"Um tipo qualquer do Sporting marcou o terceiro – podia ir ver quem, mas não importa. Naquele dia, pareciam todos o Van Basten e nós uma colecção de pinos de madeira – e muita gente começou a deixar o estádio. Obviamente pensámos fazer o mesmo… Ainda estávamos na primeira parte e tudo acontecia ali, debaixo das nossas barbas, na “baliza grande”. Três secos do Sporting, em casa, e nós incapazes da menor réplica. Então, o meu irmão lembrou aquele mantra que os adeptos tantas vezes repetem sem pensar: “Benfica até morrer”. Era ou não era? Isso queria dizer alguma coisa ou não valia nada? Éramos daqueles que só aparecem nos dias de festa ou dos que sofrem com a sua equipa até ao fim?
E então ficámos. Nós e uns bons três quartos do estádio. O Sporting não marcou mais nenhum, mas também não fomos capazes sequer do ponto de honra. E, no entanto, ali por volta do minuto 70, veio o momento que deu sentido a tudo, à decisão de ter ficado ali com a cabeça entre os ombros, àquela noite que de outro modo seria para esquecer… A Luz inteira começou a cantar: “Eu amo o Benfica”. E cantou, cantou, cantou. Durante 10 ou 15 ou 20 minutos, sabe-se lá. Durante muito tempo. Em campo, a equipa continuava a não fazer nada, mas agora não era por impotência; era porque parecia ter parado para assistir, boquiaberta, àquele espectáculo insólito. Os adeptos não debandavam, não assobiavam, nem sequer se limitavam a cruzar os braços e esperar o apito final. Cantavam e aplaudiam. Se os jogadores não eram capazes, nós éramos; se o treinador não sabia o caminho, nós sabíamos; se alguém ali ainda não tinha percebido o que era o Benfica, nós explicávamos. E se alguém queria desistir, não ia ser à nossa frente.
Aquele momento absurdo – nenhum de nós o poderia saber então – explica, melhor do que qualquer outro, porque é que, no final do ano, o campeão seria a equipa que estava a perder por 3-0 e não a que estava a ganhar.
Não há propriamente muitas amostras tão representativas da Portugalidade como os benfiquistas. Eufóricos nas vitórias, catastrofistas nas derrotas, nervosos, fatalistas, peritos na arte do “eu avisei” e outros totobolas de segunda-feira. Mas, nos últimos anos, qualquer coisa aconteceu. Amadurecemos, ganhámos mundo, fizemos as pazes com muita coisa. Despedimo-nos das maiores figuras do passado e adaptámo-nos bem a um mundo futurista onde tudo quanto fazemos de bom ou mau pode ressoar, imediatamente, pelos quatro cantos do globo. Deixámo-nos de mitos, fizemo-nos à realidade. Custou, mas foi. E ganhámos com a troca.
No Verão, tínhamos perdido o treinador para um rival e o subcapitão de equipa para o outro. Não ganhámos nos 90 minutos um só jogo da pré-época e limitámo-nos a meia dúzia de contratações que não entravam no onze. A direcção avisou que os tempos eram de contenção financeira e aposta na formação. Lamentámos, mas aceitámos. Tínhamos acabado de ser bicampeões, de ir a duas finais europeias, vendido jogadores para as equipas mais poderosas do mundo, atraído a atenção de grandes patrocinadores internacionais, vivido muitas grandes tardes e noites, nacionais e europeias, em nossa casa e a muitos quilómetros dela. Este ano, seria doutros. Sem ressentimentos.
Até que Jorge Jesus nos deu uma razão para correr.
Primeiro, foi o discurso do “cérebro”. Que estava tudo igual na Luz, mas que o “cérebro” tinha ido embora. Mais as provocações e mensagens antes do jogo da Supertaça. Nessa altura, Jonas, um fenomenal internacional brasileiro com apenas um ano de casa, deu o mote. No fim da partida, foi ao autocarro do Sporting e apontou o dedo a JJ. “Respeita os jogadores do Benfica”, diz-se que disse. Mais tarde, veio a tentativa de humilhar Rui Vitória. O indivíduo que não tinha unhas para o Ferrari. Que não era colega dele porque não o considerava treinador.
Então nós, benfiquistas, que começámos a época com aquele slogan do “um passado de glória, um futuro de Vitória” a que era difícil saber o que faltava mais, se a qualidade poética, se a convicção. Então nós que, antes de começar o tal derby infame, aplaudimos muito quando o speaker leu o nome do nosso técnico, como quem tenta mostrar à ex-namorada de quem ainda gosta que está muito melhor com a nova. Então nós, que nos tínhamos resignado a ficar um aninho à míngua, fomos obrigados à voltar para a luta.
Jesus é um excelente treinador toldado por uma vaidade incomensurável. Com o ego a ocupar-lhe importante espaço cerebral com patetices como a ideia de ser o único técnico do mundo que se preocupa com quantos milímetros tem a relva, não vê que é, repetidamente ultrapassado não por um, mas muitos treinadores: Vítor Pereira, André Villas-Boas, pelo treinador do Bayer Leverkussen que lhe ganha sempre que quer, por uns albaneses quaisquer que lhe dão 3-0 sem espinhas, etc). E não lhe ocorre, calcula-se, que, em vez de tentar enganar os tontos falando de sorte e de azar, talvez devesse explicar como conseguiu perder uma vantagem de sete pontos. Depois de, no Benfica, já ter desperdiçado uma de quatro num campeonato e noutro uma de cinco.
Diz-se que o médico que só percebe de medicina nem de medicina percebe. Jesus é um caso idêntico, aplicado à ciência da bola. É espantoso que um profissional tão experiente não compreenda que o futebol é um desporto colectivo. Que ninguém está acima da equipa. Que os factores emocionais são decisivos. E uma série de outras frases batidas, justamente, por uma razão: por serem elementares.
JJ chegou a ter o campeonato no bolso, mas conseguiu fazer com que o título 2015/16 deixasse de ser uma questão desportiva e passasse a ser uma questão pessoal. De repente, não havia benfiquista, do adepto mais banal ao jogador mais bem pago, que não tivesse decidido que era questão de honra dar-lhe uma lição.
E foi assim que uma equipa que, em Dezembro, estava em terceiro lugar, a cinco pontos do segundo e a sete do primeiro, em Maio era campeã. Foi assim que uma equipa que, em 13 jogos, já tinha perdido três e empatado um, ganhou 20 dos 21 que faltavam. Foi assim que uma equipa que, além de tudo o resto, perdeu por lesão, durante longos períodos, o guarda-redes, o capitão e esteio da defesa, o trinco e os alas e jogadores mais desequilibradores do ataque, bateu o recorde de campeão português com mais pontos de sempre.
Naquele dia de Outubro em que estávamos a levar três na pá e, porém, cantámos o amor pela nossa equipa, mostrámos o que devia ser óbvio, mas que uns, às vezes, esquecem e outros, pura e simplesmente, nunca perceberam: que, no futebol, ninguém ganha sozinho.
Claro que Jesus tinha sido importante nas vitórias recentes do Benfica. Mas, ao contrário do que ele provavelmente ainda hoje pensa, quem as ganhou não foi ele; foi o Benfica. Era Jesus o cérebro? Não creio. Luís Filipe Vieira é que trouxe Jesus. É que segurou Jesus contra tudo e todos. É que trouxe Rui Vitória. Luís Filipe Vieira é que é o cérebro. Mas mesmo que o cérebro fosse Jesus. Quem ganha jogos, campeonatos, combates, não é o cérebro; é a alma. E a alma somos nós.
Foi a alma que acompanhou a equipa por todo o país e a empurrou para a vitória, mesmo na recta final, quando, no limite das forças por culpa de uma grande campanha internacional, não conseguia jogar bem. A alma que bateu o recorde de lotação das bancadas da Luz. A alma de Ederson, Lindelof, Gonçalo Guedes, Nelson Semedo, de uma série de miúdos que, há um ano, andavam entre o Rio Ave e a II Liga e, este ano, chegaram a silenciar Madrid, São Petersburgo e Munique. A alma de Jiménez, sempre sem medo de ser feliz. A alma de um miúdo de 18 anos chamado Renato Sanches que aguentou todos os ataques soezes da direcção de um clube que insistiu em comportar-se como um bando de arruaceiros (não há, a esse título, exemplo mais ilustrativo do que a expulsão de Bruno de Carvalho duma discoteca às cinco da manhã, em véspera de jogo do Sporting – que, já agora, o Sporting perdeu). E, é claro, a alma inquebrantável de Rui Vitória, que resistiu como um homem a todas as provocações, enquanto construía uma equipa que ultrapassou todas as dificuldades sem nunca se refugiar numa só desculpa.
Vendo as imagens das comemorações de ontem, é evidente para qualquer adepto que muitos rostos se repetem nas fotografias destes três anos: Luisão, Gaitán, Fejsa, Salvio, Jardel, Sílvio, André Almeida, Luís Filipe Vieira, Domingos Soares de Oliveira, Lourenço Coelho, Rui Costa, Shéu, até o departamento médico, até o treinador de guarda-redes. E Paulo Lopes, claro!, Paulo Lopes. E nós, nós todos lá atrás na bancada ou em volta deles. Nós, o Benfica.
O Sporting fez um grande campeonato. Adrien, João Mário, Bryan Ruiz, Slimani, entre outros, também estariam bem como campeões. Muitos sportinguistas que acompanharam e apoiaram orgulhosamente a sua equipa não são, com certeza, representados pelos modo do comité de incendiários que, este ano, entendeu gerir um clube centenário e com milhões de adeptos como se fosse uma associação de estudantes.
Mas este ano, depois de tudo o que aconteceu, tinha de ser nosso. E foi extraordinariamente nosso. Foi o ano do 35. O ano do primeiro tri de muitas das nossas vidas. O ano da alma."