"Há expressões que se gastam de tão boas que são. A ideia de que o futebol é a recuperação semanal da infância é uma delas, porventura a mais glorificada das tiradas sobre este desporto, da autoria de Javier Marías, escritor espanhol e apaixonado pelo Real Madrid que morreu em 2022, aos 70 anos. Não me dei conta de nenhuma homenagem feita pelo clube, nem que algum craque com veia mais literária lhe tenta dedicado um golo ou um passe de morte, o que é uma pena pois o futebol deve-lhe muito, alguém que lia o jogo para lá das quatro linhas e teve o cuidado de deixar uma frase feita para que todos possamos citar.
Terá sido usada pela primeira vez em 1992, numa crónica do jornal El País, sendo depois publicada em livro, no igualmente mui citado Selvagens e Sentimentais: «O que realmente sei é que não há desporto que angustie mais, quando é angustioso. Mais ainda: no meu caso particular, confessarei que é das poucas coisas que fazem com que hoje reaja — exactamente — da maneira como reagia quando tinha dez anos e era um selvagem, a verdadeira recuperação semanal da infância». Um pouco mais à frente conta um episódio que o fez libertar o hooligan que «todos os adeptos têm dentro de si».
Ok, já chega. As citações são como as fintas, há que saber parar.
Durante muitos anos, também eu, eterno adolescente e aprendiz de escritor à procura de ideias redondas, fiz da expressão uma espécie de mantra. A ideia do futebol enquanto portal, uma passagem secreta que, à semelhança do cinema, da música, do álcool ou da literatura, nos permite manipular (ou acreditar que manipulamos) a linha do tempo.
Uma pandemia e uma crise de meia idade depois — a pandemia já passou, do resto não estou tão seguro — concluí, por fim, que não é futebol, nem sequer os jogos de fim de semana que, tantas vezes, nos fazem voltar à infância, mas sim a bola. A bola enquanto bola, no meu caso uma bola de plástico de um euro, o objeto perfeito para atirar contra a parede de casa, hora após hora, dia após dia, tal como fazia em criança. Ou era isso ou bater com a cabeça. Em ambos os casos, foi uma libertação.
Mal acabou o confinamento e recomeçaram os jogos comprei uma bola a sério, tamanho 4. Nunca mais me separei dela. Levo-a para o jogo, às quintas-feiras, e meto-a na mala do carro ou na cadeirinha, apesar dos protestos recorrentes da minha filha, habituada que está à sua presença, mas não a que esta ocupe o seu lugar. Penitencio-me, claro, mais por obrigação que por convicção. Sabe-me bem olhar pelo retrovisor e vê-la ali, um equipamento tão ou mais importante que o ar condicionado, o rádio ou os vidros automáticos, ferramenta indispensável para enfrentar o tédio e relativizar os imprevistos, como sucedeu esta manhã, em que me apanhei a mim próprio a dar toques, de botas e blazer, enquanto aguardava pela assistência em viagem, depois de uma noite com os quatro piscas ligados. Ainda desafiei os condutores mais sorridentes a juntarem-se a mim, quem sabe jogadores de fim-semana como eu, mas ninguém acedeu.
«Que ridículo», terão pensado alguns. «Parece uma criança». Têm razão. Jogar à bola — seja no campo ou à beira da estrada — é sempre um pouco ridículo e infantil. Mas o que é que não é ridículo? Passar os dias fechados num escritório é ridículo. Viver para trabalhar (ou vice-versa) é ridículo. Escrever estes textos é ridículo. Ser adulto é, na maior parte dos dias, ridículo. No mínimo, uma canseira.
Quando um adulto se recria com uma bola não está apenas a dar toques, mas a «consagrar a utopia», como sugeriu Dinis Machado, no seu livro A Liberdade do Drible. Estou a dar à minha filha e à minha enteada ferramentas para que, um dia, também elas, possam olhar para uma bola de futebol — e quem diz de futebol diz de basquete, andebol, voleibol, ténis, ou outro desporto qualquer — e consigam, se não recuperar a infância, no mínimo crescer e envelhecer sem medo do ridículo. Que, pelo menos a espaços, se sintam tão leves e livres como eu."