"Manuel Francisco dos Santos nasceu numa terra chamada Pau Grande, a cerca de 70 quilómetros do Rio de Janeiro. Não tardaria a ser chamado por Garrincha, Mané Garrincha.
Há quem diga que só podia mesmo ter nascido numa terra chamada Pau Grande. Como o seu pai, aliás. E até todos os homens da família.
Garrincha foi um jogador tão único que não vale perder aqui tempo a apresentá-lo. Até porque não tenho assim tanto tempo nem tanto espaço. Mas vale a pena, certamente, ler o poema que Vinicius de Moraes lhe dedicou. E que se chamou «O Anjo das pernas tortas»:
«A um passe de Didi, Garrincha avança
Colado o couro aos pés, o olhar atento
Dribla um, dribla dois, depois descansa
Como a medir o lance do momento.
Vem-lhe o pressentimento; ele se lança
Mais rápido que o próprio pensamento
Dribla mais um, mais dois, a bola trança
Feliz, entre seus pés - um pé-de-vento!
Num só transporte a multidão contrita
Em acto de morte e levanta e grita
Seu uníssino canto de esperança.
Garrincha, o anjo, escuta e atende: - Goooool!
É pura imagem: um G que chuta um O
Dentro da meta, um L. É pura dança!»
A carreira de Mané Garrincha, «A alegria do povo» como também foi chamado, foi tão extraordinária como a sua própria vida. E daí talvez não tanto. Mais uma vez falta-lhe o tempo e o espaço. Mas Ruy Castro, o grande biógrafo do inimitável Nelson Rodrigues, o maior cronista do Futebol brasileiro, e também de Garrincha, tem um livro excepcional que é preciso ler: «Estrela Solitária - Um brasileiro chamado Garrincha». Remeto para ele.
E o Benfica?, perguntarão vocês. Onde anda o Benfica?
Perguntam e com razão. Estas crónicas servem para falar do Benfica. Vamos lá falar então de Garrincha e do Benfica. Já aó em baixo, a seguir ao subtítulo...
Garrincha quis jogar no Benfica
Mané Garrincha nasceu em 1933. Entre 1953 e 1965, viveu anos fantásticos no Botafogo. Depois jogou no Corinthians, na Portuguesa do Rio, no Altético Junior e no Flamengo.
Em 1970, Garrincha já era um homem destruído pelo álcool. Vivia com Elza Soares.
Elza Soares: cresceu na favela do Padre Miguel, no Rio de Janeiro, aos treze anos já era mãe, aos catorze surgiu num programa de televisão para caçar talentos decidida a ser cantora de samba; a sua figura enfezada, escura, provocou risos e piadas, o apresentador chegou mesmo a perguntar-lhe:
-Mas de que planeta vem você?,
ao que ela respondeu, altiva:
-Do planeta da fome!
Elza Soares: nos anos 60 estava no auge e o Rio de Janeiro vivia o entusiasmo da sofisticação do samba e da propagação da bossa-nova.
Elza Soares: o amor mais tórrido de Garrincha.
Em 1970, Elza Soares andava em digressão pela Europa: Garrincha andava em digressão com ela. Bebia muito e procurava, desesperadamente, um clube onde pudesse jogar alguns jogos de exibição em troca de punhado de dólares. Em Itália conseguiu actuar por meia-dúzia de clubes amadores no início do ano; em Abril, Elza Soares veio cantar ao Estoril-Sol e Garrincha desembarcou em Lisboa.
O Benfica não quis Garrincha.
O Benfica não aceitava jogadores estrangeiros: nem mesmo Garrincha.
E Garrincha já não era Garrincha; era uma sombra patética de Garrincha.
Garrincha foi ao Estádio da Luz de fato e sapatos trocou umas botas com Eusébio para alegria dos fotógrafos. Foi o mais perto que estiveram ambos de jogar juntos.
Em 1972, Garrincha ainda fez dez jogos pelo Olaria: depois acabou.
Já vos falei de Ruy Castro e da sua biografia de Garrincha. Então aproveito e apresento-vos a forma como ele descreve a passagem de Garrincha por Lisboa e quase pelo Benfica. Leiam-no:
«Garrincha aproveitava as excursões de Elza, dentro e fora da Itália, para ir com ela a procurar os times locais.
Em Abril, Elza foi cantar em Portugal. Garrincha seguiu com ela para Lisboa e, à sua maneira, simulando um olímpico desinteresse, procurou o Benfica. De terno e de sapatos bateu bola com Eusébio no Estádio da Luz. Os portugueses ofereceram-lhe uma bacalhoada regada de vinho Gatão e digestivo de bagaceira, mas argumentaram que o Benfica que o Benfica tinha por tradição não contratar jogadores estrangeiros, nem mesmo brasileiros - o que então era verdade. Não lhe disseram, é claro, mas, mesmo sem essa cláusula, o que um crepuscular Garrincha iria fazer num time que ainda era quase a selecção portuguesa de 1966, terceiro lugar na Copa do Mundo?»
A vida de Garrincha pode não ter ficado ligada ao Benfica, mas ficou ligada a Portugal. Nove anos mais tarde, o Belenenses recrutava um jogador chamado José Geraldo Filipe, conhecido por Neném. Era filho de Garrincha. E morreria em 1992, num acidente de viação perto de Fafe."
Afonso de Melo, in O Benfica