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domingo, 21 de abril de 2019

Peter no Olimpo

"A ideia de que os dirigentes políticos e desportivos, depois de receberem e administrarem, de modo próprio, milhões de euros dos contribuintes, não são responsáveis pelos resultados desportivos conseguidos, porque não são eles quem salta, quem corre ou quem joga, é inaceitável desde logo porque se trata de uma triste filosofia do fracasso à espera de acontecer.
A este propósito, o artigo de Vítor Serpa intitulado “A Questão dos Dirigentes em Portugal” publicado n’A Bola (2019-04-13), surgiu com uma superior oportunidade uma vez que, hoje, o pior que o desenvolvimento do desporto pode apresentar nos mais diversos países do Mundo é um dirigismo oportunista de supercompensação de substituição, de complemento, ou de superação (Cf. M. Bouet) que Vítor Serpa sintetiza da seguinte maneira: “… em regra, temos administradores e gestores demasiado marcados pela cultura do exercício pessoal do poder e daí que confundam o interesse da empresa, do grupo, da instituição com o seu gosto, a sua personalidade e, o pior de tudo, o exibicionismo do seu estatuto de autoridade, que é sempre mais redutor do que a liderança”. O problema é que, digo eu, depois, perante o fracasso dos resultados, como, infelizmente, assistimos todos os dias, suas excelências reduzem-se a uma oportuna insignificância e recusam-se a assumir as responsabilidades e, daí, a tirarem as devidas consequências.
Quando um dirigente desportivo, numa estratégia de “serviços mínimos”, diz que: (1º) Não é ele que compete, são os atletas; (2º) Não é ele que ministra o treino, são os treinadores; (3º) Não é ele que organiza, são os organizadores; (4º) Ele só vai dirigir e ; (5º) Dirigir é fazer o melhor possível das suas capacidades, está profundamente equivocado desde logo porque confunde capacidades com competências. O que se espera de um gestor não são extraordinárias capacidades para o exercício de funções sejam elas quais forem. O que se espera do gestor são competências específicas para o exercício de determinadas funções. Depois, se for possuidor de algumas capacidades inatas que potenciem as suas competências tanto melhor. Caso contrário, o gestor pode estar, no melhor das suas capacidades, a fazer, muito bem, as coisas erradas na medida em que não tem, sequer, as competências específicas para perceber a situação a fim de decidir quais as medidas certas a tomar. Ora, não existe nada de pior para os resultados da gestão do que alguém sem competências, mas cheio de capacidades, a fazer coisas erradas. Reduzir a gestão ao exercício das capacidades individuais é promover o “achismo” que, ao sustentar o discricionarismo das chefias, tem condenado ao fracasso muitos Sistemas Desportivos por esse Mundo fora.
Por isso, as questões levantadas por Vítor Serpa são fundamentais: “Fala-se, muitas vezes, inclusive nos foros económicos, da improdutividade nacional. Mas de onde vem essa improdutividade? Da falta de qualidade dos trabalhadores ou da falta de competência dos gestores, que são incapazes de planear, de organizar, de projectar, de realizar?”.
Se bem virmos, o Director d’A Bola fala, realmente, do que sabe. Sendo ele director do Jornal português de maior expansão à escala do Planeta responde pelos resultados do jornal na sua totalidade e não só pela circunstância do jornal sair, diariamente, a horas certas, para a rua. A última coisa que os leitores d’A Bola esperariam e os administradores da empresa ainda menos era ouvirem o seu director, acerca dos resultados contabilísticos da sua liderança, dizer: - Eu não vendo os jornais, quem o faz são os vendedores; eu não escrevo as notícias, quem o faz são os jornalistas; eu não pagino o jornal, quem o faz são os paginadores; eu só dirijo e dirigir é fazer tudo o que estiver ao meu alcance para que quem vende, escreve e pagina não possa dizer que não fiz o melhor para que tudo isso possa acontecer.
Não se trata de saber se o sistema está a funcionar bem. Trata-se de saber: (1º) Em que direcção vai? (2º) Qual é o seu destino? (3º) Qual é a velocidade da progressão? (4º) Quem são os destinatários? (5º) Como é que os recursos estão a ser utilizados? (6º) As pessoas envolvidas são as mais capazes? (7º) Qual o envolvimento de todos os interessados? (etc.).
O que se espera é que os dirigentes, com responsabilidade pessoal, sejam capazes de assumir a produtividade, quer dizer, os resultados que, em virtude das suas opções estratégicas, foram capazes de conseguir ao cabo de um mandato, de uma ou várias épocas ou de um Ciclo Olímpico. Infelizmente, em Portugal, das poucas pessoas para não dizermos únicas que, efectivamente, são responsabilizadas e obrigadas a, efectivamente, assumir os resultados da sua gestão são os treinadores de futebol.
Não se trata de saber se o gestor fez o melhor de si para que as coisas pudessem acontecer. Trata-se de saber se o gestor teve uma acção decisiva a montante de todo o processo de desenvolvimento ou se só serviu para produzir burocracia, gerir os interesses e atrapalhar a produção. Como refere Vítor Serpa para muitos gestores, “talvez para a maioria, toda a sedução de dirigir se esgota no prazer do mando, que não se pode, nem sequer etimologicamente, confundir com o prazer do comando. Quem comanda, sabe trabalhar em equipa, sabe organizar o seu grupo, tem consciência de que todos os homens, por mais sábios, têm limitação de conhecimentos e saberes. Por isso precisam de outros que os completem. Porém, quem apenas manda tem uma visão egoísta, pessoal, solitária e por isso invariavelmente pobre da gestão de uma empresa, de um clube, de uma associação desportiva, de um sindicato”.
Na realidade, existe uma significativa diferença entre mandar e comandar. Aqueles que mandam dão ordens ao estilo “quero, posso e mando” mesmo que essas ordens atentem contra a justeza do processo de desenvolvimento e a dignidades daqueles que lhes são subordinados. Aqueles que comandam dão o exemplo e lideram a partir daqueles que lhes são subordinados. E, quanto mais elevados estiverem na hierarquia mais responsabilidades têm de envolverem aqueles que comandam num projecto comum. Eles comandam porque são capazes de seguir aqueles que lideram.
E Vítor Serpa conclui:
“É, no fundo, esta adulteração cultural do dirigente e do homem português que está na base de muitas deficiências e incompetências nas direcções dos clubes desportivos e de uma enorme, diria, mesmo colossal ineficiência das empresas”.
Perante este triste cenário que, infelizmente, acontece nos mais diversos países do Mundo, a pergunta que ocorre fazer é a seguinte:
Porque é que muitos dirigentes se comportam desta maneira?
Tenho para mim que os dirigentes descritos por Vítor Serpa, que podem ser encontrados nos mais diversos sectores sociais, do desporto à economia política, enfermam de uma das piores síndromes da modernidade. Eles estão possuídos por um individualismo egocêntrico e narcisístico, sustentado numa concepção burocrático-instrumentalista do exercício da gestão em benefício pessoal, pelo que o mando do seu poder institucional é caracterizado como um certo “despotismo suave” uma vez que não ouvem ninguém (Cf. C. Taylor). Os gregos antigos chamavam-lhe o mal de húbris, quer dizer, descomedimento, presunção, arrogância ou insolência daqueles que atingiram patamares da hierarquia para os quais não tinham nem competências, nem condições ético-morais para o exercício das funções requeridas.
O grande problema que, hoje, se coloca ao desenvolvimento do desporto nos mais diversos países do Mundo, tem, precisamente, a ver com a cultura de um certo despotismo suave em que os fins justificam os meios pelo que, num egoísmo primário, os dirigentes utilizam-se das organizações que chefiam com o exclusivo objectivo de se afirmarem socialmente. Nem sempre foi assim.
Pierre de Coubertin era um democrata. Ao longo da sua vida, podem ser encontrados inúmeros exemplos que provam que ele era alguém que presava a democracia. Desde a sua mais expressiva metáfora no que diz respeito à generalização da prática desportiva “todos os desportos para todos” (Cf. Tribune de Genève, 1919-12-08) até à maneira como presidia e geria as Sessões do COI uma vez que, quando desejava manifestar e defender a sua opinião abandonava a presidência da Sessão pedindo ao suíço Godefroy de Blonay para o substituir. Coubertin era, de facto, um líder que, sem abdicar das suas convicções sempre soube partilhar a liderança com aqueles que o acompanhavam na institucionalização do projecto olímpico. Ele tinha perfeita consciência das suas limitações pelo que necessitava de todos aqueles que o podiam completar. E, foi o que fez ao longo da sua liderança do COI entre 1896 e 1925. Ao fazê-lo, pautou o seu comportamento pelo maior respeito pelos valores da democracia. Defendeu, com convicção, as suas ideias, mas nunca pensou sequer em impô-las aos membros do COI e, por isso, em muitas decisões, saiu vencido. Também nunca teve qualquer problema em aceitar as opiniões dos seus companheiros como foi, por exemplo, o “citius, fortius, altius” do Frade Henri Didon (1840-1900) ou a ideia de organizar a corrida da Maratona na primeira edição dos Jogos Olímpicos da era moderna que lhe foi sugerida por Michel Bréal (1832-1915). Infelizmente, o exemplo do espírito da liderança democrática de Coubertin nem sempre orientou o comportamento dos presidentes do COI que se lhe seguiram, nem, salvo as devidas excepções, a dos mais diversos presidentes dos Comités Olímpicos Nacionais (CONs) por esse mundo fora que, completamente embriagados pelo poder do mando e do dinheiro e tomados pelo mal de húbris, passaram a gerir as respectivas organizações ao estilo “quero, posso e mando”.
Se a democracia é a primeira virtude das instituições sociais, a justiça deve ser aquela que orienta o seu processo de desenvolvimento. Isto significa que não existe desenvolvimento quando, nas mais diversas instituições, sejam elas públicas ou privadas, a acção de dirigir, de administrar ou de gerir, se traduz: (1º) Num olímpico narcisismo relativista do prazer do mando; (2º) Na incapacidade de se criar um projeto comum que ultrapasse o poder despótico do “magistedixismo”; (3º) Na egocêntrica necessidade de se estabelecer doutrina na primeira pessoa do singular; (4º) No irrealista desejo de se impor uma novilíngua que estandardize o pensamento; (5º) Na defesa de interesses próprios em prejuízo das necessidades sociais; (6º) Na perda do sentido dos princípios e dos valores pelo esmorecimento dos horizontes ético-morais que caracterizam o exercício do mando.
Perante este cenário caracterizado pelo vazio de princípios e dos valores e pela ausência de credíveis lideranças sustentadas nos reais interesses das comunidades, está a surgir um profundo desencantamento relativamente ao Movimento Olímpico (MO) uma vez que os seus dirigentes, nos mais diversos países do Mundo, se têm aproveitado dos lugares que ocupam a fim de tirarem benefícios pessoais. E tudo começou quando Antonio Samaranch (1920-2010), que liderou o COI entre 1980 e 2001, proclamou a metáfora mais destruidora que alguma vez foi proferida no MO internacional. Foi ela: “yes to commercialisation”. E tratou-se de uma metáfora destruidora, não porque tenha aberto as portas à economia do desporto mas porque, sem cuidar das consequências, abriu as portas do MO ao poder do dinheiro sem considerar, como um dia afirmou Bill Gates, cito de cor, que tudo se altera na vida quando se alteram as respetivas fontes de financiamento. E tudo descambou na crise de corrupção em finais do mandato do próprio Samaranch. E, sem que, desde então, nada de, verdadeiramente, significativo se tenha alterado, Thomas Bach, o atual presidente do COI, na reunião da Comissão Executiva dos Comités Olímpicos Europeus (COE) realizada em Marbella /Espanha a 9 Novembro de 2018, fez um desesperado (!) apelo em defesa do Modelo Europeu de Desporto (MED) com a finalidade de preservar o MO das “ameaças” das empresas comerciais que, legitimamente, no quadro das regras económicas da União Europeia, veem nas organizações e nos eventos desportivos um excelente meio de negócios que, na perspectiva de Thomas Bach, atenta contra os consuetudinários interesses monopolistas do COI.
Hoje, a gestão do desporto, a nível do vértice estratégico dos Sistemas Desportivos dos mais diversos países do Mundo, está envolta numa enorme complexidade que, como refere Vítor Serpa, obriga a: (1º) Saber trabalhar em equipa; (2º) Saber organizar o grupo; (3º) Ter consciência de que todos os homens, por mais sábios que sejam, têm limitação de conhecimentos e saberes. Quer dizer, a complexidade dos Sistemas Desportivos obriga a que os gestores tenham perfeita consciência, para utilizarmos uma ideia de Ortega y Gasset, das circunstâncias do nível hierárquico em que estão situados. Porque, o pior que pode acontecer ao desporto de um qualquer país do Mundo é funcionar sob o mando de burocratas que confundem o exercício das funções de uma organização do vértice estratégico do Sistema Desportivo com aquelas que devem ser realizadas pelas organizações do centro operacional. Quando tal acontece, estamos em presença do Princípio de Peter que nos diz que as pessoas evoluem nas organizações e sistemas até ao nível da sua incompetência. Quer dizer, o facto de se ter mandado no desporto de uma Câmara Municipal não confere quaisquer competências para se comandar uma organização do vértice estratégico do desporto de um qualquer país do Mundo.
E porquê?
Porque as competências técnicas necessárias mas não suficientes para gerir o departamento de desporto de uma câmara municipal que na dinâmica do Sistema Desportivo se situa ao nível do centro operacional não são as mesmas a utilizar para, politicamente, gerir uma qualquer organização situada no vértice estratégico do desporto de um país. Toda e qualquer pessoa que, ao evoluir na hierarquia de uma organização ou sistema, continua a utilizar os mesmos conhecimentos e procedimentos que utilizava no nível anterior, limita-se, com brilho e proficiência, a cumprir o Princípio de Peter.
E termino, com a devida vénia, fazendo minhas as palavras de Vítor Serpa: “O desporto sofre com essa realidade, a todos os níveis do sistema. Portugal sofre com essa realidade em todos os seus sectores públicos e privados”."

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