"O onze surpreendia e a aposta era clara: entrar a matar! Na expectativa moravam anos de hegemonia, o temor habitual do adversário e uma pitada dos 15 minutos à Bobby Robson que, tanta vez, ajudaram o FC Porto a superiorizar-se aos adversários, quer nas Antas, quer no Dragão. Recriar-se então uma espécie de déjà-vu do espírito de conquista, do espírito combativo que tornou os azuis-e-brancos na referência futebolística nacional, era o objectivo (demonstrado pela tarja dos Super Dragões que lembrava o mostrar do símbolo). Um ambiente que se quer crispado para um adversário que tem por hábito atemorizar-se e mudar a identidade quando visita um Estádio que o obriga a passar uma ponte mental. Sim, a história da ponte que José Maria Pedroto transcendeu, recriou-se num Benfica que, raras vezes, teve a tranquilidade, identidade e, sobretudo, sabedoria, para conquistar a Invicta. No Dragão então, à custa da reacção baixa à garra do FC Porto, algumas das melhores equipas dos encarnados pereceram enquanto se tentavam encontrar. E o que ontem a equipa de Bruno Lage conseguiu fazer remete-nos para a tal história da ponte e para uma escala de sentimentos. Digamos que a letargia e o medo serão o ponto mais baixo nessa escala. Digamos que a garra, e a reacção emocional que põe de novo as coisas a andar, é necessária para ultrapassar essa mesma letargia. Mas há sentimentos acima. Sentimentos que contornam a garra e o lutar contra algo para nos levarem à tranquilidade, paz e alegria que deixam fluir a criatividade. E se o Porto está ainda preso na garra, na reacção contra algo, Bruno Lage trouxe ao Benfica a serenidade, a paz e, sobretudo, a sabedoria que transcendem tudo isso. Não admira pois que os remates de Rafa e de Félix tenham batido no cordame, e os de Marega, Herrera, Felipe&cia tenham, somente, estado perto de entrarem.
O princípio do fim: FC Porto tenta dominar a partir de trás. Casillas abre os braços à procura de opções, joga curto, FC Porto perde a bola uma vez, ganha, perde outra vez…
O clássico, não esqueçamos, foi lançado pelo signo do mais forte. Quem era mais forte, quem seria mais forte e outros que tais, seria a dúvida. Mas, se esquecermos a dualidade – em que haverá sempre argumentos para dois lados não muito distantes em termos de qualidade – resta a análise ao que foi feito de parte a parte. Retirando os filtros da posse-de-bola, do tempo a atacar, do sair-a-jogar, das oportunidades criadas e passar mais tempo do numa das duas organizações – que na maioria das vezes só servem para análises de realidade paralelas para metermos o Mundo na nossa caixa mental -, não interessando se dominou aqui ou ali, se o fez mais alto ou mais baixo, com ou sem bola, parece-nos claramente que o que o Benfica fez, no sábado à noite no Dragão, esteve, pelo menos, um furo acima do que fez o FC Porto. A sua organização defensiva ocupou melhor os espaços, a sua transição defensiva foi também de excelência, ela que é irmã gémea de uma transição ofensiva impressionante e já bem conhecida, assim como a aparição de uma organização ofensiva sempre muito bem pensada e que aproveitou muito bem os maiores espaços que o FC Porto concede nos corredores central e lateral.
Não quer isto dizer que o FC Porto de Conceição seja agora uma equipa banal e medíocre. O nível continua alto mas é menos fluído, em tudo, do que um Benfica que elevou os cinco momentos do jogo à excelência, pela excelente ocupação de espaços, pelas constantes coberturas e, com bola, pelo aproveitamento cirúrgico dos espaços que o adversário deixou. No FC Porto, dizia, isso tudo – mesmo com a inclusão de Adrián no onze – a organização saiu com mais areias na engrenagem, sendo que, principalmente a ofensiva, saiu, a espaços mais pastosa e sobressaltada, por ventura pela maior ansiedade demonstrada por um dragão que tinha mais a perder neste jogo que o seu adversário. Era preciso manter a coroa de campeão e, depois do golo inicial, a pressão fez-se sentir. Tal como na meia-final da Taça da Liga, logo após o FC Porto ter marcado, os habituais erros não-forçados obrigaram o FC Porto a ter que lidar com o encaixe de um golo sem ter sequer momento para saborear a vantagem. O perigo, sabemos, sentia-se aqui e ali, com as duas equipas a estarem de olhos postos na baliza do adversário, mas depois da vantagem conseguida o FC Porto entrou no dilema de tentar dominar, saindo a partir de trás, para impor a superioridade no jogo e mostrar ao Benfica quem mandava ali (e na Liga). Mas o controle emocional rapidamente fugiu às botas dos defensores portistas e a bola – num lance muito parecido àquele que deu o primeiro golo do FC Porto em Braga, contra o Benfica – foi parar às redes de Casillas.
É inegavelmente o momento do jogo, aquele em que a balança foi começando a pender, mentalmente, para um Benfica que, demonstrava já muita qualidade a descobrir caminhos onde outros, no Dragão, só vêem miragens. Foi aí que se foi a ponte, ou, se quisermos, que nasceu aquela onde o Benfica transcendeu alguma intranquilidade pela expectativa do que o FC Porto poderia fazer em contraponto com aquilo que ele mesmo poderia fazer. E feitas as contas no cérebro dos jogadores de Lage, tudo aquilo que ele poderia fazer… eles poderiam fazê-lo melhor.
Jogada padrão do Benfica na 2.ª parte (e que originou golo de Rafa) mostra as opções encarnadas para aproveitar o espaço azul-e-branco
Um momento que trocou às voltas ao jogo, e ao plano portista, que na 2.ª metade se viu irremediavelmente à procura de um golo por via de organização ofensiva. E dizemos trocou as voltas porque, aquilo que se viu em Braga (Benfica em organização ofensiva à procura do golo, toda a 2.ª parte) virou-se contra Conceição e deixou o Benfica explorar a sua maquiavélica transição e chegar, ele sim, a um segundo golo que confirmava tudo o que Lage e os seus jogadores tinham na mente para este jogo: amarrar os portistas em todas as zonas do campo e explorar quer em transição, quer em organização as brechas que ficam visíveis a quem disseca os seus jogos. E Bruno Lage dissecou (e de que maneira). E, mesmo quando isso não chegou (lembrem-se o FC Porto não foi mais fraco que o habitual e está ainda num nível muito bom) outro aliado do Benfica e inimigo do FC Porto entrou em cena.
E este não se pode dizer que seja um desconhecido, até porque já fez outras aparições em jogos deste calibre. Quem se lembrar do Porto-Benfica da passada época, no Dragão, lembrar-se-á de um domínio evidente e até massacrante que não se traduziu em golos, muito pela necessidade portista de afirmar a sua maior força em golos e mais golos. Traduzido, ao FC Porto não chegava só uma vitoriazeca por 1-0, ou até 2-0. A necessidade de golear e afirmar a hegemonia traiu os jogadores na hora de finalizar, e, neste sábado, nos momentos em que a organização do Benfica não conseguiu parar a do FC Porto, não conseguiu o FC Porto encontrar a tranquilidade necessária para marcar. E a isso não será alheio um bloqueio mental formado pela gigante necessidade de afirmar, pela via da força, e da garra, a sua superioridade em relação ao rival, traduzindo-se em atabalhoamentos, em finalizações a 200 à hora que, com outra tranquilidade, poderiam levar para o placard um resultado mais condigno com que o Sérgio pensa em relação ao valor das duas equipas.
Conceição não o admitirá, nem tem que o fazer, porque a cartada que o técnico campeão nacional mais gosta de jogar é a da força e a de não mostrar fraquezas. Mas estando ele (bem) atento a uma era mais organizacional (ele próprio lembrou que já não se ganha pelo grito) terá que interiorizar que o Benfica ultrapassou, em vários aspectos, a organização do FC Porto, estando um furo acima na ocupação e uso dos espaços, nos caminhos que escolhe e, principalmente, na fluidez com que o faz. Admiti-lo (ainda que para si) é o primeiro passo para entender que a versão anti-Benfica de Rui Vitória, provavelmente, já não chegará para revalidar o título. Pelo contrário, crescer uns furos na organização e, principalmente, controle emocional que se traduzirá em menor atrapalhação e alguma confusão no desenho das jogadas e, principalmente, na conclusão das mesmas, catapultará esta luta para níveis épicos. Sim, a constante transcendência entre Porto e Benfica depois de Jesus (com o Sporting e o Braga metidos pelo meio a espaços) tem sido a gasolina desta Liga. De tal modo que essa não merecerá o ódio e a negação constante de parte a parte. Pelo contrário, tem sido uma ajuda mútua que, ao estilo Ronaldo/Messi, é das poucas coisas que nos podemos orgulhar nesta Liga. E no dia que um ultrapassa o outro, resta ao ultrapassado perceber que no dia seguinte a Torre dos Clérigos, neste caso, não caiu, que a cidade continua de pé e que o clube está ainda longe de acabar. O medo épico de inferioridade, do qual nasce o atabalhoamento e a atrapalhação (que tanta vez castigou o Benfica no Dragão e nas Antas mas que desta vez se virou contra o feiticeiro) não tem razão de existir porque dá a oportunidade de transcender as condições que o criaram. E a escala acima da garra – sentimentos superiores que a equipa do Benfica levou para o relvado – está lá não só para o novo líder mas também para o FC Porto se assim o quiser, se por aí optar. Esta não é uma luta contra o Benfica (ou vice-versa) é uma luta por ser melhor a cada dia. Bruno Lage focou-se nisso e Sérgio também terá (esperamos) que o fazer. O futebol nacional agradecerá (e de que maneira)! e ficará à espera de como Benfica e FC Porto reagirão agora que as posições se inverteram novamente estando ainda 30 pontos em disputa.
FC Porto-Benfica, 1-2 (Adrián López 18′; J. Félix 26′ e Rafa 52′)"