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sexta-feira, 16 de maio de 2025

Pais, pressão e a crise de valores no desporto jovem


"O desporto é, por excelência, um espaço de promoção de valores: respeito, disciplina, solidariedade, resiliência e cooperação. No entanto, quando observamos os recintos desportivos ligados às competições de formação, onde jovens dão os primeiros passos na prática competitiva, onde mais do que campeões se pretende formar homens e mulheres de valores, encontramos, cada vez mais, episódios de violência que contrariam claramente os princípios que o desporto deveria enraizar.
Segundo o Relatório de Análise da Violência Associada ao Desporto (RAViD), o número de incidentes registados nos recintos desportivos em Portugal aumentou de 6.090 casos em 2022/2023 para 8.879 em 2023/2024, um crescimento expressivo de 46%. Embora grande parte destes casos esteja associada ao futebol profissional, muitos ocorrem em contextos de escalões de formação, como evidenciado pelos 917 incidentes registados no futebol distrital, onde a esmagadora maioria das equipas de formação. Esta tendência é particularmente alarmante quando os próprios progenitores, na condição de adeptos, se tornam protagonistas de comportamentos agressivos, sejam eles verbais ou físicos e que se estendem rapidamente ao campo de jogo. No futebol de formação destacam-se, sobretudo, como incidentes mais comuns as invasões de campo e confrontos entre adeptos, as agressões físicas e verbais a árbitros, treinadores e outros pais e, ainda, o uso de linguagem ofensiva e ameaças por parte de encarregados de educação.
Para compreender as causas destes incidentes (reforço mais uma vez nestes artigos que procurar compreender não é nem nunca será sinónimo de aceitar) é fundamental olhar para além dos números e aplicar uma análise fundamentada nas ciências do comportamento humano e social.
Do ponto de vista sociológico, a Teoria da Anomia oferece uma lente esclarecedora. Em contextos onde as normas sociais estão fragilizadas, ou onde o sistema de valores que deveria reger o comportamento é substituído por uma lógica puramente competitiva, instala-se a anomia: a ausência de referências claras. Nos recintos desportivos juvenis, onde a linha entre apoio e pressão é frequentemente violada, muitos pais sentem-se autorizados a atuar como treinadores, árbitros e até juízes morais, substituindo o espírito desportivo por uma lógica tribal de vencer a qualquer custo.
No desporto de formação, encontramos um cenário propício à anomia social, há uma evidente fragilidade das normas morais atendendo a que por muitas vezes os valores de respeito, cooperação e aprendizagem são substituídos por uma obsessão com o resultado e pela competição desmedida, perdendo-se assim o “mapa moral” que deveria guiar o comportamento de todos os envolvidos, pais, atletas, treinadores e árbitros. Além disso, a ausência de sanções claras ou de intervenção eficaz das organizações desportivas contribui para que estes assumam comportamentos invasivos: criticam árbitros, insultam jogadores adversários ou pressionam os filhos com expectativas desmedidas, invadem campos, agridem árbitros e outros intervenientes.
Complementarmente, a Teoria da Frustração-Agressão sustenta que a agressividade é frequentemente uma consequência direta da frustração, ou seja, do bloqueio na realização de uma expectativa ou desejo. No contexto desportivo, especialmente nos escalões de formação, esta teoria ajuda a compreender a origem de muitos comportamentos violentos por parte dos pais. Quando estes projetam nos filhos os seus próprios sonhos desportivos, muitas vezes não concretizados, qualquer obstáculo no percurso do jovem, como um erro técnico, uma substituição pelo treinador ou uma derrota, é interpretado não apenas como uma falha desportiva, mas como um ataque ao seu próprio valor pessoal. A frustração resultante gera emoções negativas intensas, que se manifestam frequentemente em comportamentos agressivos.
Este tipo de comportamento é prejudicial para desporto, mas também para a sociedade e principalmente para os próprios jovens. Por norma, os jovens atletas sentem ansiedade de desempenho, não pela competição em si, mas pelo medo de desiludir os pais. Quando os pais gritam, insultam árbitros ou manifestam agressividade nas bancadas, os filhos experimentam vergonha e constrangimento público, podendo sentir-se responsáveis por esses comportamentos. A longo prazo estes comportamentos podem condicionar o comportamento dos jovens que por um lado podem interiorizar a normalização e banalização do comportamento violento e adotá-lo como modelo de reação à frustração ou, o que acontece com muita frequência, abandonam o desporto de forma precoce. Em suma, a longo prazo poderá trazer consequências para a saúde mental, a autoestima e a motivação dos jovens.
O combate a este tipo de comportamento violento tem de passar por uma recolocação da cultura desportiva. Quando vencer se torna o único objetivo legítimo, qualquer comportamento que contribua para a vitória, mesmo que antiético ou violento, pode ser justificado, é como um parasita que corrói o desporto por dentro. É necessário refocar o desporto jovem na valorização do progresso individual, do espírito de equipa e do fair play."

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