"Dias antes de se estrear na Taça dos Campeões Europeus, o Benfica recebeu o Barcelona no Restelo e realizou uma das mais brilhantes exibições da sua história destruindo por completo o adversário, marcando quatro golos e chutando por duas vezes aos postes.
As conversas são como as cerejas, diz-se. Talvez as crónicas sejam como as ginjas: recordação arrasta recordação e cada história traz consigo, presa pelo mesmo espigão, outras histórias.
Hoje recordo um episódio curioso dos primórdios do grande Benfica europeu. E, para isso, recuo até 1957. Setembro de 1957. Estavam os 'encarnados' à beirinha de se deslocar a Sevilha para o seu primeiro jogo da Taça dos Campeões que, como todos sabemos correu mal, com uma derrota por 1-3 que os deixou logo de fora na primeira eliminatória.
Não esqueçamos no entanto que já havia taças da Europa há muitos e muitos anos, que esta coisa de reduzir tudo ao que a UEFA regula e manda só serve para enganar pacóvios, o Futebol já existia organizado muito antes de surgirem os mostrengos que hoje em dia o lideram com mão de ferro e nem sempre muito limpa.
Um dia falaremos aqui da Challenge Cup (que punha em confronto desde 1987/88 os campeões dos países que compunham o Império Austro-Húngaro) ou da Copa Mitropa (iniciada em 1927 e que englobava os grandes clubes das federações centro-europeias), tal como por várias vezes já falámos da Taça Latina.
Pois em 1957, já o Benfica conquistara a Taça Latina (1950) e perdera no mês de Junho uma final da mesma prova em Chamartín, face ao Real Madrid.
Agora, no dia 5 de Setembro, defrontava o Barcelona, no Restelo.
O Barcelona já vencera a Taça Latina por duas vezes (1947, batendo o Sporting na final, e 1952), sonhando com a Taça dos Campeões Europeus conquistada até aí duas vezes pelos rivais do Real.
Ah! havia gente fantástica nessa equipa catalã: Ramallets, Gensana, Segarra, Seguer, Bosch, Luisito Suarez, Vergés, Basora, Sampedro, Tejada, Ramon Villverde, Ladislao Kubala.
Kubala, o grande húngaro, não veio a Lisboa...
Sorte dele.
Rezando à Nossa Senhora dos Afogados
Entre o público que se deslocou ao Restelo, estava Guilherme Espírito Santo que uns anos antes, precisamente em Barcelona, tinha levantado as bancadas do Les Corts graças à sua técnica maravilhosa.
Ele viu. E todos os outros foram testemunhos.
O Benfica destruiu o Barcelona! Não há forma de o descrever sem ser assim. Foi uma destruição pura e dura de uma equipa que toda a imprensa considerava muito superior.
Por falar em imprensa: Tavares da Silva esteve presente.
Ainda bem para nós, que gostamos da prosa escorreita e clara.
Tavares da Silva: já o tenho trazido aqui por diversas vezes.
João Joaquim Tavares da Silva: formado em Direito, jornalista de «A Bola» (não esta, uma que existiu entre 1932 e 1934), da «Standium», do «Diário de Lisboa», do «Norte Desportivo»; treinador da Académica, do Belenenses, do Lusitano de Évora, do Sporting; seleccionador nacional; o homem que inventou a expressão «Cinco Violinos».
Tavares da Silva nunca escondeu que o seu clube do coração era o Sporting. Por que haveria de fazê-lo? Faria dele mais sério, mais profissional?
Julgue o leitor por si próprio: «Arrasam-se-nos de lágrimas os olhos ainda hoje ao relembrar-mos aquele deslocação a Barcelona (N. do A. - 1940, derrota do Benfica por 2-4) que tão intensamente vivemos, nós, sportinguistas de gema, e por isso mesmo nos sentimos ontem à noite irmanados com Guilherme Espírito Santo no mesma luz, uma alegria superior à média dos benfiquenses».
Isso mesmo, benfiquenses como era uso à época.
Isso mesmo, é ao relato de Tavares da Silva que vamos recorrer para falar da impressionante vitória do Benfica sobre o Barcelona: 4-0!
«Ao começo, ainda os barceloneses deram uma imagem ou um apontamento de mérito, mas à medida que o tempo se gastava as operações do Barcelona diminuíam e as do Benfica cresciam de forma assustadora. Quando os lisboetas, que na época passada se cobriram de glória não só em território nacional mas também em terras de Espanha (N. do A. - Taça Latina), chegaram aos 4-0 (havia somente 49 minutos de jogo), o encontro findou... O adversário estava por terra, já não tinha velocidade, sentia-se diminuido e acabrunhado, estava completamente desfeito o seu poder de reacção e o Benfica tinha perdido, logicamente, a raiva do jogo. (...) O Barcelona era, verdadeiramente, uma imagem de Futebol esfrangalhado, impotente, com vários sectores desligados, e as suas unidades mantinham-se em campo só para cumprir a obrigação. Apenas aos 90 minutos do jogo acabou a tortura dos espanhóis. Uma única equipa vivia em campo; a outra estava morta».
Dificilmente haverá maior eloquência de uma superioridade. O Benfica havia transformado o seu adversário numa equipa banal e sem fogo.
Aos 35 minutos, Palmeiro tenta um remate distante: a bola sai alta, atrapalhando Ramallets que soca para a frente; Coluna vem na passada e é fulminante como um raio - o pontapé é tremendo, o golo magnífico.
Como estupenda foi a cabeçada de José Águas para o 2-0 em cima do intervalo.
O Benfica atacava com seis, às vezes sete e oito jogadores. Fernando Caiado e Coluna dominavam por completo as respostas do meio-campo do Barcelona. Cavém faz o 3-0 e Águas o 4-0 sobre o minuto 50, novamente de cabeça.
Os catalães podem agradecer à sorte. Vêem Coluna e Salvador estarem à beira do quinto golo; assistem à forma como Águas desperdiça um «penalty» chutando ao poste e como Calado faz a recarga à trave.
Envoltos num mar branco e encapelado (o Benfica jogava todo de branco) são náufragos à deriva, rezando à Nossa Senhora dos Afogados para que o tempo passe depressa e possam regressar a casa.
Só voltarão a defrontar o Benfica dentro de quase quatro anos: em Berna. Para conhecerem de novo o amargo da derrota."
Afonso de Melo, in O Benfica