"Eu sou português e portanto europeu. Não tenho qualquer razão para tirar daí um orgulho especial, mas também não tenho razões para lastimar qualquer assomo de complexos. Aliás dos meus saudosos pais a herança que recebi, em honestidade e generosidade (nada mais recebi porque, monetariamente, eram muito pobres) basta-me, para viver em paz com a minha consciência. Lastimo, sim, nem sempre ter sido fiel ao seu legado ético, que incluía a “inocência original” de Francisco de Assis. A vida, com muito do que nela é exaltante, chegava-me, por intermédio do seu legado ético, mais pelo seu conteúdo cristão (uma libertação em processo) do que pela certidão de idade de algumas ideias.
A transcendência, a superação de todas as alienações humanas pode encontrar-se no sentido último de um Deus feito condição humana. À pergunta ansiosa de João Batista encarcerado; “És tu o que vem, ou devemos esperar por outro?”, respondeu Jesus: “Os cegos vêem, os coxos caminham, os surdos ouvem, os leprosos ficam limpos dos seus males, os mortos ressuscitam, os pobres são evangelizados”. Nasce, assim, um mundo novo. E, discorridamente, sem cuidados de gongorismos literários, ainda acrescenta, aqui e além: “Bem-aventurados os pobres, porque vosso é o Reino de Deus. Bem-aventurados os que padecem de fome, porque sereis fartos. Bem-aventurados os que choram, porque ainda hão-de rir, um dia”. Uma velha utopia vai-se realizando, paulatinamente. O reino de Deus não é um território, mas uma nova maneira de compreender o ser humano, a natureza, a vida, o espírito e a própria história. Compreender… para transformar as pessoas e as coisas! A conversão postulada por Jesus não é tão-só mudança de discurso, de teoria. É acima de tudo mudança de prática, de comportamento. A teoria, por si só, não transforma. Só por intermédio da prática o pode fazer. Da prática, ou seja, da prática de cada um de nós. Trata-se de um caminho árduo, porque nem sempre a nossa prática acompanha os bons propósitos da nossa teoria. E converter-se não se resume a exercícios piedosos, mas numa nova existência que supõe respeito pelos outros e por nós mesmos. E a solidariedade, o cuidado pelos outros e a solidariedade, o cuidado dos outros por nós mesmos.
E, por isso, a conversão acontece no processo de uma realidade material objetiva, ou seja, onde há contradições dialéticas e não tão-só contradições lógicas. Onde terá de haver, necessariamente, uma teoria, um pacto social indispensáveis ao encontro, à generosidade, à cooperação, à interdisciplinaridade. Uma das características da nossa época é a lamentável ausência (ou a corrupção)de grandes imagens, de grandes ideias reguladoras. Como o “ethos” fundamental do humano: o amor a Deus e o amor ao nosso semelhante, principalmente o mais necessitado. No Desporto, n’A Busca da Excelência, “ a excelência não é um fim , mas sim um caminho. Árduo de trilhar, exigente e rigoroso. Requer foco e concentração admiráveis, nas tarefas a desenvolver- Um esforço empenhado e continuado. Uma paixão e um empenho capazes de ultrapassarem obstáculos e dificuldades. E, principalmente, a manutenção de toda esta enorme e incontida ambição, a partir do momento em que se atinge o sucesso” (Jorge Araújo, A Busca da Excelência, Guerra e Paz, Lisboa, 2011, p. 107). O Desporto não diz respeito apenas à epistemologia e à ciência do Desporto. O Desporto, como ciência, define, à sua maneira, a consciência da humanidade e descobre ainda, na inteligibilidade do real e na luta dos contrários, a tremenda atualidade do mais frontal individualismo e todas as dimensões do cuidado. Leonardo Boff escreve, com o acerto que lhe é habitual, “Cuidado significa então desvelo, solicitude, diligência, zelo, atenção, bom trato. Como dizíamos, estamos diante de uma atitude fundamental, de um modo de ser mediante o qual a pessoa sai de si e centra-se no outro, com desvelo e solicitude” (Leonardo Boff, saber cuidar, Editora Vozes, Petrópolis, 1999, p. 91). Georges Gusdorf, no prefácio ao livro de Hilton Japiassu, Interdisciplinaridade e Patologia do Saber (Imago Editora, Lda., Rio de Janeiro, 1976): “O remédio à desintegração do saber consiste em trazer à dinâmica da especialização, uma dinâmica compensadora de não-especialização. Não se trata de entravar a pesquisa científica por interferências que correriam o risco de falsear seu desenvolvimento. Mas precisamos agir sobre o sábio, enquanto homem, para torná-lo consciente da sua humanidade. Precisamos obter que o homem da especialidade queira ser, ao mesmo tempo, um homem da totalidade” (p- 24).
Quando se fala de interdisciplinaridade significa, antes de tudo, concluir que a categoria de totalidade desempenha papel primacial, na compreensão e explicação da realidade. “Apelar para uma perspectiva de totalidade significa ter em conta as estruturas envolvidas em cada questão, a sua complexidade, as contradições que encerram, etc., mas para melhor e mais eficazmente se lhe dar resposta, o que aliás acaba, necessariamente, por sempre apontar para uma instância prática de intervenção” (José Barata Moura, Totalidade e Contradição – acerca da dialéctica, Livros Horizonte, Lisboa, 1977, p. 115). Mas, apelar para a perspetiva de totalidade supõe, no meu entender, a dialética entre informações e conhecimentos diversos, contribuindo-se assim para a reorganização de uma ciência, ou de uma instituição, ou de um departamento. Assegura ainda e desenvolve a “educação continuada”, ao longo da vida, de todos quantos trabalham na investigação científica. Em síntese, a metodologia interdisciplinar postula uma constante reformulação das várias disciplinas científicas. Muitos dos especialistas, nas áreas que a “motricidade humana” engloba, ainda não se encontram preparados para uma incessante (e necessária) dialética com outras áreas do conhecimento, mostrando desconhecer que as interconexões com outras disciplinas permite o derrubamento da mania positivista que apresenta e cultua as ciências com fronteiras fixas. E permite ainda que se ponha em causa a inércia de situações adquiridas, com verdadeiros “senhores feudais” liderando departamentos… com portas e janelas trancadas para o exterior! Ora, sem interdisciplinaridade, não há progresso científico. E porquê? Porque a interdisciplinaridade permite o caminho a todo o solo arqueológico do saber, permite o diálogo com a cultura, com o ser humano, na sua complexidade. A propósito: quando escrevi caminho, logo me veio à mente o Gonçalo M. Tavares: “ A estrada é por onde passam carros, caminho é por onde a vida de uma pessoa avança” (JL , de 28/1 a 8/2 de 2022). Deixo uma interrogação: e na era da inteligência artificial, que já começou, como será possível a interdisciplinaridade, se um saber fragmentado, em migalhas, numa crescente multiplicidade de especialidades, triunfar, por fim? As relações entre o Homem e a Natureza, entre o Homem e o Outro Homem, entre o Homem e o Divino, exigem um Todo que seja tudo em todos. É impossível? Então, temos de o fazer. O Homem não tem uma natureza, porque é uma história – a história de uma criação contínua do Homem pelo Homem.
Como já o escreveu o matemático e filósofo Hans Freudenthal (1905-1990): “Temos que saber para onde queremos caminhar. Se a nossa grande meta é só o exame, então pensemos nas consequências”. Parafraseando este matemático notável, escrevo eu: “Temos que saber para onde queremos caminhar. Se a nossa meta é só a alta competição desportiva, então pensemos nas consequências”. Tanto o saber Antigo, como o da Idade Média, não ultrapassavam o horizonte epistemológico do cosmos. Na Antiguidade, também se adoravam deuses, que não se situavam fora, mas dentro do cosmos. Na efabulação quase romanesca da vida dos deuses gregos, nada se conhecia exterior ao mundo terreno. Na Idade Média, no entanto, acreditava-se piamente na presença de Deus, na Terra, mas um Deus transcendente, totalmente Outro, que se fez Homem, nascendo assim um Deus Humano e um Homem Divino. Mas, tanto no mundo grego, como no homem medieval, as ciências permanecem vinculadas à filosofia. O sábio (o “cientista”, digamos assim) é, ao mesmo tempo, um filósofo e um teólogo. Com o desenvolvimento científico que, a partir do Renascimento e da Reforma e dos Descobrimentos, rompeu muito para além do saber medieval, desmoronou-se o saber unitário que uma só pessoa podia abranger. A Terra não é mais o centro do Universo, nem o Ocidente é mais o centro da Terra. Desponta um novo modelo de saber, o qual deixou de ser a tradição e a repetição do que já se sabia, mas, ao invés, a investigação do que não se sabia ainda. Mesmo com palavras em desuso (por vezes, pouco apelativas para os alunos do secundário)o sábio é o aventureiro capaz de “cortes”, de “rupturas”, de novos paradigmas, de um sem número de descontinuidades. As nossas Faculdades onde se estuda o Desporto, os nossos cursos de treinadores abundam numa filosofia essencialista que rouba aos alunos a vontade de interdisciplinaridade e de uma lógica das multiplicidades. Um saber fragmentado, artificialmente cortado em pedaços é de um radical niilismo, em relação ao vivido e às dimensões sócio-históricas da ciência – nada tem a ver com o Desporto, onde não há jogos, há pessoas que jogam! O Desporto não pode estar desligado do ser humano, do mundo, porque o Desporto ou é humano, ou não é nada.
Quando, nas minhas aulas, aconselhava a ler, entre outros autores, aos meus alunos, os Contos Exemplares da Sophia, os Bichos do Miguel Torga, ou O Trigo e o Joio do Fernando Namora, aos meus alunos (repito-me), todos eles licenciandos em Educação Física e Desporto – eu já sabia que acres comentários de desagrado tentariam minar o meu trabalho docente, por parte de colegas que julgavam que só os antigos (ou atuais) praticantes de uma qualquer modalidade desportiva saberiam criar válidos conceitos operatórios ao estudo da teoria e da prática desportiva… como se um excelente gastrenterologista tivesse que sofrer, forçosamente, do estômago! Numa ciência humana (no caso do Desporto, uma das especialidades da Ciência da Motricidade Humana) qualquer ato, qualquer movimento, qualquer prática remetem para um todo que se perfila como fundamento: o ser humano. O brasileiro Hilton Japisassu, no livro acima citado, afirma, tendo em conta a historicidade do pensamento: “Parece ter chegado o momento de clarificar nosso vocabulário. Com efeito, ele coloca um grave problermas às relações interdisciplinares, quer porque não dispomos ainda dos conceitos necessários para exprimir o pensamento, quer porque utilizamos vocábulos com significações diversas. Portanto, convém que eliminemos certas ambiguidades envolvendo nossas palavras-chaves”(p. 71). Ora, a palavra-chave essencial, entre as demais palavras-chaves, no Desporto, é a pessoa humana. Volto a Hilton Japiassu: “se queremos precisar o sentido do termo “interdisciplinaridade” devemos estabelecer, antes, o que vem a ser a “disciplinaridade”. E aduz, linhas adiante: “Assim, para nós, disciplina tem o mesmo sentido de ciência” (op.cit., p. 72). E termino com dois pensamentos, que venho assumindo, há muitos anos: é indiscutível a historicidade da ciência, bem visível no incessante interrogar de quem, verdadeiramente, estuda o Desporto; o incessante interrogar não exclui, quase sempre exige, no Desporto, como nos demais saberes, o paradigma que o fundamenta, que é, neste caso, uma ciência hermenêutico-humana, pois que não há jogos, há pessoas que jogam. E sabendo-se qual o paradigma, é possível a interdisciplinaridade – que nos diz (um exemplo) que a crise que o futebol benfiquista atravessa não é, se bem penso, tão-só um mero facto desportivo, mas a ausência de um diálogo crítico e autocrítico. E a ausência de pessoas empenhadas, através de um trabalho interdisciplinar, em desmontar a lenga-lenga de forças mentais de bloqueio. Começa aqui a patologia de um saber que há muitos anos se instalou, na “nação benfiquista”, sem o desejo de abandonar caminhos já percorridos . O que o Benfica precisa (salvo melhor opinião)? Uma reforma das mentalidades, mesmo entre as pessoas que muito sabem de futebol!"