"Não vejam no que escrevo qualquer embirração própria de quem já desempenhou a função ou se julga particularmente habilitado, seja por ter crescido a aprender com uns quantos históricos e envelhecido a ver multiplicarem-se narradores e comentadores. Começo, aliás, por assinalar que muitos dos que têm surgido em qualquer das funções são claramente competentes, em termos médios até acima dos da minha geração. Este texto é bem mais um conjunto de pequenos alertas construtivos, perante tantas transmissões de futebol em direto, às dezenas em cada fim de semana, em ordem a um melhor entendimento do jogo. Não é presunção, é paixão.
Primeira embirração: com a espécie de esquizofrenia em que se cai vezes demais, quando nos estão a mostrar uma coisa e a falar de outra. O exemplo concreto está no debitar de uma série de informações recolhidas nos sites e aplicações disponíveis, totalmente desligadas do que está a acontecer no jogo, não raras vezes durante largos minutos. Ele é dados de calendário, a classificação dos últimos não sei quantos anos, o histórico de duelos entre as duas equipas nas mais das vezes inútil para o presente, o trajeto nos jogos em casa ou fora, as equipas todas que determinado jogador já representou, os golos anteriores marcados antes do intervalo ou logo a seguir. No fundo, tudo o que já aconteceu, nada do que está a acontecer.
O que está a acontecer também só conta – segunda embirração - se a bola estiver perto da área. Tanto se fala em “fases de construção”, mas nesses momentos, em que se troca a bola na zona defensiva, ignoram-se posicionamentos e desprezam-se intenções para se debitarem algumas banalidades sobre o perfil do jogador A ou B ou a estrutura em que a equipa se apresenta. Não raras vezes, só muitos segundos depois, quando se pressente perigo na área de ataque, é que o comentador interrompe o discurso extemporâneo ou o narrador fala mais alto, como se a jogada verdadeiramente começasse ali, já perto do fim do caminho
Claro que não há verdades definitivas, no futebol menos ainda, e que qualquer comentário é subjetivo, mas um especialista, no futebol como para falar de saúde ou economia, é chamado no sentido de acrescentar conhecimento ao espectador. Acredito que deve começar por ajudar-nos a perceber o todo, a intenção coletiva de cada equipa em função do seu modelo de jogo, observando os movimentos- padrão que a identificam, as estratégias de construção ou condicionamento, uma alteração posicional sensível de determinada unidade. E fazê-lo necessariamente em função daquele jogo em concreto, do que está ali a decorrer, e não de uma soma de ideias feitas sobre equipas ou futebolistas, como se uma partida não fosse sempre diferente da anterior, mesmo que entre contendores idênticos. É fugir ao óbvio para perceber o novo.
Não me parece que faça sentido analisar jogadores avulso, como se o contexto coletivo não fosse decisivo; entender como equilíbrio o facto de ambos os conjuntos em campo conseguirem lances de perigo; referir as equipas ultradefensivas como “muito organizadas”, até porque defender com muitos é diferente de defender bem; insistir em diabolizar a construção curta (e paciente) como se fosse uma teimosia e ignorando que o passe longo é o bilhete para a lotaria de um duelo aéreo; resumir tudo e mais um par de botas à eficácia ou falta dela. A propósito, estamos no tempo de uma estranha sobrevalorização dos duelos e da agressividade – em que os treinadores também caem vezes demais – como se alguma equipa devesse ter nisso a sua essência. E o adversário não estivesse autorizado ao mesmo, já agora, para ser de facto eficaz. A atitude é para acrescentar à ideia, não para a substituir. Numa boa equipa, antes da atitude tem de haver um modelo definido e princípios bem treinados. Identificá-los é um ótimo ponto de partida para entender o jogo. E poder explicá-lo."
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