Últimas indefectivações

quinta-feira, 11 de maio de 2023

Histórias Sem Interesse Nenhum (6) O último cigarro



"Cresci numa pequena vila provinciana e uma das imagens mais antigas da minha memória é a da contemplação de uma senhora, “de Lisboa”, fumando dentro de um carro junto à casa da família mais abastada, surpreendendo numa terriola onde nenhuma mulher fumava.
Aos 14 anos, eu já fumava tão regularmente quanto a clandestinidade me permitia e demorei muitos anos a perceber, por falta de informação, os malefícios do tabagismo. Estudei e trabalhei ao longo de duas décadas rodeado de fumadores e de tabaco, como se vivesse contaminado e não pudesse fazer nada contra. Mas passei os últimos a preparar-me mentalmente para a libertação.
Tive uma primeira experiência de privação durante quase dois anos, a meados da década de 80, pensei voltar a ser fumador ocasional, fracassei ao vício e voltei à luta, apoiado pela determinação de nunca permitir que os meus filhos me vissem fumar ou crescessem num ambiente poluído pelo fumo.
E, assim, no dia 8 de Julho de 1990, em plena bancada do estádio Olímpico de Roma, vendo jogar Diego Armando Maradona e Lothar Matthäus, dois dos melhores de sempre, fumei o meu último cigarro. Um momento tão inesquecível, o do apagamento, como fora aquele da ignição do desejo, vinte e tal anos antes ali ao pé da capela de São Sebastião.
Um ano depois, em trabalho, viajei com Rosa Mota nos Estados Unidos. Estávamos na imensa gare do novo aeroporto de Denver, quando ela me convidou:
- Venha aqui ver uma coisa.
Atravessámos o enorme saguão até se deparar ante os nossos olhos uma cena inesquecível: sobressalente no vazio da área gigantesca, estava desenhado no chão um espaço de uns 6 metros quadrados, onde se acotovelavam umas vinte pessoas, fumando, debaixo de enormes extractores que aspiravam uma coluna giratória de fumo como um tornado no meio de uma pradaria arejada.
Este episódio coincidiu com a renovação das instalações do Expresso na Duque de Palmela, quando o Desporto e a Economia passaram do 3.º andar fumegante para um rés-de-chão renovado e à estreia. Com o poder que o cargo me conferia, decretei livres de fumo três das quatro salas e o corredor da nossa secção, deixando a remanescente cumprir a função do quadrado-chaminé do aeroporto de Denver, para os inveterados dos charutos, cachimbos e cigarros sem filtro, grandes companheiros e amigos José Pereira, Daniel Reis e Francisco Rosa. A proibição e o exagero do afrontamento, contra o fumo e contra o cheiro, são fundamentais para o sucesso do ex-fumador, sobretudo nos primeiros dias, semanas, meses, nos primeiros dois anos até nos sentirmos completamente livres.
Creio ter sido a primeira zona de não fumadores da história da imprensa portuguesa, acompanhada primeiro pelos vizinhos da Economia liderada pelo Virgílio de Azevedo e, mais tarde, por outras zonas da empresa.
Anos mais tarde, voltei a abusar do poder impondo a mesma lei nas instalações do Record no Bairro Alto, afrontando o saudoso diretor, Rui Cartaxana, de cuja sala fugia a sete pés, por causa do odor impregnado a Gama de cachimbo.
Isto tudo passou-se nos últimos 30 anos. Hoje, ninguém fuma no trabalho, nem nos jornais nem nas outras profissões, porque a mais eficaz das medidas anti-tabágicos, agora novamente em cima da mesa legislativa, é mesmo a redução drástica dos locais onde se pode cometer este acto de insana estupidez.
Se é fundamentalismo, sejamos fundamentalistas."


Sem comentários:

Enviar um comentário

A opinião de um glorioso indefectível é sempre muito bem vinda.
Junte a sua voz à nossa. Pelo Benfica! Sempre!