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terça-feira, 7 de julho de 2020

Dois livros, duas medidas!

"Em 2007 tivemos a oportunidade de ver publicado o livro intitulado «Em defesa do desporto – mutações e valores em conflito» com Jorge Olímpio Bento e José Manuel Constantino como coordenadores (Almedina) e patrocinado pelo Comité Olímpico de Portugal. Prefaciado pelo então Presidente do COP, José Vicente de Moura, podemos ler no mesmo que os autores dos diferentes textos “não se limitam a acrescentar um tijolo ao muro do conhecimento” porque “eles derrubam-no e estabelecem uma nova fasquia quanto aos moldes modernos de o entender.” É um livro com o contributo de autores de várias áreas as quais possuem conexões com o desporto: educação física, pedagogia, direito, psicologia, ética, economia, medicina, estética, saúde pública, jornalismo, antropologia, sociologia e até literatura moderna.
Numa análise sopre o desporto moderno, esta obra coloca no lugar a actividade física, a educação física e o desporto, assim como os valores deste último, mas também equaciona o papel do espectáculo desportivo, o papel do dinheiro no desporto e as várias profissões que gravitam em torno do mesmo. Realce-se a demonstração (J. O. Bento) de o desporto ser “uma prótese para uma infinitude de insuficiências e deficiências que nos limitam e apoucam. É uma réstia de esperança!”. Aborda também os prováveis efeitos sobre o desporto do avanço do conhecimento genético e dos meios de comunicação social, tal como aborda o alto rendimento e o papel do desporto na escola e no turismo. Um facto importante que este livro nos apresenta é o de o desporto possuir o seu «próprio Direito» (J. M. Meirim). É um livro que não esquece o desporto para todos, a performance e a excelência desportiva mas que também nos alerta (T. Marinho): “sejamos conscientes dos nossos limites, mas não nos limitemos a aceitar que não é possível irmos mais longe, sermos mais altos e sentirmo-nos mais fortes.”
Aqui poderemos ver que o desporto foi evoluindo ao longo dos tempos e que nesta altura, em 2007, mesmo entre nós, ele já se encontrava num outro patamar muito diferente do século passado, ao ponto de se afirmar (F. Tenreiro) que “nos países mais desenvolvidos a ética é promovida e defendida porque é um bem valorizado económica e socialmente. O mercado da ética do desporto português não existe.”
E assim verificamos que de um desporto em que o objectivo principal era a moral e a educação, se passa progressivamente para um desporto virado para o objectivo espectáculo. Posteriormente, com a profissionalização da maioria dos intervenientes directos no desporto e com a panóplia de actividades da mais diversa índole envolventes do mesmo, com a entrada em cena dos ‘mass media’ e, posteriormente da tecnologia, passamos a um desporto pós-moderno.
Aquilo que inicialmente era uma actividade que servia de fruição para uns enquanto outros se distraiam assistindo, para ocupar os tempos livres e que possuía um carácter formativo acaba por se transformar numa actividade económica ao redor da qual proliferam inúmeras outras actividades. Do ócio, através da sua própria negação, passa-se ao negócio…
Treze anos depois, agora, temos a oportunidade de assistir à publicação de «e-Sports: o desporto em mudança?», uma outra colectânea de textos tendo como coordenadores José Manuel Constantino e Maria Machado (Visão e Contextos) e também patrocinada pelo COP e com prefácio do seu Presidente. Embora seja uma obra específica sobre os e-Sports, debruça-se sobre o conceito de desporto tal como sobre o fenómeno digital e reflecte a posição de um vasto inúmero de autores associados às Ciências do Desporto. Desde aqueles que, e segundo diferentes perspectivas, parecem peremptoriamente afirmar que “os e-Sports são desporto” aos que pretendem uma nova definição do conceito de desporto e a inclusão dos e-Sports na mesma, encontramos ainda aqueles que se interrogam sobre a questão (P. Martins, J. Lameiras e A. B. Ramires, assim como M. J. Andrade), numa posição mais ou menos expectante. Duarte Araújo é o único autor a escrever claramente que “quando se discute se e-sport está contido no conceito de desporto, a resposta tem de ser negativa.” No pólo oposto Alexandre Mestre não tem dúvidas: os e-Sports são desporto.
Neste livro revela-se a evolução dos e-Sports, o crescimento progressivo de jogadores e espectadores, assim como o elevado volume de negócios envolvido nos mesmos e os pontos da sua inclusão como desporto assim como os seus pontos positivos.
No entanto também são denunciados “incidentes comuns que decorrem na generalidade dos desportos (como a manipulação de competições desportivas, o doping e a corrupção)”, os quais “acrescentam problemas particulares derivados da natureza digital dos desportos electrónicos” (J. P. Almeida e J. Gonçalves) e também somos alertados (A. Neto e R. Magalhães) para o facto de que “os mecanismos de estimulação cerebral associados ao jogo são similares aos provocados por uma dose de cocaína (por activação de neurotransmissores – por exemplo a dopamina).” A discussão do tema e a investigação são necessárias (J. Lameiras e A. B. Ramires) “quando a dita ‘prática’ destes jogadores contempla, muitas vezes, a permanência entre 6-10 h dia em frente a um monitor, e para além das questões físicas e posturais, as experiências de ‘burnout’ emocional, de compromisso das competências sociais e consequente isolamento social, de desenvolvimento de patologias de adição em idades muito jovens entre muitos outros compromissos do foro da qualidade dos afectos e da estruturação de uma personalidade iminentemente saudável precisam, por isso, ser colocadas no centro das atenções.”
Em 2017 o Comité Olímpico Internacional anunciou a possibilidade dos e-Sports integrarem a família olímpica – e não terá sido com o intuito formativo que o fez, dado ser uma empresa (uma ‘big’ empresa) com lucros significativos.
Se no livro publicado em 2007 Vicente de Moura dizia que era “imperativo não fazer cedências à moda e ter a coragem de ir além dela”, no livro mais recente Pedro Sequeira e António Lopes dizem-nos que os e-Sports “já passaram claramente a fase em que foram considerados apenas uma moda” pelo que eles mesmos “darão lugar a uma nova redefinição do conceito de desporto e consequente inclusão dos e-Sports na sua família.” Acrescentaríamos nós que o dinheiro mandaria muito nesta nova redefinição…
E após lermos ambos os livros, estamos em condições de responder à questão colocada por Vicente de Moura no primeiro: “qual é afinal o paradigma de organização e de desenvolvimento desportivo que não vislumbramos e de que carecemos, que balize o nosso tempo?” Dirigentes, políticos e empresários há muito que o perceberam: numa política neoliberal que mercantiliza o desporto, a explosão das novas tecnologias e a integração destas neste, animada por uma sede ilimitada de lucro, utiliza o desportista em seu proveito próprio. E parece-nos que também estamos em condições de poder responder a José Manuel Constantino, Presidente do COP, no prefácio do segundo livro, quando afirma que é necessário “indagar se é possível ao desporto continuar a invocar o seu valor educativo, a sua dimensão cultural e a sua importância na saúde pública e ‘simultaneamente’ acolher práticas cuja dimensão salutogénica começa a ser questionada pelas mais importantes instâncias científicas internacionais”…
De facto, como disse Ortega y Gasset, que nos foi trazido por Vítor Serpa no «Em defesa do desporto», nós “temos o dever de pressentir o novo”!"

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