"O mês de Janeiro apresentou-nos o facto de uma jovem árbitra ter sido agredida à cabeçada e com cuspidelas por um treinador num encontro de infantis em futsal entre o CPCD e o Povoense. Apresentou-nos também as agressões entre adeptos, alguns deles pais, durante um jogo de iniciados, entre Real Sport Clube e o Despertar de Beja, disputado em Massamá. E mostrou-nos ainda a agressão do treinador do Anadia ao treinador do Loures no final do encontro de futebol entre estas duas equipas e referente à série C do Campeonato de Portugal.
Em comum aos dois primeiros acontecimentos a ocorrência dos mesmos em jogos de escalões de formação… Comum ao primeiro e ao último o facto de serem considerados comportamentos de violência no desporto, enquanto o segundo tem de ser tipificado como violência associada ao desporto.
Ao longo da filogénese da espécie humana verificamos a presença constante de duas características: a competição e a violência. Constatamo-las da caça ao desporto moderno, do circo romano ao desporto olímpico.
Inicialmente tudo por causa de uma questão de sobrevivência, posteriormente numa codificação que pretende substituir a guerra. Mas se nos primórdios o homem reagia a uma ameaça súbita com a fuga ou com o ataque, actualmente os métodos refinaram-se. As garras transformaram-se em unhas e os crimes de sangue foram substituídos pelos crimes de colarinho branco. E isto porque o homem foi criando regras e regulamentos para viver em sociedade e porque foi criando códigos para a justiça ser igualmente aplicada, tendo os indivíduos de respeitar as leis por medo de sanções ou de serem reprovados moralmente pelos seus pares e por se sentirem culpados à posteriori da sua desobediência a esses códigos.
A predisposição genética para o comportamento violento, os valores morais do indivíduo e a sua aprendizagem social determinam a maior ou menor propensão para o ocorrer da violência, despoletada pela situação. São as características desta situação, que depende da actividade em que se insere, do grupo de intervenientes e do espaço em que ocorre, que são muitas vezes preponderantes para determinar a ocorrência de um comportamento de violência. Verifica-se esta premissa nos três casos acima apresentados.
Mas parece que a serotonina e a dopamina desempenham também um papel importante na ocorrência destes comportamentos. Não podemos então olhar só para o social, temos de olhar também para o biológico. Se o papel desempenhado pelo indivíduo no momento é determinante, tal como o seu status, não é menos importante a sua herança genética e os processos químicos que se desenvolvem no seu organismo.
O primata civilizado é então vítima (produto) de transmissões ao longo de um processo evolutivo tal como de circunstâncias do momento. E se, através da razão, não salva as suas circunstâncias, não se salva a si mesmo (como nos disse Ortega y Gasset).
Em “O Desporto debaixo de fogo – entre valores e perversidades” (2018, Lisboa, Prime Books) dediquei um capítulo à violência durante a prática desportiva, no treino e na competição, onde podemos constatar que a violência no desporto não é mais do que o reflexo da violência na própria sociedade e onde também podemos verificar que a violência no desporto se pode reflectir na violência na própria sociedade. Segundo vários especialistas de Ciências do Desporto são aí dissecadas as causas dos comportamentos de violência no desporto e apresentados inúmeros exemplos que mostram diferentes tipologias dos mesmos.
Para Laure e Falcoz (2004, “Sociologie”, Paris, Ellipses), a violência é facilmente olhada como um factor que contribui para se superar, para chegar mais alto e para se transcender, e “longe de ser um benefício para o desenvolvimento do indivíduo, ou de restabelecer a sua integridade física ou moral, esta forma de «violência» ser-lhe-á ao contrário benéfica”. Atletas, competidores ou desportistas desejosos de alcançar a vitória mesmo que não seja a qualquer preço estão submetidos à condição de poderem recorrer a comportamentos de violência porque o desporto não existe sem a vitória e sem a derrota. Mais o estão quando a pretendem alcançar sem olhar a meios. Treinadores bem formados e interessados em formar seres humanos estão sujeitos ao mesmo. Treinadores interessados só em ganhar, aniquilar e destruir de certeza que recorrerão à violência…
Gustavo Pires e António Cunha (2017, “Agôn Homo Sportivus – Estratégias &a Estratagemas”, Porto, Afrontamento) dizem-nos que a ética da competição desportiva vive na necessidade de gerir um paradoxo de extraordinária complexidade: “se, por um lado, a agressividade competitiva não pode disparar para níveis incontroláveis, sob pena de o desporto deixar de ser uma actividade positiva do ponto de vista educativo, económico, político e social, por outro lado, qualquer tentativa para erradicar a agressividade subjacente ao jogo competitivo poderá deturpar a essência da pratica desportiva enquanto espaço de confronto sem o qual o desporto deixa de usufruir das condições da sua existência.”
É esta ética da competição desportiva que terá de dar prioridade à razão sobre o sentimento, que terá de dar primazia à reflexão sobre a emoção. Só ela separa o homem do animal. E o homem terá de dar prioridade a esta ética no e do desporto.
Será possível um desporto sem violência? A resposta é declaradamente Não!
O criador da sociobiologia, Eduard O. Wilson (2017, “Homo Creator”, Lisboa, Clube do Autor), diz-nos que “somos governados por emoções inscritas no nosso ADN por acontecimentos pré-históricos pouco conhecidos e apenas parcialmente compreendidos”. Daí os comportamentos de violência reactiva… E continua afirmando que “entretanto, profundamente confusos, fomos catapultados para uma época técnico-científica que pode, com o tempo, adequar-se bem a dar instruções a robôs, mas não aos valores e sentimentos antigos que nos mantêm indelevelmente humanos”. Por isso mesmo neste desporto pós-moderno, essencialmente técnico-científico a todos os níveis, extremamente mercantilizado, se recorre a comportamentos de violência instrumental…
Poderia haver um desporto sem violência? Claro que poderia, poderia mas não seria a mesma coisa!"
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