"Ganhou a presidência a Queimado graças, sobretudo, à carga policial que incendicou o parlamento - Quis Pedroto, ficou com Eriksson, eternizou-se
A morte levou-o ontem.
Fernando Martins tinha 96 anos. A presidência do Benfica chegou-lhe como um destino fintado. A AD ganhara as eleições e Sá Carneiro fora buscar o presidente da FPF para seu Ministro dos Assuntos Sociais: Morais Leitão. Não chegou a estar sequer seis meses no cargo, vinha da fundação do CDS com Freitas do Amaral, Amaro da Costa, Martins Canaverde, Lucas Pires, que haveria de subir a Ministro da Cultura, era, por essa altura, candidato a presidente da Assembleia Geral do Benfica, na lista de Ferreira Queimado. A RTP passara a emitir a cores, 59.000$00 custaram os primeiros aparelhos de 51 centímetros - e neles se pôde ver já, vermelha de sangue, a festa do Benfica campeão de 1980/81.
Na última jornada, na Luz, estava a ganhar 5-1 ao V. Setúbal - e ao cair do pano adeptos em euforia derrubaram o gradeamento e puseram-se em frenesim junto às linhas. Irrompeu a polícia de choque. As escaramuças subira do relvado às bancadas, afunilaram-se para fora do estádio. No ar, cassetetes e bastões, gritos e insultos. E em rodopio cães e granadas de gás lacrimogéneo. Houve 100 feridos - e suspeitando que poderia ter começado ali a perder as eleições, Queimado, responsabilizou a polícia pelos «excessos» - mas o comandante da força deu-lhe réplica:
- Limitámo-nos a cumprir um pedido do Sr. Gaspar Ramos para limpar o campo...
Seguiu a agitação para a Assembleia da República, César de Oliveira, deputado do PS, disparou:
- O desejo de bater e aleijar por parte do Corpo de Intervenção igualou ou excedeu as mais violentas repressões policiais de Salazar e Caetano. A barbaridade não poupou vendedores ambulantes, crianças, grávidas...
Lucas Pires tentou, em São Bento, desligar a acção policial do governo, mas em vão.
Fernando Martins, o candidato da oposição, aproveitou-se, com astúcia, do descontentamento - e assim ganhou as eleições.
Tomou posse a 29 de Maio de 1981 e no primeiro discurso lamentou que Queimado, no último acto de gestão, tivesse renovado com Baroti. Ficou com ele atravessado na garganta - e como o húngaro perdeu o campeonato de 1981/82 para o Sporting e foi eliminado da Taça pelo SC Braga - despachou-o pelo buraco do ponto. Escolheu Sven-Goran Eriksson para o lugar, mas a sua primeira ideia fora Pedroto, que deixando o FC Porto em rota de colisão com Américo de Sá, acabara por se comprometer com o V. Guimarães.
ERIKSSON A UM TERÇO DE PEDROTO
Eriksson jogara no Torsby, na II divisão da Suécia, na adolescência ia de férias para Inglaterra para assistir aos treinos do Liverpool ou do Aston Vila - e aos 28 anos terminou o mestrado em Educação Física com tese sobre o 4x4x2. O juri deu-lhe nota máxima, mas o único convite que lhe surgiu foi do Dogerfors da... III Divisão. Pô-lo na II - e saltou para o IFK Goteborg - e, aos 32 anos, ganhou a Taça UEFA.
Apesar disso, dessa vitória europeia que saiu de uma caixinha de surpresas, houve quem achasse que era jogar na roleta russa ir buscá-lo - e, depois, numa Assembleia Geral tumultuosa, cansado de insinuações e remoques, demitiu-se. Esteve à beira de um colapso cardíaco, foi assistido por um médico de emergência, lá mesmo no pavilhão. Oito dias se passaram - e acabou por retirar o pedido de renúncia. Eriksson chegou a troco de 360 contos de salário mensal, Pedroto, regressando ao FC Porto passara a receber o triplo - e Juca ganhava quase o dobro no Sp. Braga. Ganhou fama por causa do chapéu da Macieira - que lhe ofereceu 1000 contos pela publicidade - e logo marcou o seu estilo:
- O golo é o que mais interessa no futebol, por isso ninguém verá o Benfica a jogar para não marcar golos, jogue onde jogar, contra quem jogar.
Ganhou o campeonato e a Taça ao FC Porto, a Taça que o Benfica esteve para boicotar por ter sido marcada para o campo do outro finalista - mas
Martins não deixou. Convenceu toda a gente a ir lá jogar - e deu no que deu. Nessa altura, já era o que nunca deixaria de ser: amigo de Pinto da Costa. Que pelo tempo fora, o considerou o «melhor presidente da história do Benfica».
DESPEDIR QUEM NÃO DIZIA EUSÉBIO...
Em 1983, FM arrasou Jorge de Brito - e quando Eriksson se foi embora jogou outra cartada notável: Tomislav Ivic. Fugaz foi a passagem pela Luz, partiu porque
Martins se recusou a pagar-lhe em... dólares. E nessa época de 1984/85 em que se deu mais uma novidade histórica: negociou pela primeira vez publicidade nas camisolas, através de contrato com a Shell - o treinador foi Pal Csernai. Bruto e duro, estranho e egocêntrico, não tratava Eusébio que FM pusera treinador de guarda-redes, por Eusébio, tratava-o por... Iosef! E um dia, o King não aguentou mais - e atirou alto e bom som para Pal ouvir: «Este gajo, vejam bem... Até na Tailândia sabem o meu nome, ele continua Iosef para aqui, Iosef para ali»...
Csernai perdeu o título para o FC Porto, mas a Taça não. A Taça ganhou-a aos portistas. Aliás, parece que não foi ele que a ganhou já que, no final, Bento revelou:
- Não foi Csernai quem fez a equipa e quem deu a táctica. Carlos Manuel e Pietra é que lhe abriram os olhos...
E, para não perder o balneário, Martins mandou-o embora. Foi, pode dizer-se, o seu único falhanço na escolha de um treinador...
Com os 232 mil contos de Chalana o terceiro anel...
Não quis dar 350 contos à sua estrela, voltou atrás, deu-lje 1000 e assim fez o negócio da década
Em Março de 1984, na Taça dos Campeões, noite negra para o Benfica - e para Bento que do Liverpool de Rush & C.ª sofreu quatro golos, revelando:
- No primeiro golo fui encadeado pelos holofotes. Depois, desabou tudo ali, a cabeça ficou quente de mais, acabei por sofrer um dos maiores frangos da minha vida, com a bola a passar-me, estupidamente, por baixo das pernas, é a vida...
Apesar da eliminação,
Fernando Martins apresentou contas em AG e houv espanto: o futebol gerou um luro de 106 mil contos, nunca nenhum presidente atingira número assim.
Com o segundo título de campeão no bolso, Eriksson disse adeus ao Benfica, seduzido pela Roma - e Chalana também partiu. Antes do Euro, acertou com Valentim Loureiro transferência para o Boavista - por não lhe querer pagar 350 euros por mês. Mas, percebendo a tempo que poderia cometer erro histórico, o presidente deu-lhe, subtil como era sempre que tratava de negócios, a volta - e pagando em dobro o sinal que o jogador já recebera, subiu-lhe o salário para 1000 contos.
Nessa altura, Martins lembrou-se de uma outra inovação: colocou no novo contrato uma cláusula de rescisão de 24 mil contos. Mas, notando que o Bordéus enlouquecera por Chalana, só acertou a transferência quando os franceses lhe acenaram com 232 mil contos, oferecendo ainda ao extremo-gazua que fora campeão distrital de corta-mato de iniciados pela CUF e talvez tenha sido o melhor jogador do Euro 1984 apesar de Platini - 100 mil contos de luvas e 5000 de ordenado mensal.
Esses 232 mil contos foram sobretudo para fechar o Terceiro Anel. E na noite de inauguração, em Setembro de 1985, Martins não calou euforia:
- É talvez a maior obra feita em Portugal depois da construção da ponte 25 de Abril. O Benfica fica assim com o maior estádio da Europa.
Nesse ano, ninguém ousou defrontá-lo nas urnas - e não imaginara que pudesse ser o seu último mandato na presidência. Mas foi...
Levou o Benfica ao papa depois dum ataque bárbaro
Martins recolocou o clube a lutar por um título europeu mas para isso teve de fugir ao inferno...
Foi com
Fernando Martins que, depois dos seus fantásticos anos 60, o Benfica voltou ao fulgor da sua histórica - com nova final europeia. Na Taça UEFA de 1983.
Nos quartos-de-final, o Benfica eliminou a Roma - e antes do jogo, o presidente conseguiu que João Paulo II, o papa que fora guarda-redes, recebesse a comitiva no Vaticano. Humberto Coelho, o capitão, oferece-lhe uma bola autografada - e
Martins uma águia em prata. O Benfica venceu por 2-1, com dois golos de Filipovic - e Martins soltou a promessa: «eliminá-los vale 500 contos a cada um». Cumpriu.
Nas meias, a Universitatea de Craiova. Na Luz, empate a zero. Mas não a esperança perdida. Houve de novo empate, a um golo - e o Benfica passou. E, de repente, foi como se tivesse caído no inferno, o inferno que Bento contou:
- Quando íamos a entrar no balneário, sentimos um estrondo incrível. Um paralelepípedo estilhaçou a porta de vidro e caiu ao meu lado. Sentimos todos a vida em perigo.
O Benfica foi ao hotel lanchar - e, de súbito, encheu-se a praça de gente a ulular. Chalana nem teve tempo de acabar de comer a sandes. Um polícia grito que fossem todos imediatamente para o autocarro, outros de kalashnikov em punho abriram corredor de fuga. O autocarro arrancou, uma pedra estilhaçou-lhe o pára-brisas, Júlio Borges teve de receber tratamento médico, ferido na face por um pedaço de vidro. Ao longe, ouviram-se tiros.
Na primeira mão da final, em Bruxelas, o Anderlecht venceu por 1-0 e Fernando Martins, que nesse ano movimentara cerca de 500 mil contos com o futebol, queixou-se do árbitro:
- Para além de nos anular esquisitamente um golo, esteve sempre a prejudicar-nos.
Quinze dias depois, perdeu-se o sonho no empate a um. Que Benfica era esse? O Benfica de Bento, Pietra, Humberto, Bastos Lopes, Veloso, Alves, Shéu, Filipovic, Carlos Manuel, Stromberg, Chalana, Diamantino, Nené. Só de bilheteira, arrecadaram-se 78 mil contos, as despesas de organização andaram pelos 16 mil. O policiamento envolveu 700 agentes - e custou 3000 contos. (A EPUL tinha à venda um T2 em Telheiras por 2960 contos, que era pechincha dizia-se na publicidade. O bilhete mais barato para a Luz era de 1000 escudos, o mais caro de 3500. Uma bicicleta banal custava 6500 escudos - e a RTP deu 10 mil contos ao Benfica pela transmissão do jogo...)
Fernando Martins prometera prémio de 1500 contos a cada benfiquista pela vitória na final da Taça UEFA. Não ganharam - mas o presidente pagou-lhe na mesma. (Sim, essa era a política dele como líder do clube: pagar pouco de ordenados, pagar muito de prémios. Uma política que lhe deu sem dúvida um toque de visionário. E que resultava, quase perfeita...)
Como João Santos o pôs numa mágoa que nunca mais escondeu
Em 1987 e 1989 tentou por duas vezes regressar à presidência, os benfiquistas não lha deram mais
Para o lugar do irascível Pal Csernai,
Fernando Martins optou pelo regresso de John Mortimore. Perdeu o título de 1985-86 para o FC Porto - e a consolação voltou a ser a Taça, ganha ao Belenense. Na época seguinte, torvos foram os primeiros ventos: a Supertaça que Futre ganhou quase sozinho para o FC Porto com 4-2 na Luz e os 7-1 do Sporting em Alvalade. Não se conformaram sócios e adeptos que rasgaram cartões, cachecóis, bandeiras e soltaram a indignação sobre o pobre do treinador inglês. «Ainda hei de ver gente que humilhou Mortimore considerá-lo bestial» - apontou FM. E não se enganou. Puxou o orçamento do futebol para 300 mil contos - e acabou campeão. Por entre champanhe a jorrar na cabina. Rui Águas e Carlos Manuel jogaram forte ironia:
- A gente não tem a melhor equipa, a gente não tem o melhor plantel, a gente não tem o melhor treinador, mas é a gente que ganha o campeonato - e muito bem feito, e é muito bem feito!
Aliás, não foi o campeonato apenas, foi a Taça também: 2-1 ao Sporting. E com dobradinha no ano em que o FC Porto venceu a Taça dos Campeões com Artur Jorge, Mortimore partiu, levado por transe magoado:
- Não trabalho num clube onde há pessoas que não querem trabalhar comigo.
Referia-se, claro, à mudança na presidência. Para o lugar de Martins, fora João Santos. Nunca o escondeu, foi a derrota que mais lhe doeu:
- Os sócios não reconheceram tudo o que fiz pelo Benfica...
Toni conseguiu o milagre do regresso à final da Taça dos Campeões, foi campeão em 1988/89 - e nas eleições pela última vez. E João Santos deu-lhe 8-2 - mas não conseguiu, nem assim, roubar-lhe a eternidade...
Derrota com Salazar a fingir...
A primeira vez que
Fernando Martins se candidatou a presidência do Benfica foi em 1969. Quatro anos antes ocupara funções de suplente no Conselho Fiscal e em 1967 deram-lhe a presidência da Comissão de Obras do Novo Parque de Jogos. Cumpriu a missão com tal zelo, que grupo de sócios o quis lançar à presidência. Nessa época, o Benfica ganhou mais um campeonato e mais uma Taça - a Taça foi aquela contra a Académica que transformou o Jamor no maior comício contra a política colonial que o salazarismo viveu. Artur Jorge não pôde jogar - deixaram-no retido no quartel, em Mafra. Eusébio desempatou aos 109 minutos - e anos depois diria que foi o golo mais triste da sua vida, exactamente pelo que estava em causa. Nessa altura já tinham morrido mais de 5000 soldados em Angola, na Guiné, em Moçambique. Salazar já não governava, mas achava que sim - e para manter a ilusão, de vez em vez até lhe apareciam ministros em São Bento disfarçando que estavam a despacho. (No Verão de 68 cadeira de lona cedera, bateu com a cabeça no chão, traumatismo craniano acabou reduzindo-o, pouco a pouco, a quase vegetal.) Mulheres mais modernas começavam a tomar a pílula, as outras continuavam a ir à missa de véu e meias de vidro mas para abrirem conta bancária ou para tirarem passaporte todas eram obrigadas a pedir autorização aos maridos - e só podiam votar se tivessem curso médio ou superior. As eleições continuavam a ser fraude pegada - e para mostrar a diferença em relação ao país, o Benfica anunciou, então, eleições «livres» e com vários candidatos. Eram três e entre eles havia um aristocrata com brasão - e em homem do povo que fizera riqueza graças ao seu génio para o negócio, mas alguns continuavam a tratar por...
Pedreiro. Ganhou o aristocrata, das urnas saiu: Borges Coutinho: 58,4%; Fernando Martins: 24,9%; Romão Martins: 16,6%.
O outro abriu ao estrangeiro
Na segunda tentativa de ataque de
Fernando Martins à presidência do Benfica, a sua segunda derrota. Foi em Maio 1977 - e Ferreira Queimado bateu-o por pouco: 52,4% contra 47,6%. Sim, foi nesse mandato - em que Martins nunca deixou de se mostrar oposição, mas «oposição com seriedade» que se fez aprovar a autorização de utilização de jogadores estrangeiros no SLB, numa assembleia presidida por Adriano Afonso, que durou mais de oito horas, começou com 1468 sócios e acabou com 534, dos quais 472 disseram sim...
(...)"
António Simões, in A Bola