jornais televisivos continuam a abrir com notícias sobre o futebol, uma opção inqualificável e inaceitável no caso do serviço público RTP.
Como assinalou Luís Marques Mendes na SIC, é preciso a liderança do Presidente da República. Penso como ele. É preciso dar sentido ao destino dos portugueses. É preciso liderança moral e política firme, transparente e totalmente dedicada ao bem público. Neste momento, só pode, tem de ser exercida pelo Presidente da República, que foi eleito por sufrágio universal e mantém o seu capital de confiança intacto."

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