"No passado dia 4 de Outubro aconteceu história para um modesto clube com o mesmo nome da cidade que o acolhe, Londrina, e que, pertencendo embora ao Estado do Paraná, dista da capital, Curitiba, cerca de quatrocentos quilómetros (380, mais precisamente), parecendo as suas gentes mais afectadas pelos temperos do Estado vizinho, Minas Gerais, do que pela agrura e frialdade do sul: o Londrina, actual nono classificado na Série B do campeonato brasileiro, sacando imprevistas forças lá dos fundos misteriosos de uma secreta crença, arrosta o poderoso Atlético Mineiro, O Galo, (com Robinho, Elias, Fred e companhia) e, segurando heroicamente o zera-a-zero durante os noventa minutos, acabaria, nos penalties, por sagrar-se campeão da Taça da Primeira Liga, a mais jovem competição do quadro competitivo brasileiro (esta é apenas a sua segunda edição) – uma verdadeira aparição que deixou as bancadas, vestidas de azul do céu e branco de candura, literalmente em estado de êxtase.
Mas nem é a singularidade do feito que me motiva à escrita, que nós bem sabemos todos como os jogos “mata-mata” têm o condão de nivelar as forças em contenda.
• Um episódio, aliás, bem à brasileira, despertou a minha atenção: por detrás da baliza de todas as decisões, uma mulher, de branco vestida e de joelhos, com mãos ora erguidas em sinal de imploração ora tecendo gestos sincréticos de sinal da cruz e outras bênçãos (o brasileiro gosta de misturar os antropomórficos ingredientes de sua fé) e implorando ao Alto, sabe-se lá a quantas entidades, os favores de uma vitória, ardentemente anelada por estas gentes cansadas do jejum de glória.
• Vamos lá saber porquê, mas o certo é que algo de estranho aconteceu: o Atlético Mineiro falhou dois dos remates da marca de grande penalidade, enquanto o Londrina convertia os quatro: 4– 2, no final! Onde, porém, a estranheza?
• Nisto: enquanto o César, o jovem guarda-redes do Londrina, defendeu, com destreza, aparato e sorte, dois dos quatro remates efectuados, o Vítor, guardião do Atlético, quase defendia dois dos quatro. Sim, quase. E é neste “quase”, que se encerram motivos sobejos de estranheza: esses dois remates foram adivinhados e ambos bateram, inclusive, no corpo do desafortunado Vítor que, pese embora o nome de vencedor, nada conseguiu fazer para impedir o destino fatal do chuto: a bola anichando-se no fundo das redes – enquanto a fervorosa aliada dos deuses celebrava, com vénias de gratidão dirigidas ao Alto: “gloria in excelsis...”
• Vamos, então, à reflexão: nexo de causalidade entre as preces da devota “torcedora” e o desfecho vitorioso para o seu clube? Resposta: sim e não – ou, não e sim.
• Não, no sentido de que não há um limbo intermédio, gravitando algures sobre as cabeças aflitas dos habitantes da Terra, alegadamente povoado de forças contrárias, por entidades falângicas pertencentes a exércitos opostos, como se o Universo e a Vida fossem regidos por dois princípios irreconciliáveis e equivalentes em poderio, numa popular ressonância da doutrina maniqueísta. Não: Deus não sofre dos caprichos do humor.
• Sim, neste sentido: a crença, potenciada pela emoção e pelo desejo, converte-se em intencionalidade operante que, através de um processo conhecido como “processo de interferência’, transformou aquilo que era uma mera possibilidade de sucesso do Londrina em realidade experiencial.
• Aquela mulher, vestida de sacerdotisa e implorando os favores do céu em acenos de esperança, ali exposta à contemplação de todos, em especial dos jogadores, a todos convocou ao exercício intensificador da crença, ou seja, ela constituiu ostensivamente um sinal desencadeante de um colectivo reforço mental, acreditando no desfecho favorável, tão nitidamente visualizado – por todos. A unidade na fé – eis a chave para o enigma. E, quando antes dos penalties, jogadores e equipa técnica, em círculo e abraçados, ensaiaram, de olhos fechados, aquilo que pareceu ser uma fervorosa oração, disse para comigo: o Londrina já ganhou!
• Por isso, a bola, porque impelida por estado de firme crença, em vez de travar a sua marcha ao embater no corpo do guarda-redes, nada a deteve – como se guiada pelo invisível impulso de uma demiúrgica intenção de todos – e do próprio jogador que chuta.
• É por estas e por outras que advogo de há muito, sobretudo nos clubes de maior dimensão, a criação de um gabinete transdisciplinar de inteligência competitiva, uma espécie de laboratório do sucesso.
• Mas os clubes continuam a preferir pagar ordenados astronómicos a atletas lesionados meses a fio e pagar obscenas comissões a agentes gulosos.
• Até aparecer quem se adiante e antecipe o futuro.
• Que conste: não estou à procura de emprego, embora tenha sido despedido desse sonho num clube que precisa como nunca de remédio para a sua astenia."