"Houve um mar imenso, encrespado, de jogadores banais. Não há nada de mal nisso. Se não fossem esses não haveria os outros. Não jogam sozinhos, é assim tão simples.
Admirámos uns quantos lendários, entre os quais Maradona, Pelé, Eusébio, Ronaldo-Fenómeno, Van Basten, Zizou, Platini e Di Stéfano.
E outros que ainda estão a caminho da lenda, apesar de ser certo que lá cheguem sem muito mais esforço, como Messi e Cristiano.
Houve um oceano, um dos maiores, de grandes jogadores que fracassaram a mandar a partir do banco.
Alguns, sim, poucos, atingiram patamares semelhantes àqueles a que subiram com a bola colada ao pé, como Kaiser Beckenbauer.
É verdade que grandes treinadores têm o mérito de fazer parte do mapa das estrelas, depois de abandonada a condição humana de futebolista fracassado lá em baixo na Terra. Mourinho, Brian Clough, Ferguson e Capello, todos bons exemplos.
Outros tornaram-se técnicos-filósofos, e aí teremos sempre o velho Bielsa. Sentado numa geleira, a olhar de queixo apoiado na mão fechada para o centro do relvado.
Claro que Guardiola está no nosso coração como revolucionário-experimentalista. E houve quem pregasse uma nova doutrina ao longo dos tempos. O catenaccio de Helenio Herrera, o pressing alto de Sacchi, il albero (a árvore) de Ancelotti ou o totalvoetbal de Michels.
Houve jogadores de talento que não quiseram ganhar raízes no banco, e ficaram-se pela oratória e retórica. Valdano escreveu livros. Doutor Sócrates foi um futebolista de intervenção, mesmo depois de deixar a carreira.
Antes de todos eles e no meio de todos deles está Cruijff. Filósofo, revolucionário, experimentalista, grande treinador, enorme jogador. Foi completo. O maior de todos, sem ter sido maior do que cada um deles.
Deixou-nos a finta, que a minha geração viu João Vieira Pinto perpetuar nos relvados portugueses. O penálti de dois pais, que não era dele, mas que tornou famoso e vive ainda nos dias de hoje. Recordamos um golo impossível, de ginasta, todo no ar, de perna esticada, frente ao Atleti. A arrancada fatal na abertura da final de um Campeonato do Mundo, com Vogts a ter de ir-lhe às pernas, sem misericórdia.
Como treinador, um Dream Team, com Koeman, Guardiola, Bakero, Michael Laudrup, Stoichkov e Romário.
Como ideólogo, tanto mais.
É a alma do Barcelona do passado, presente e futuro, cravada mais profunda do que o próprio tiki-taka.
Foi Barça de Rijkaard, Barça de Guardiola. E, por consequência, é dele a Espanha campeã do mundo e da Europa. Está na génese de um Bayern que deixou de ser só espírito de luta e que se quer avassalador, mas que ainda o tem como Yin e Yang, mentor e inimigo, porque deverá ser o Barça o seu maior rival na Champions. Está na Mannschaft alemã, campeã do mundo.
É respirado em todos os corredores do Ajax. do futebol holandês. Vive no Arsenal de Wenger. Nas ideias de Bielsa. De Hiddink. Também de Klopp. Já viveu, pasme-se, nas de Van Gaal. No Milan de Sacchi, já aqui falámos dele.
Cruijff não precisou de ser o melhor jogador ou o melhor treinador, embora tenha andado sempre no topo, para ser o futebol himself. O senhor futebol.
Arte. Poesia. Ataque. Cultura. Procura de espaços. Posse. Velocidade. O melhor do jogo. É arte, mas com vitória. Uma não existia sem a outra. Não fazia sentido.
Como disse Vic Buckingham, foi uma bênção para o futebol. Um Pitágoras com botas, escreveu David Miller.
- Don't run so much, Football is a game you play with your brains!
Não seremos mais felizes sem ele, mas nunca esqueceremos o seu legado. É verdade que ele podia ter-vos explicado melhor, mas não era para que entendessem de imediato.
- If you're not there, you're either too early or too late.
Na verdade, Cruijff não morreu. Resolveu a equação, viu antes que a porta abria para fora. Tornou-se eterno. E já não temos por que chegar demasiado tarde ou demasiado cedo. Ele estará sempre lá, no grande círculo, com um chupa-chupa no canto da boca. Até sempre, Johan."