"Amamos a 'Pulga', mas acabamos todos os dias com as hipóteses de conseguir recriá-la
Já se sente o vazio. É gelado, arrepia-nos. Um vazio que persiste mesmo que se tenham anunciado eternos em cima desta pele de galinha e envelheçam bem melhor do que os comuns mortais, naquele tempo só seu que leva mais tempo. É a tal métrica própria, só ao alcance dos deuses.
Já não há slaloms por entre cinco ou seis, Golos do Século com as letras todas e ainda, não menos importante, lágrimas a embargar a voz rouca do Víctor Hugo Morales.
Que era uruguaio!
Ésses e mais ésses - e não me vão levar a mal mesmo que a língua-mãe não deixe que os escreva assim - que não encontram fim e evoluem para símbolos de infinito gravados em chão imundo de cabine telefónica.
Não se veem sequer os antigos tubos de ensaio, recheados de cores e espessuras, misturados e refinados por eles até o golo perfeito ser reinventado, ainda mais redondo do que o anterior, por sua vez agora efémero e quase vulgar.
Até as rugas são trabalhadas em ginásios, entre pranchas e agachamentos, e o aperfeiçoamento da melhor forma de correr
Corpo um pouco inclinado, postura reta… joelhos fletidos, impacto suave com o solo, olhar sempre em frente, certo?
Ou talvez apenas diluídas, amaciadas, entre tragos de chá-mate.
Os trinta-e-muitos fizeram-se acompanhar-se de hat-tricks, bis, assistências e títulos de melhor marcador, mas também de notícias, que se entrelaçavam e contradiziam, de últimos contratos e potenciais novos clubes. Até de regressos ao passado. Ou reformas douradas. Inclusive de uma união improvável, daquelas que surgem de um
Se não lhe consegues ganhar...
E, de repente, a surpresa. O esquivar ao confronto. Um pelo caminho do deserto para continuar a alimentar essa gula grotesca, outro a querer divertir-se entre camones, carregando a bandeira do soccer. Ambos pioneiros. Cada um à sua maneira.
O vazio, outra vez. Chega-nos de um Olimpo ainda despovoado, com dois ou três aspirantes à imortalidade à espera de vez para a iniciação. Não se parecem com os Messis e Ronaldos da sua idade, mas também os originais de há 20 anos pouco tinham que ver com aquilo em que se tornaram. Não se imaginava tão grandioso destino, o domínio do jogo durante tanto tempo, secando tudo à volta. Juntos, eram o eucallyptus perfectum.
E se houver numerus clausus que impeça que mais do que dois deuses coabitem, dividam o planeta num mapa ainda cor de rosa, mas já digital, cheio de submenus e cenários possíveis? Poderá assim ser a próxima era ainda mais distinta?
Se criaram Haaland a partir do molde mais recente de Cristiano, Mbappé foi fenômeno com menos tempo de maturação do que o original. E com corte de cabelo também menos radical, fosse o de há mais de duas décadas resultado ou não da tonsura em que reafirmou a devoção ao jogo, após a rotura, rara, do tendão patelar, que quase lhe roubou a carreira dois anos depois de ter desmaiado para o futebol.
Sim, Kylian é mais Rônaldo do que Ronaldo, apesar dos posters colados nas paredes no quarto e dos olhos sonhadores de criança apontarem, a brilhar, para o português. Mas também é Cristiano. A combinação perfeita de potência, velocidade, inteligência e frieza.
Haaland sobreviverá até nos pólos deste vazio, naquele jeito de Schwarzenegger de produção nórdica independente, reciclada em plataforma de streaming. A última versão de um robô assassino, disposto a quebrar todos os recordes e mais alguns à frente de uma baliza. Potência, pegada, inteligência e frieza, e a despedida memorizada para o apito final
I’ll be back!
Serão eles os herdeiros certamente, mas apenas de um dos lados da genialidade.
É que Messi terá de deixar de ser Messi e abrir espaço para nova Pulga, tal como o fez Maradona, com tantos clones imperfeitos, amontoados sem vida após o seu abandono, para lá das linhas laterais. Mas será que, mesmo assim, a história se repetirá, com todas as suas diferenças e semelhanças, acidentes e coincidências, ou terá sido caso único, fenómeno inexplicável mesmo num país incubador de Dieguitos e Mafaldas?
Para já, a dúvida continua. O quadro genético raro. O fim do futebol de rua, dos ressaltos imprevisíveis nas calçadas que fortaleceram a técnica e inspiraram a reação, e o recalcamento e espartilhamento do individual. A vitória da tática. Da defesa sobre o ataque. Em número, depois em força. A constante manipulação do espaço. A pressão cada vez mais alta, forte e asfixiante. A velocidade que não permite que se contemple a arte.
O jogo evoluiu tanto que criou o paradoxo.
Adoramos Messi, mas em breve seremos incapazes de recriá-lo. Ou pelo menos inventar alguém minimamente parecido."