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sábado, 11 de janeiro de 2020

Futebol e Motricidade Humana

"Quando as ciências, nos séculos XVI e XVII, despontaram no mundo ocidental, foram forçadas a disputar, com outras formas do conhecimento, nomeadamente a teologia, os seus paradigmas. Acontece hoje o mesmo, com a CMH (Ciência da Motricidade Humana) para mim, a mais nova das ciências humanas, onde o desporto (e portanto o futebol) se integra. A sua imaturidade permite que outras ciências pretendam apropriar-se das suas problemáticas. No entanto, se a epistemologia dá conta de que esta ciência se encontra em período de formação, assinala também a sua indispensabilidade. Os preconceitos anti-CMH têm raízes, no passado e no presente. No passado, pelo cartesianismo e positivismo reinantes, desde o século XIX até à segunda metade do século XX, onde só se consideravam “científicos” os métodos das “ciências da natureza”. No presente, ou por desfasamento cultural e reacção de defesa, comportamentos típicos de quem se encontra instalado e envelhecido e sem confiança e coragem, para transformações estruturais, ou ainda porque há, com certeza, erros e deficiências, no meu pensamento, a este respeito, que agradeço me digam onde se encontram. Todo o conhecimento científico é polémico. E não depende só da lógica ou da epistemologia, mas também da psicologia, da sociologia, da antropologia cultural, etc. Mas não nos podemos furtar a esta interrogação: o que nos impede, num tempo em que se anunciam novos saberes, a criação de uma nova ciência onde uma profissão e uma área do conhecimento encontrem o seu paradigma? Para mim, o futebol (como qualquer outra modalidade desportiva) radica na Motricidade Humana. De facto, sem movimento intencional e solidário e sem vontade de transcendência, não é possível a prática desportiva. Na Introdução do seu livro, Epistemologia, Mário Bunge notava, no alvorecer da década de oitenta, que a epistemologia era o domínio mais importante da filosofia (para mim, é a ética) e Piaget referia que a epistemologia ganha importância indiscutível, nos momentos de crise da ciência (o que acontece na pós-modernidade que, hoje, vivemos).
Assim, a introdução da epistemologia, num programa disciplinar, torna-se não só necessário, como há-de ultrapassar a “crise de degenerescência” do paradigma racionalista e positivista que, com a hiperespecialização, trouxe de facto conhecimento, mas também, usando as palavras de Edgar Morin, “a ignorância e a cegueira”. Uma epistemologia regional, que deve informar cada um dos saberes (por isso é regional) deve ter em conta, conforme nos adverte Jean Piaget, que hoje se verifica uma tendência para a separação entre a filosofia e a epistemologia, ficando esta nas mãos de cientistas capazes de reflexão filosófica. Isto significa que é, através da prática científica, presente, por exemplo, em laboratórios e em centros de investigação, que deverá estudar-se os fundamentos, a validade e os limites das várias ciências. Bachelard, Canguilhem, Lacan, Prigogine, etc., são exemplos de cientistas que se afastaram cautamente de uma epistemologia que não sabia conciliar a filosofia com as ciências, que faziam dela uma disciplina do tipo literário. A CMH não é fruto tão-só de uma superior erudição, ou da meditação sobre informações eruditas – ela apresenta-se como instrumento de conhecimento e meio de acção, como afinal já o vêm reconhecendo alguns treinadores desportivos. A filosofia da motricidade humana deverá percepcionar portanto a CMH como teoria e prática e desdobrando-se num feixe de disciplinas que dela nascem. E, porque ciência humana, assumindo principalmente, sem negar o apoio laboratorial, os métodos da compreensão e da interpretação. Sabemos dos riscos do psicologismo e do subjectivismo (iguais aos exageros anteriores do conhecimento objectivo e instrumental) em que se pode incorrer. Como Clifford Geertz, no âmbito da antropologia, sou em crer que a descrição mais fidedigna dos factos desportivos é uma correta interpretação, pois o que se vislumbra, na prática desportiva, são sinais, mensagens, textos, que devem ser interpretados e lidos, principalmente pelos treinadores – sinais, mensagens, textos, que a alta competição é, acima de tudo.
António Damásio, no seu O Erro de Descartes, é explícito: “A percepção é tanto actuar sobre o meio ambiente como dele receber sinais. Demais, no futebol, há mais caosalidade do que causalidade. A causalidade decorria do “erro de Descartes”, ao sustentar que o universo não passava de um enorme relógio mecânico. Ora, o caos ensina-nos que, no desporto, como no mais, nem tudo pode explicar-se como se a realidade não fosse um campo de incertezas constantes e, aqui e além, de muito difícil explicação. Recordo a tese de doutoramento, na Universidade da Madeira, do João Gabriel Jardim Caldeira, A acção homeodinâmica: a caminho de uma caoicologia do homem no desporto: “A elevada fragmentação do conhecimento, alicerçada na ideia clássica de dividir, para melhor compreender, desembocou numa hiperespecialização de uma infinidade de áreas e espaços disciplinares que, conhecendo tudo, não entendem nada. Estes territórios, encontrando-se perfeitamente demarcados e cristalizados geograficamente, não conseguem, pela sua rigidez, abrir-se e adaptar-se à multiplicidade das realidades caóicas, dos devires intercruzados do mundo” (p. 233). Daí que ao treinador criativo até possam considerá-lo um excêntrico. Ele é tão-só diferente, que escapa à in-diferença generalizada. Observa Le Breton: “Há uma inteligência do corpo, como há uma corporeidade do pensamento” (Les Passions Ordinaires. Anthropologie des émotions, Colin, Paris, 2001, p. 35). Francisco Varela sustenta que a cognição é ação inscrita no corpo, ou ação incarnada (L’inscription corporelle de l’esprit. Sciences cognitives et expérience humaine, Seuil, Paris, 1993, p. 234). O corpo em ato, visando a transcendência, também comunica, mesmo sem a voz de quem pretende transcender e transcender-se: “De facto, a linguagem verbal está longe de desempenhar, na interação humana, o papel de quase exclusividade que tradicionalmente lhe tem sido atribuído” (Agostinho Ribeiro, O Corpo que Somos – Aparência, Sensualidade, Comunicação, Editorial Notícias, Lisboa, 2003, p. 201).
David Le Breton ridiculariza mesmo a expressão “educação não verbal”, dizendo a propósito que. “Designar assim o conjunto dos processos simbólicos independentes da fala é, de facto, tão rigoroso como chamar não peixe vermelho aos peixes que não são dessa cor, ou não terra ao que tem a ver com a água ou com o ar” (op. cit., p. 33). A função comunicacional do corpo deverá merecer especial atenção de quem lidera a prática desportiva e a dança e a ergonomia e a reabilitação e a motricidade infantil, etc., etc. Como uma das especialidades em que a CMH se desdobra, o futebol, como desporto que é, há-de assumir-se como elemento de uma nova ciência humana. Se é verdade, como Foucault o assevera, que “o homem é uma invenção recente”, cabe ao futebol, como fenómeno de magia incomparável que é, reinventar um “homem novo” plural, aberto, complexo, onde se tornem evidentes as características e qualidades essenciais da complexidade humana. O Jorge Valdano, antigo jogador de futebol de irrecusáveis méritos e hoje um sábio desta modalidade desportiva , que a sabe explicar com ciência, consciência e até poesia, escreveu no jornal A Bola (2020/1/11): “Jogue-se onde se jogue e graças ao milagre da comunicação, se a partida é boa o encanto aparece. Não faz falta tanta sofisticação. Basta colocar cinco médios de grande qualidade e pedir-lhes que se mexam e passem a bola, tal como fez o Real Madrid frente ao Valência. Todo o mundo alucinou, com a brilhante consequência dessa revolução”. Rúben Dias, para explicar o triunfo do Benfica, frente ao Aves, disse convicto que: “Foi a vitória da raça. É assim que se fazem os campeões nacionais”. Portugal entrou a ganhar no “Europeu” de Andebol, superiorizando-se à França (28-25), hexacampeã mundial. Paulo Pereira, seleccionador nacional e portanto o líder desta extraordinária vitória, revelou: “Aprendemos a gerir o jogo, tivemos experiências em que parecia estar tudo muito bem e, de um momento para o outro, ficámos demasiado contentes. Estamos a aprender a conviver com momentos desfavoráveis”. É isto: no Desporto, porque actividade humana, cultura e natureza abraçam-se e complementam-se. Posso acabar, com o meu Amigo e Mestre, D. José Tolentino Mendonça: “Os limites da compreensão têm que ver com o facto de o outro permanecer outro e, mesmo quando absolutamente próximo, não deixar nunca de ser irredutível” (revista do Expresso, 2020/1/4)."

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