"Longe vão os tempos em que olhávamos para Bernardo Silva como o verdadeiro nº 10, aquele que, muito provavelmente, iria ser o pensador/criador de jogo ofensivo da Selecção Portuguesa, colmatando uma lacuna que se foi acentuando com o passar dos anos desde o adeus de Rui Costa e Deco. A técnica refinada, a classe, a criatividade e a capacidade para criar espaços onde eles pareciam não poder existir ajudaram a sustentar a ideia de que seria ele o nome maior de uma posição cada vez menos em voga no futebol.
Quis, entretanto, o destino, primeiramente, e o próprio Bernardo, depois, que assim não fosse. De médio-ala direito no 1442 clássico do Mónaco campeão com Leonardo Jardim a falso extremo direito, médio centro (interior esquerdo e direito) e falso 9 nos anos mais espectaculares da obra-prima de Guardiola na cidade de Manchester, Bernardo foi-se afastando cada vez mais da imagem que todos idealizámos.
Ao longo desse trajecto refinou ainda mais a técnica, apurou a classe, melhorou o entendimento dos vários momentos e das várias fases do jogo, manteve a criatividade e a capacidade de criação de espaços. Soube ser ainda mais intenso do ponto de vista mental (a “mãe” de todos as intensidades). Somou-lhe ainda uma capacidade técnico-tácnica de trabalho camaleónica só ao alcance dos mais inteligentes e dos mais humildes. A ponto de, em tempos mais recentes, colocar meio mundo a falar das suas novas funções.
Enquanto muitos teimam em querer classificar Bernardo como o novo lateral esquerdo dos citizens (havendo sempre nesta afirmação um je ne sais quoi com requintes de malvadez e ressabiamento perante um suposto episódio vivido momentos antes da saída do SL Benfica), Bernardo continua a deliciar-nos com a sua inteligência acima da média e com um sentido colectivo raramente visto em craques com a sua dimensão e cultura futebolística.
A forma como, na tal função híbrida, dá início ao processo de criação do jogo ofensivo do City como médio centro ao lado de Rodri para depois surgir uns metros mais à frente, em plena fase de decisão, ora como apoio para cobertura ofensiva, ora como garante da cobertura defensiva não espanta quem acompanha a carreira do genial internacional português. Tal como não deveria espantar a ocupação do corredor lateral esquerdo no momento de organização defensiva.
Porque o posicionamento, por si só, não define o jogador. Porque dentro da ideia e do modelo de jogo de Guardiola, Bernardo passa muito mais tempo em construção e criação do que a defender. Porque se meia dúzia de intervenções sobre o flanco esquerdo defensivo são suficientes para classificar um jogador como lateral esquerdo, então talvez devamos repensar a forma como classificamos os extremos/médios-alas das equipas com menos recursos técnicos que passam mais tempo a defender em bloco baixo numa linha de 5 ou 6 do que a atacar a baliza adversária.
O próprio Guardiola já foi confrontado com a opção e explicou-a com a maior clareza e naturalidade. Infelizmente a escuta activa não é o ponto mais forte do ser humano nos dias que correm, ao contrário da audição selectiva crescente, e o foco ainda se vai mantendo nas tais meia dúzia de acções ao lado de Aké, Akanji ou Rúben Dias.
Perdem-se assim os melhores momentos de Bernardo Silva. Perdem-se assim minutos que deveriam ser registados e compilados para que, mais tarde, todos possam finalmente perceber a mais-valia que representa Bernardo para a equipa, a selecção e o treinador/seleccionador que com ele trabalha.
A leitura de jogo, que o leva a pausar ou acelerar o ritmo, a forma como antecipa as acções defensivas e ofensivas, a capacidade para desempenhar várias tarefas ao longo de 90 minutos e até mesmo a liberdade com que debate ideias com Guardiola aquando de uma paragem de jogo (deliciosa a imagem do jogo de ontem em Leipzig) provam que Bernardo Silva é actualmente o ex libris do jogador de futebol total. Um regalo para quem gosta de futebol. Uma tortura para quem ainda pensa que os defesas só devem defender, os médios só devem construir e os atacantes só devem atacar.
E se antigamente, na rua, na escola ou em qualquer campo improvisado, todos nós conhecemos o miúdo que era literalmente o dono da bola, actualmente temos em Bernardo Silva não o dono da bola, mas sim o dono do jogo."