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quarta-feira, 28 de novembro de 2018

A idade moderna: a época do sujeito

"O humanismo constitutivo da modernidade consistiu, acima de tudo, em valorizar, no ser humano, a sua capacidade de crítica e autocrítica e o seu poder para fundar o próprio destino. São estas as duas dimensões que definem a ideia clássica de subjectividade, que Heidegger e Nietzsche, e no seu poiso de observação de filósofos, não têm dúvidas ao escrever que a principal característica da modernidade é “ a morte de Deus” e “o despojamento dos deuses”. Este recuo do religioso é contemporâneo da exposição do Homem, mesmo que em frívola tagarelice, como o substituto de Deus. André de Resende, na sua Oratio pro Rostris, recitada diante de professores e alunos da Universidade de Lisboa, em 1534 (só três anos depois, a Universidade regressaria definitivamente a Coimbra) e do que melhor se encontrava, na vida intelectual da capital – André de Resende, na sua Oratio pro Rostris, expôs sucintamente o núcleo de ideias e opções fundamentais do humanismo: Nobreza das Artes Liberais: o escritor, por plebeu que seja, mas com beleza literária e um forte sopro de espírito crítico, “alcançará , com a imortalidade, fama e glória que os próprios reis invejarão”. Consciência de uma era nova, já que era preciso ultrapassar “a noite de dez séculos”, ou seja, a Idade Média, que tinha espalhado as trevas sobre o espírito humano. A perfeição literária, presente nos autores clássicos greco-latinos, deveria ser estudada e cultivada, pois que dela emergia a beleza da forma e o rigor do pensamento. O latim e o grego, indiscutíveis instrumentos da cultura. André de Resende chega ao ponto de afirmar que, sem estas línguas, ninguém poderá adquirir sólida cultura, pois que nela se expressaram os maiores sábios da humanidade. Outros autores acrescentarão o hebreu, tendo em vista o estudo da Sagrada Escritura. A pedagogia humanista, onde se misturavam os grandes filósofos gregos e latinos e os Padres da Igreja. E, por fim, a renovação da teologia, ou seja, o Velho e o Novo Testamento deveriam ser reestudados reexaminados à luz dos magnos ensinamentos de Sócrates, Platão, Aristóteles, etc., etc.
Deste reestudo e reexame das línguas clássicas, por parte dos humanistas, novos escritores e novos sábios surgiram que, ao lançarem ideias novas, punham em causa o verbalismo doutoral da escolástica, causa das causas do atraso em que jaziam as ciências dos finais da Idade Média e primeiros anos da Idade Moderna. E do majestoso friso de filósofos e sábios dois médicos resplendiam, pela sua autoridade intelectual e moral, pelo seu indiscutível saber: Hipócrates (460-377 a.C.) e Galeno (130-201). Dois médicos que passaram a ser frequentados pelos humanistas, pois que apresentavam ambos três características muito particulares: repudiavam a filiação das doenças em quaisquer poderes sobrenaturais, rebelando-se assim contra os “castigos de Deus”; estabeleceram intercorrências evidentes entre o clima, a sociedade, a cultura e as doenças; e prescreviam exercícios ginásticos, assentes em estudos anatómicos, ao tratamento de algumas patologias. Vesálio (1514-1564), ao ler em Galeno que todo o anatomista deveria familiarizar-se com os ossos humanos, manipulando-os, dispôs-se a aproveitar todos os ensejos para estudar os ossos e dissecar cadáveres, ganhando assim um conhecimento prático e teórico, invulgar para o tempo, e que lhe permitiu publicar o seu grandioso tratado anatómico, De Humani Corporis Fabrica, para melhor conhecer o corpo humano e assim melhor poder curar as doenças. Em 1569, Jerónimo Mercurialis publica em Veneza, a sua obra, De Arte Gimnastica, uma volumosa enciclopédia, em seis volumes. Para ele, a Ginástica é uma “arte médica”: por isso, a consideram o primeiro livro sobre Medicina Desportiva. Um ponto me parece dever realçar-se: a partir da Idade Moderna, a Ginástica surge integrada na Medicina, tenhamos em conta a definição de Ginástica de Mercurialis: “disciplina que tem por objeto a natureza e a propriedade dos exercícios físicos e que prescreve a maneira e as regras de como usá-los, visando uma boa saúde e uma sadia constituição física”.
Nos séculos XVIII e XIX, não diminuiu a admiração por Mercurialis e pelo seu agudo sentido de previsão que lhe permitiu abeirar-se de problemas que só, mais tarde, seriam equacionados e tentada a sua resolução. Entre as obras médicas, consagradas à Educação Física, será de realçar a do médico suíço Ballexserd, em 1762, Dissertation sur l’éducation physique des enfants depuis leur naissance jusqu’à l’âge de la puberté. Immanuel Kant define (muito cartesianamente, acrescente-se) a Ginástica: “educação daquilo que, no homem, é natureza” (Traité de Pédagogie, Alcan, Paris, 1886, p. 75). Era assim que se pensava, no século XVIII, foi assim que se pensou ainda em boa parte do século XX: importa dividir para conhecer; o ser humano é máquina, máquina tão-só e portanto na medicina, na educação física, no desporto, a investigação é da ordem da quantidade, do fisiológico, da medida; os grandes mentores a cultuar e a estudar são o Galileu, o Bacon, o Descartes, o Newton, o Comte, o Renan; desconhecimento absoluto que o método analítico e o método sintético não são antagónicos, mas complementares. A parcialização analítica é necessária, indispensável, mas seguida de uma integração sintética que complementa e restaura. No meu modesto entender, são três os momentos de um processo investigativo, na área do social e humano: percepção dos factos particulares, o que supõe análise, separação, descrição; explicação das relações que compõem o mesmo todo; percepção da totalidade, para não descambar-se na ilusão que um todo pode subsistir sem as partes, ou as partes podem subsistir sem o todo. “O sentido etimológico de sujeito (do latim sub-jectum, traduzindo:; submetido) entra em contradição com aquele que, hoje, o termo se reveste. No sentido actual, o Sujeito não é aquele que está submetido à autoridade de um soberano, definição muito clássica. Passou-se da submissão à autonomia” (Michel Wieviorka, Nove Lições de Sociologia, teorema, p. 26).
Permito-me discordar, em parte, de Michel Wieviorka. Quem vive em sociedade, em grupo, em equipa, é autónomo, mas está sujeito a regras, a normas, a instituições. É, afinal, um ser autónomo de relação. No desporto de alto rendimento, o grande objectivo é a vitória. O elemento de uma equipa, que não sentir este anseio de vitória, perde o vínculo emocional e mental que o deve ligar à equipa. Este sentimento deve viver, nele, e nos atletas, nos dirigentes, nos treinadores, nos médicos, nos fisioterapeutas, etc., etc., como sinal primeiro do grande objectivo dos treinos e das competições. Pep Guardiola, treinador do Barça, ao rever, filmada, uma jogada em que Keita teve uma oportunidade flagrante de golo, observou que, no banco dos suplentes, alguns jogadores saltaram na esperança que fosse golo, mas descobriu que outros, nem se mexeram, nem mostraram interesse pelo que se passava no “relvado”. Pois bastou essa atitude de indiferença, segundo relata um jornalista catalão, para que, todos eles, fossem dispensados, no final da época. Não digo (se é verdade o que li atentamente) que concordo com este rigor de tão afiadas unhas vingativas, mas passo a entender melhor a meticulosidade, no treino, das equipas lideradas pelo treinador Pep Guardiola. E até por que ele é interpelado na rua por gratidões anónimas que lhe apertam as mãos como se ele tivesse o segredo da perfeição… futebolística! Assumir a táctica como um valor partilhado, que beneficia todos e cada um dos elementos da equipa, assemelha-se a uma filosofia de vida, bem próxima do apotegma: “um por todos e todos por um”. No desporto e na vida, jamais confundir sujeito com indivíduo. Sem arrogantes especulações. O racionalismo inflexível dificilmente será preferível ao irracionalismo dogmático…"

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