"Vamos a Paris! Vamos rever o Santos-Benfica que trouxe ao mundo do futebol internacional um nome que nunca ninguém mais esqueceu. Vamos começar a recordar, a pouco mais de um ano da sua morte, um negro absolutamente imortal.
Já faz quase um ano que Eusébio partiu para a planície da eterna saudade. Figura única, jogador único, amigo de muitos momentos.
Eusébio: não é um nome, é um adjectivo!
Sempre gostei de escrever sobre Eusébio. Escrevi livros sobre Eusébio. Usarei o que escrevi. Não faço cerimónias com a minha própria prosa.
Aliás, Eusébio escreveu-se a si próprio.
Relembremos o Benfica após a sua vitória em Berna, frente ao Barcelona. Benfica campeão da Europa.
E os campeões não páram. Em todo o lado se exige a presença das estrelas que cintilam nos céus do continente. Cinco benfiquistas extenuados pela final - Costa Pereira, Germano, Santana, Águas, Coluna e Cavém - fazem parte da Selecção Nacional que perde com a Argentina (0-2). Depois, o Benfica segue para Paris para jogar no Torneio do Racing.
Primeiro, mais um nome importantíssimo: Bélla Gutmann.
Bélla Gutmann: nasceu em Budapeste, em 1900; foi avançado-centro do MTK de Budapeste e jogou pela selecção da Hungria nos Jogos Olímpicos de 1920 (Antuérpia) e 1924 (Paris). Exerceu a actividade de professor de dança e iniciou a carreira de treinador em 1933, no Twente Enschede, na Holanda, ganhando o campeonato. Chamaram-lhe «Feiticeiro», «Mago», «Bruxo», «Profeta»... Ser campeão parecia um vício: no Ujpest, campeão da Hungria e vencedor da Taça Mitropa, uma espécie de Taça dos Campeões da Europa Central; no Ciakanul, vencedor da Taça da Roménia; de novo campeão e vencedor da Taça da Hungria com o Ujpest; campeão italiano com o Milan; primeiro treinador estrangeiro de um grande clube brasileiro e campeão paulista com o S. Paulo; campeão português com o FC Porto na sua primeira época em Portugal. Adepto de um estilo de jogo moderno, ofensivo, privilegiando as trocas de bola constante, Bélla Gutmann não gostava de se manter durante muito tempo no mesmo clube. Em 1958 está no Porto: comanda uma época fantástica do FC Porto, vencedor do campeonato com 81 golos em 26 jogos. Em 1959 transfere-se para o Benfica por verbas invulgares para a época: cerca de 400 contos por ano. O toque de midas continua a acompanhá-lo em Lisboa: campeão nacional na primeira e segunda épocas - o seu terceiro título consecutivo; campeão Europeu nos dois anos seguintes, torna-se o técnico mais bem pago do Mundo -salário fixo anual de 500 contos, acrescido de prémios (100 contos pela vitória na Taça de Portugal; 250 pelo campeonato; 300 pela Taça dos Campeões). Treina a Selecção Nacional, ele que já fora treinador da Hungria. Zanga-se com os dirigentes do Benfica, vai para Montevideu e para o Peñarol, ganha a Taça Intercontinental, regressa à Luz em 1965. Os tempos são outros. Um ano sem vitórias, o despedimento, a partida para Viena. Em 1973, nova experiência no FC Porto. Sem sucesso. Bélla Gutmann morreu em 1981.
Bélla Gutmann, portanto. O treinador de um Benfica, campeão da Europa que viaja para Paris, agora já com Eusébio integrado na equipa. A primeira jornada opõe o Santos ao Racing de Paris e o Benfica ao Anderlecht. Vencem os mais fortes: na fase final, pela primeira vez na história deste jogo fantástico que o Mundo adora, Eusébio defrontará Pelé. O Parque dos Príncipes será um palco de reis.
Ninguém esqueceu o nome
Eusébio recordou por várias vezes esse tempo fascinante: «Paris seria, se jogasse, o local do meu grande exame. Se jogasse, claro! Senti que o meu futuro se decidiria ali. E não me enganei. Contra o Anderlecht, joguei no lugar do Coluna, que adoecera com anginas. Foi complicadíssimo! O Anderlecht era uma grande equipa em formação: veloz, combativa, uma força. Uma surpresa para nós, que contávamos com facilidades. Eu estava cheio de nervos, não joguei muito bem, mas ganhámos 3-2 e marquei um golo».
Bélla Gutmann diz-lhe, antes do jogo começar: «Eusébio, você vai jogar hoje. Tenha calma. Faça tudo como de costume...» Eusébio fez.
Dois dias depois, a final. O Benfica entra em campo com a linha avançada de Berna: Coluna, Santana, José Augusto, Águas e Cavém. Eusébio fica no banco. Terá de esperar pelo seu momento. E que momento!
O Santos entra em campo com a linha avançada que soa como uma letra de samba: Dorval, Mengálvio, Coutinho, Pelé e Pepe. Aos 20 anos, Pelé está no auge do seu jovem esplendor. Derrama-o em campo: ao intervalo, já os brasileiros vencem por 4-0, com golos de Lima, Coutinho, Pepe e Pelé. O público do Parque dos Príncipes delira com a gala da melhor equipa do Mundo.
Eis agora um daqueles episódios extraordinários que faz do futebol um pasto fértil para lendas. Exaustos por um final de época alucinante, os jogadores do Benfica parecem desistentes. Logo no início do segundo tempo, Pepe marca o quinto golo. A hecatombe é, tudo leva a crer, inevitável.
Eusébio entrara para o lugar de Santana. Ergue-se no centro de uma equipa em destroços com o vigor de um deus antiquíssimo: é Hércules e os seus trabalhos, Atlas com Terra sobre os ombros, Sísifo empurrando a rocha pelas escarpas da montanha.
Durante meia hora foi verdadeiramente avassalador. Absoluto: é capaz de ser esta a palavra certa. Ao minuto 63 marca o seu primeiro golo; no minuto seguinte, inventa um «penalty» que José Augusto desperdiça; três minutos depois reduz para 2-5.
O Parque dos Príncipes entre em delírio. De dentes cerrados, absorto na bola, no jogo, nos movimentos próprios e alheios, Eusébio é maior do que Pelé, rouba-lhe o protagonismo, força-o a um papel secundário, subalterno. Milhares de pessoas, encantadas, enfeitiçadas, gritam o seu nome. Ele não as ouve. A sua obra está ainda incompleta. O seu esforço é monstruoso: por si só, reconstrói um conjunto em seu redor, carrega-o consigo no trilho de uma recuperação espectacular. A luta pode ser desigual, mas ele ignora-o. É um vendaval de músculos, tendões, ossos e cartilagens que desaba sobre o seu opositor entontecido. O seu entusiasmo desperta a rebeldia dos companheiros. O Benfica domina, agora, os acontecimentos. Eusébio marca mais um golo, faltam dez minutos para o final do jogo, há quem acredite ainda no impossível. Dez minutos não chegam. Pelé é Pelé e teima em recordá-lo àqueles que, por momentos, o esqueceram: faz o 6-3 final.
Dia 15 de Junho de 1961: o Benfica-Santos ficará riscado a giz na lousa dos acontecimentos inesquecíveis. «Eu respeitava-os, mas não lhes tinha medo», disse Eusébio, mais tarde. «Eram bons, eram fantásticos, mas também eram homens como nós. Além disso, entrei com a equipa a perder por 0-1. Deu-me uma certa tranquilidade: vendo bem, não poderia fazer muito pior nem estragar o conjunto. E estava alegre por ir defrontar o Pelé, o mestre do futebol. Contaram-me que o público gritava o meu nome. Não dei por nada. Estava entretido com a bola. Acho que Paris me deu sorte».
Paris também não é um substantivo; é um adjectivo."
Afonso de Melo, in O Benfica