"Em miúdo queria ser o Zico. Ou então o Schuster ou o Platini. Depois, antes de deixar de ter idade para sonhar com isso, imaginava-me Raí ou Riquelme. Sempre médios, habilidosos, dos que punham a bola onde punham os olhos, daqueles que fazem o campo parecer maior mesmo se capazes de colocar a bola nos espaços mais pequenos. Era o tempo do bota-sapato, para escolher primeiro com quem se queria jogar, em pisos de terra desalinhada e na procura do golo entre dois pedregulhos colocados à distância. Se fosse hoje e me perguntassem, queria ser o Thiago Alcântara. E mais quereria depois da entrevista que deu ao Independent, jogando quase tão bem - e o quase não é artifício linguístico, que tão bem é impossível – quase tão bem com as palavras como com a bola.
Agarrado às lições de quem cresceu em Barcelona, explica que ali no coração do jogo que é o centro do campo não há tempo para identificar caras, quem é quem em cada momento. Assim, o primeiro olhar, crucial, tem de ser panorâmico, sobre todo o jogo. Já com experiência vivida, acrescenta ter desenvolvido um instinto que ajuda a perceber cada jogador no contexto de uma partida. Identifica tal capacidade como uma “segunda natureza” que adquiriu, e que soma a um conhecimento anterior (no futebol diz-se sempre de antemão, mas é um clichê horrível), em relação a cada colega, do modo como gosta de receber a bola, em que pé, a que velocidade e se mais atrás ou adiante. E daí é um passo até ao passe, naquela que será a maior lição de todo o discurso, e ao conceito de “intensidade do passe”. É o contrário do passe que se esgota em si. Mais que tenso é intenso, mais que preciso é específico. É feito para aquele jogador, naquele jogo e mediante um jogar. Tem destinatário imediato no companheiro, mas objectivo final na ideia partilhada. Um dia, para definir o potencial de um jogador, um treinador de topo disse-me: “entrava fácil no nosso meiinho”. O meiinho é muito mais que um exercício lúdico de treino, pode mesmo ser a prova dos nove, pelo teste que é às ferramentas técnicas e mais ainda à rapidez e qualidade da decisão. Chamam-lhe rondo os espanhóis, e tantas vezes vimos as suas melhores equipas das últimas décadas transformarem todo um relvado numa espécie de rondo gigante. E mesmo sem ver os treinos, tenho aposta firme sobre quem será o melhor nos meiinhos, ou no rondo, do Bayern.
Não faltam craques de corpo inteiro na Baviera, nesta equipa devolvida à dinâmica trituradora sob o comando de Hans-Dieter Flick, Hansi para os amigos. Já agora, foi titular na final dos Campeões de 87 perdida para o FC Porto, mas poucos se lembrarão disso, que outras eram as vedetas do onze, como Brehme ou Matthaus. Memórias à parte, o Bayern é de novo muito pressionante sem bola e incrivelmente acelerador nos corredores laterais. Nunca seria, contudo, tão entusiasmante sem o critério dado por Thiago. E Kimmich também, sejamos justos, que há uma parelha que se completa, entre quem mais desequilibra e mais equilibra. Acontece que não há gestos como os do mais velhos dos manos Alcântara, mais ano e meio que Rafinha, ambos filhos de Mazinho, campeão do mundo em 94. Quase todos os jogadores procuram recepções orientadas, ele apenas não consegue evitá-las. Antes que o problema surja, já tem a solução. Explicar o que é decidir bem sobre um relvado tornou-se: basta ver jogar Thiago Alcântara, o arquitecto do passe.
PS: Depois de ver o que voltei a ver dele, ontem no Bernabéu, e se Thiago Alcântara já fosse nome escolhido, também não importava nada de ser o De Bruyne.
Nota colectiva: Flamengo - Noutro patamar… qual é a dúvida? O que Jorge Jesus está a conseguir no Brasil é para valer teses de doutoramento e garantir estátua no Maracanã. O regresso do Flamengo mantém a linha entusiasmante com que fechou a época passada. Alguns destes troféus têm valor relativo, sobretudo a Taça Guanabara, mas a questão é que os ganhou todos. E o último foi perante um bom rival, o equatoriano Independiente, vencedor da Taça Sul-Americana (a Liga Europa de lá) e jogando com menos um homem desde os 23 minutos. Jesus fez a natural alteração estratégica imediata, de um avançado por mais um médio, mas ainda fez mais dois golos, assentando a organização defensiva, que foi fundamental, sobre uma dupla de centrais que julgo só teria jogado junta uma vez na vida, uns dias antes. Na história do Fla há, e haverá por muito tempo, um antes e depois de JJ.
Nota individual: Alphonso Davies – Só esta frase valia um filme: nasceu num campo de refugiados do Gana e aos 19 anos é titular do Bayern de Munique. Mas é mais que isso, está feito uma máquina em aceleração no corredor esquerdo do conjunto bávaro. Para a frente é demolidor, nas conexões que estabelece e na qualidade com que assiste, para trás chega a ser impressionante a forma como corrige, com velocidade rara, os erros que a idade ainda não o ensinou a evitar. Alaba tornou-se central esquerdo, Gnabry ou Coman podem ocupar a vaga ofensiva, porque o resto faz o miúdo nascido no campo de Buduburam, em Novembro de 2000, filho de pais fugidos à guerra civil da Libéria. Acabaram como refugiados no Canadá, que atribuiu nacionalidade a Davies em 2017 e o tem já como maior figura da sua selecção. É impressionante."
Carlos Daniel, in Bola Rede