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segunda-feira, 14 de janeiro de 2019

O que fazem os filósofos?

"Li, já não sei onde, que um dia um jornalista perguntou a uma cozinheira da casa de Alexandre Herculano o que fazia habitualmente o notável historiador e escritor. E ela, expressiva e rápida, mordiscando uma peça de fruta: “O Senhor Herculano? Não faz nada. Só lê e escreve”. Durante os três primeiros anos da década de oitenta, trabalhei no Centro de Medicina Desportiva de Lisboa, como adjunto do Dr. Aníbal Silva e Costa, médico cirurgião e director-geral do Apoio Médico. Como licenciado em Filosofia, todos me tratavam por “senhor doutor” e cheguei mesmo a passar por cirurgião, quando, uma vez, um cavalheiro, já avelhentado, me agradeceu uma cirurgia que eu lhe teria feito “e que correu muito bem”, dizia ele – eu, que de medicina e cirurgia (e de tudo o mais) só sei que nada sei. Mediante recursos de uma certa oralidade folclórica, tentei informá-lo que era um simples funcionário administrativo do Ministério da Educação e professor do ISEF/UTL. Acompanhava-me o Dr. Maia Ferreira, médico fisiatra, que desfez o equívoco, junto do meu inesperado e confuso interpelante: “De facto, o doutor Manuel Sérgio não é médico, não faz Medicina, mas faz outras coisas que esta Direcção-Geral precisa que se faça”. Eu trabalhava na edição dos “Cadernos de Medicina Desportiva”, uma obra oportuna e coesa, que mereceu palavras de gratidão de alguns médicos de Medicina do Desporto, exercendo a sua profissão em clubes desportivos de norte a sul do País. Vendo bem as coisas, na Direcção-Geral de Apoio Médico, eu só lia e escrevia, ou seja, segundo a empregada da casa do Alexandre Herculano, não fazia nada. No entanto, no escárnio serôdio ao labor dos filósofos (ou dos modestos aprendizes de filosofia, como eu) que em alguns deles até deu frutos bem sazonados, há um desconhecimento de que os filósofos sempre mostraram um interesse muito especial por um trabalho que não se confunde com qualquer solitária especulação filosófica.
Vejamos: o Sócrates, após o serviço militar, que cumpriu com exemplar pundonor, andava pelas ruas interrogando as pessoas e procurando conduzi-las à Virtude, ao que, para ele, era Bom e Belo e Justo. Em 408 a. C. , encontrou Platão, fizeram-se Amigos e foi Platão que escreveu e deu a conhecer as ideias socráticas, dado que Sócrates nada deixou escrito. Platão fundou ainda uma Academia e manifestou interesse pela vida política. Descartes foi militar, durante vários anos. Pascal inventou, para o pai, uma máquina de calcular, e um coche de cinco pisos, para transporte público. Leibniz teve uma intensa e profícua atividade diplomática. Espinosa polia lentes e os filósofos das Luzes filosofavam e não escondiam os seus interesses políticos e a sua exposição social. Kant e Hegel distinguiram-se também como distintos professores universitários. Marx foi jornalista muito respeitado e “doublé” de um filósofo igualmente grande, concordemos ou não com as suas ideias. E poderíamos multiplicar os exemplos até ao “infinito”. O nosso Sampaio Bruno (1857-1915) era dono de uma padaria e, por vezes, vendia pão aos fregueses habituais do estabelecimento, seu e do seu irmão. No entanto, são muitos (e gente até de admirável fecundidade literária) os que o consideram o fundador da filosofia portuguesa. Um dia, Unamuno visitou o Porto com o fito primeiro de travar relações com Sampaio Bruno. Logo que chegou à Cidade Invicta, dirigiu-se à rua do Bonjardim, onde Bruno morava por cima da padaria da família e que era administrada pelo irmão do filósofo. “Unamuno entrou no estabelecimento e dirigiu-se a um sujeito grave, gordo, de lunetas que, de facalhão em punho, talhava meia quarta de pão a uma freguesa: “Sabe dizer-me onde mora o sábio escritor Bruno?”, perguntou o catedrático de Salamanca. O sujeito de lunetas embrulhou a meia quarta de pão, sacudiu das mãos a farinha triga, guardou o troco na gaveta e, pausadamente, avançou para o espanhol, dizendo numa vozita fina e tímida, que saía como um esguicho daquele corpanzil mole e pesado: Sou eu mesmo!” (Augusto de Castro, Fumo do meu cigarro, pp. 180/181).
A hostilidade, a respeito da Filosofia e da Epistemologia, radica no facto de aqueles dois saberes, por natureza, desinstalam e desestabilizam e portanto incomodam. Eu próprio a senti quando, na minha poligrafia dispersiva, comecei a sugerir a importância da epistemologia, no estudo da Educação Física e do Desporto. Acompanharam-me, nesses anos distantes, se bem me lembro, o Prof. Gustavo Pires, o Dr. Augusto Baganha, o jornalista Homero Serpa, o treinador de futebol José Maria Pedroto e ainda os Profs. Gonçalo M. Tavares, Abel Figueiredo e José Neto. Outros nomes deveria, aqui, acrescentar, como os brasileiros João Tojal, João Baptista Freire, João Paulo Medina e Anna Feitosa. Foram estes os nomes que, imediatamente, me ocorreram. Ao fim de 40 anos, é bem possível que o meu aterosclerótico esquecimento não me deixe chegar a outras pessoas que eu desejaria lembrar, aqui e agora. Dos adversários não me ocupo, mas agradeço-lhes o muito que me obrigam a estudar. Lastimando embora que muitos deles não cultivem a arte subtil de conversar, nem a nobre arte de escrever. O culto da linguagem, escrita ou falada, é uma das formas superiores da vida em sociedade. Não tenho dúvidas a este respeito, mormente num tempo como o nosso, em que a língua portuguesa, com a estulta pretensão de modernizar-se, já se confunde com o inglês e portanto desarticulou-se, está, também ela, ao serviço de um certo imperialismo, filho dileto daquele imperialismo que o nosso Papa Francisco tão certeiramente classificou: “Esta economia mata!”. Mas volto à hostilidade que rodeia a Filosofia e a Epistemologia. Porque a Filosofia não é científica? Mas se o espírito nasce da natureza, a Filosofia deverá, inevitavelmente, estabelecer os seus conceitos, a partir da natureza. Uma solução não tem sentido independentemente de uma problemática que, sem dispensar as ciências, não é unicamente científica. Uma solução não remete para uma psicologia do conhecimento, mas para uma ontologia da complexidade humana. E, aqui, o problemático é mais subjectivo do que objectivo, sendo tanto Ciência como Filosofia. Toda a imagem da realidade surge como biface: é científica e exprime-se em números e é, simultaneamente, filosófica e exprime-se em proposições.
O que pode fazer o filósofo, no desporto? O período axial (termo criado pelo médico e filósofo alemão Karl Jaspers, que aponta o período em que nascem o budismo, o confucionismo, a filosofia grega e em que o profetismo judaico já anuncia Jesus de Nazaré) que permite a resposta a esta questão, começou em Pierre de Coubertin e continua ainda hoje. O filósofo, no desporto, tem, em primeiro lugar, de saber onde está, ou seja, conhecer, melhor ou pior, a prática desportiva; depois, sugerir ao treinador principal que toda a investigação exige um método e, no caso do desporto, o método é o específico das ciências humanas, pois que não há jogos, há pessoas que jogam; por fim, com a consciência de nós mesmos e com a metodologia adequada, importa elaborar conceitos, em busca dos significados essenciais das coisas, dos factos e dos acontecimentos. A pergunta básica de toda a filosofia poderei assim resumi-la: o que é isto? Ou, melhor ainda: qual o conceito que mais fielmente me retrata a realidade e me transmite o sentido do que estou a investigar?... No desporto, é a motricidade. Eu criei, sem esquecer os meus inúmeros limites e condicionalismos, uma definição de motricidade humana: é a energia do movimento intencional e em equipa da transcendência. Canta o Caetano Veloso que “Se você tem uma ideia incrível, é melhor fazer uma canção./Está provado que só é possível filosofar em alemão”. É evidente que a minha definição de motricidade humana não significa a posse de uma absoluta certeza. Significa, sim, que tenho um caminho para investigar e que sei também que nunca o poderei caminhar sozinho, nem chegarei alguma vez à claridade matinal de uma certeza indiscutível. Embora o desporto (e a dança) seja uma obra humana e sejam seres humanos que perpetuam a história do desporto (e da dança). E o filósofo acrescenta: e qual o sentido do desporto (e da dança), na história da humanidade.
Há mais de 40 anos, me parece (veja-se o meu livro, Desporto em Democracia, Seara Nova, 1976) que o ser humano não pode definir-se como substância estática, pois que o ser da mulher e do homem é um fazer- se, um tornar-se, um transformar-se, mas com pontos de referência axiológica, pois que há um vínculo iniludível, entre a História e os valores, donde nascem a civilização e a cultura. A prática desportiva e a dança, pela sua qualidade intrínseca, são movimento intencional e, porque o ser humano as faz num surto incoercível de valores, transformam-se num espaço de civilização e cultura e de poesia e de sonho. Quem tem um mínimo de consciência histórica descobre, na História, um processo contínuo de humanização, através de um contínuo processo de aprendizagem, onde se movimentam o desporto e a dança. Julgo não ser excessivo acentuar a diferença entre o que é justo, por imperativos de uma ordem moral, e o que é justo por imposição legal. As metas axiológicas do desporto e da dança, embora algumas estridências de sinal contrário, mostram-nos que o ser do homem (e da mulher) é o seu dever-ser. “(…) somos testemunhas de um formidável aumento das atividades financeiras e bolsistas, de uma aceleração da velocidade das operações económicas que funcionam, agora, em tempo real, de uma explosão fenomenal de volumes de capitais, em circulação no planeta. Desde há muito tempo, a sociedade de consumo estabelece-se, sob o signo do excesso, da profusão de bens: o que é ainda amplificado através dos hipermercados e dos centros comerciais cada vez mais gigantescos e que oferecem uma série de produtos, de marcas e de serviços pletóricos” (Gilles LIpovetsky, Os Tempos Hipermodernos, Edições 70, Lisboa, 2018, p. 57). Acentua-se, no tempo em que vivemos, a ambiguidade já pressentida por Ortega y Gasset, sobre as sociedades de massas.
De facto, as pessoas vivem mais anos, a tecnologia produz bens que tornam mais agradável a existência, a sociedade do conhecimento dá-nos “lato sensu” a informação necessária, debruando as imagens soturnas do terrorismo com a vida fantástica dos mais célebres jogadores de futebol e artistas de cinema. Todavia, as desigualdades crescem entre os homens e as nações, os bens que a tecnologia produz não chegam a todos, a informação passa por aí ao serviço de certos interesses e as bombas atómicas mais mortíferas estão na posse de verdadeiros psicopatas. Cícero ensinava que educar significa libertar o futuro (o estudante) da tirania do presente. Mas apontando sempre valores de forte carácter axiológico, que resultem de reacções emocionais, mas também de juízos lógicos de conhecimento dos mais nobres objectivos da história humana. Ora, estes valores descobrem-se no nascimento do desporto moderno. No processo de criação e construção da prática desportiva, a competição conjuga-se com o espírito lúdico e é dos desempenhos físicos (da nossa corporeidade) que pode visionar-se a vida espiritual do atleta. O ser humano é interioridade e exterioridade, “bios” e “logos”, como convém a matéria que se faz espírito. Como desconhecer que a escola necessita do desporto, não tanto para ajudar ao nascimento de campeões, individualistas e narcisistas, mas para galvanizar a vivência das virtudes humanas, que (repito-me) emergem da génese do desporto moderno? É o ser humano, com o pleno conhecimento dos seus limites, o objectivo primeiro do treino e da competição desportiva. Tanto na Escola, como no Lazer, como na Saúde, como no Espectáculo Altamente Competitivo. E ainda como Ciência e Filosofia, como Ética e como Política. No dia em que assim o entendermos, torna-se fácil o papel do filósofo, no mundo do desporto. Porque todos sabem o que é o essencial…"

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