"A Ciência da Motricidade Humana (CMH) constitui um processo inacabado se, no seu estudo, às questões epistemológicas não juntamos as questões ideológicas e políticas. Alongando o olhar pela imensidão das práticas onde a motricidade humana pode corporizar-se, se deixarmos de lado os velhos naturalismo e positivismo, são a epistemologia e a política que melhor nos podem elucidar. Isto, sem qualquer presunção, ou a prosápia, de tudo saber resolver, esquecendo “o primado teórico do erro” de Gaston Bachelard. É que a Verdade, neste nosso mundo, esgueira-se ao interesse do mais aplaudido dos especialistas. Não há Verdade, há verdades – tantas como as pessoas que delas se ocupam. Por isso, as ciências não são mais do que um processo provisório de verdades, provisórias também. A Verdade não passa de uma ignorância ou de uma tradição. E a ciência é um processo em constante construção, jamais a encontraremos feita de uma vez por todas. Estou a escrever banalidades, eu sei. Mas, criticamente, não há critérios científicos absolutamente inquestionáveis. Não há dogmatismo que não nos empurre à esclerose do pensamento. Por isso, quando em 1968 ingressei no INEF não desconhecia o racionalismo cartesiano, a matriz fundante do “físico” da “educação física”. Nem podia ser doutra forma: o dualismo antropológico cartesiano ressaltava, como reflexo, do dualismo social e político da burguesia, a grande vencedora da Revolução Francesa. No entanto, também não me custa reconhecer que é, a partir do legado da Revolução Francesa, que a democracia, a liberdade, os direitos humanos deixam de ser simples argúcia verbocrática. Embora, paulatinamente, a visão, a organização e a construção social do mundo deixem de ter Deus como o seu principal quadro de referência. Nietzsche não teve receio de repetir, com firmeza: “Deus morreu!”. E a “morte de Deus” significava também, para ele, a cultura que via em Deus o princípio de todas as coisas. De facto, na sociedade hodierna nota-se um cheiro forte de vitória da filosofia de Nietzsche. Vive-se num mundo sem Deus que, “a priori”, parece funcionar bem melhor do que nas teocracias (deste e doutros tempos).
A Educação Física nasce no século XVIII e portanto adestrada pelo racionalismo e o mecanicismo ambientes. Será interessante relembrar o Platão do Górgias, que vê, na ginástica, a arte destinada a cuidar do corpo são, e a medicina como a arte que se ocupa do corpo enfermo. Rousseau, no Emílio I, 42, sublinhou que a vida é movimento e que a criança dele necessita é uma opinião unanimemente partilhada, pelos pedagogos, através dos anos. Em qualquer teoria educativa, o jogo ocupa um lugar primordial. Mas, aqui, há um ponto a realçar em Rousseau: julgo eu ser o primeiro autor que faz sua uma teoria do conhecimento que descobre no movimento um auxiliar precioso ao desenvolvimento cognitivo da criança, ao invés do que opinaram Platão e Locke: aquele, um velho prócere do idealismo; este, um liberal e um empirista, ao jeito britânico. Em Platão e Locke, a educação física é educação corporal e o corpo não passa de matéria. “A matéria destila espírito” de Teilhard de Chardin não boiava (nem podia boiar) ainda à tona do conhecimento científico. Escrevia eu acima que o “físico” da “educação física”, na década de 60 do século passado, era de matriz cartesiana, o que provocava, necessariamente, uma clara indefinição do paradigma que fundamentava a educação física e o desporto e do método adequado à sua investigação. Com Mário Wilson, como treinador do Belenenses (em 1970, se não estou em erro) propus à direção do meu clube assentisse no contrato de um professor de educação física que desse ao treino uma versão verdadeiramente científica. E o Dr. José Paúl, licenciado em Educação Física, passou a ocupar-se do “treino físico” dos futebolistas “azuis”, com benefícios evidentes para o desempenho dos jogadores. A propósito, relembro a frase de Norman Augustine (in Science, 279, 1998, 164-165): “Se pusermos o nosso esforço só na lógica e na capacidade técnica, como no passado, perdemos a corrida na competição pela atenção do público”. De facto, para uma verdade científica se impor há muito mais em jogo do que a simples área do laboratório, ou da biblioteca. Eu sei o que isso é e por experiência própria…
A cultura modernista-iluminista, donde nasce a Educação Física, era (nalguns casos, é ainda) mera guardiã de um passado que desconhece as transformações que o pensamento científico vem sofrendo. E a insustentabilidade de tal situação gera uma confusão insanável: um certo setor da Comunicação Social, se quer discutir cardiologia, ou direito administrativo, convida (e muito bem) para o efeito, cardiologistas ou especialistas em direito administrativo. Todavia, se pretende adentrar-se na vasta problemática do desporto, o painel dos participantes é entumescido de pessoas que, sem prática, manifestam verdadeira aversão pelo estudo e pretendem destacar-se (supremo contrassenso), na hora das conclusões. Uma disciplina de “Epistemologia”, ou de “Filosofia das Ciências” parece-me essencial, nos cursos universitários de Educação Física e Desporto, para complementar o ascenso da cultura técnica e tecnológica, que parece monopolizar a cultura, no desporto e… não só! “Novas experiências virtuais, novas simulações computacionais vão, a pouco e pouco, conduzindo a diferentes modos de fazer ciência, alterando a noção do que é ser cientista e os próprios conceitos de natureza, de realidade e de verdade. Pouco dada à reflexão ou à produção teórica, a nova cultura tecnológica responde a uma questão fabricando um instrumento. O seu principal valor é a imediatez. É a cultura da oportunidade, do “just do it”. Entretanto, cada vez menos ser culto significa ler livros, conhecer teatro, música clássica, arte (…). Numa época de mudança acelerada, trata-se simplesmente de “estar informado” (Maria Manuel Araújo Jorge, in Revista Portuguesa de Filosofia, Julho-Dezembro de 1998, p. 553). O próprio Jean-Marie Lehn, Prémio Nobel da Química, afirma, sem temer ou tremer, que a investigação molecular é a ciência do futuro, tendo como fito percecionar “como funcionam os sistemas moleculares, quer dizer, como funcionamos todos nós, seres vivos, já que não somos outra coisa senão sistemas moleculares extremamente complexos” (Alfredo Dinis, in Revista Portuguesa de Filosofia, Julho-Dezembro de 1998, p. 556). Ou seja, com um pouco de bioquímica entenderei o Homem e a Vida, a Sociedade e a História. E um poema do Torga, ou da Sophia…
Quando cheguei ao INEF, entrara de estudar Epistemologia, sob a orientação paciente do Doutor Armando Castro, professor da Faculdade de Economia da Universidade do Porto-. Na minha licenciatura em Filosofia, nas disciplinas de Teoria do Conhecimento e de Ontologia, conservo na memória que a Epistemologia não se estudava. E, na Ontologia, e com palavras incolores, só muito rapidamente se invocava o Merleau-Ponty. De Bachelard, Althusser, Piaget, Foucault, Popper, Kuhn e Feyerabend - nada! Nem uma rápida análise! Silêncio sepulcral! E, quando li que, na maturação de uma ciência, os momentos de descontinuidade, ou seja, de cortes epistemológicos, de mudanças de paradigma, de revoluções científicas, eram a necessária desordem que anunciava uma nova ordem, logo me ocorreu propor outro tanto, para a História da Educação Física e Desporto, através de um novo paradigma que, hoje, assim defino: “a energia para o movimento intencional e solidário da transcendência, ou superação”, que abrange o jogo, o jogo desportivo, o desporto, a gestão do desporto, a dança, a motricidade infantil, a ergonomia, a reabilitação, etc., etc. Aliás, mudanças de paradigma que se descobrem em Marx, em M, Weber, em Durkheim, em Manheim e outros sociólogos do conhecimento - conhecimento que é sempre tributário da História e portanto, como a História, em perene movimento. Com algum rigor hermenêutico, propus um “corte epistemológico”, não só como um facto científico, mas também como um amplo fenómeno cultural e político, quero eu dizer: económico, social, paidêutico, formativo e filosófico. E que desse “corte” resultasse uma nova ciência hermenêutico-humana que, dialeticamente, destruísse, superasse e conservasse o “tradicional” na educação física e no desporto e no treino desportivo. A recusa liminar dos mais radicais defensores do racionalismo e do positivismo e dos intelectuais orgânicos da mediocracia não me enclausurou num pessimismo de desistência. E continuei a estudar para que a Ciência da Motricidade Humana não se transformasse, para mim, num mero exercício de erudição. E, durante treze meses, fui mesmo adjunto do “mister” Jorge Jesus, no departamento de futebol do S.L.Benfica. Corria o ano de 2013…
Também tentei uma análise lógica da linguagem científica, mas a denominação “Educação Física”, que não atende, nem satisfaz às condições sociais reais de trabalho dos “professores de Educação Física”, de conteúdo que excresce muito para além da pedagogia, parece, para já, inamovível. As ciências nascem e desenvolvem-se em circunstâncias históricas bem determinadas. E a denominação “Educação Física” tem a marca de um racionalismo definitivamente sepulto. Estou certo que, dentro de três ou de quatro gerações, o paradigma desta profissão será outro, bem mais amplo e de mais complexa interdisciplinaridade. Na Proposta de Lei, apresentada à Assembleia Nacional, para a criação do INEF, pode ler-se: “O problema central de toda a obra educativa é o da formação dos educadores e a esta regra não podia fugir a educação física; ele constitue talvez o seu lado menos aparente, mas é com certeza o mais importante. Para que o sistema da educação física racional triunfasse primeiro, e depois não fosse comprometido, tornava-se indispensável que o compreendessem e servissem homens convenientemente habilitados, pois que ele pressupõe uma pedagogia; e pior do que não fazer ginástica nenhuma seria sujeitar o organismo a exercícios mal dirigidos”. Enfim, sem mais delongas, o início de um racionalismo que ainda sobrevive nalgumas mentes intransigentes e (digamo-lo sem receio) ultrapassadas. Não escondo, porém, que o racionalismo, o positivismo, o materialismo e o cientismo convergiram em direção a uma praxis política ilustrada, como o confirmam os partidos socialistas do mundo ocidental. Quando, na década de 70 do século passado, me deitei a uma reflexão sobre a filosofia implícita, na educação física, designadamente a educação física escolar, admirei, sobre o mais, o triunfo de um biologismo, oriundo da Medicina. Só que, anos passados, começa a assistir-se a um rigoroso questionamento da ciência, da filosofia e da teologia. E o “corte epistemológico”, segundo Bachelard e Althusser, era um elemento prestante do próprio desenvolvimento científico. Por isso, o traço mais típico da epistemologia situa-se no facto de ela ser “polémica”, desafiante, desinstaladora, ao rejeitar os “obstáculos epistemológicos” de determinados discursos, onde há mais ideologia que ciência. E eu também adiantei a necessidade de um “corte epistemológico”, no seio da Educação Física. E rodeou-me então um hálito gélido de desconfiança… no seio da Educação Física!
Sendo o conhecimento concebido como uma produção histórica, a epistemologia revela sempre, como um processo, o conhecimento científico. E como um processo não só biológico, mas também filosófico, social, político, religioso. Compreende-se, assim, que o papel insubstituível da epistemologia se resuma, para alguns autores, “em dar à ciência a filosofia que ela merece. Todavia, trata-se agora de uma filosofia aberta e móvel, que renuncia à forma sistemática, a seu espaço fechado e ao imobilismo, para arriscar-se, ao lado dos cientistas, nos campos novos do pensamento. Donde se conclui que o objeto da filosofia das ciências tem que ser um objeto histórico. Toda ciência deve produzir, a cada momento de sua história, suas próprias normas de verdade e os critérios de sua existência (…). Resulta então que a epistemologia é indissociável da história das ciências” (Hilton Japiassu, Introdução ao Pensamento Epistemológico, Francisco Alves, Rio de Janeiro, 1988, p. 73). George MacDonald, professor do Departamento de Filosofia da Universidade de Leeds, em carta ao Times, escreveu: “Uma das principais características que distinguem a Universidade de um mero agregado de departamentos de ensino e investigação, é a presença nela de uma aproximação filosófica ao conhecimento: a preocupação pelos supostos básicos, a metodologia, os critérios de verdade, as implicações morais e as conexões entre as diversas disciplinas. Uma instituição que toma a decisão de prescindir da filosofia não está simplesmente a abolir um departamento entre muitos, mas está a prejudicar severamente o seu direito a denominar-se a si mesmo Universidade” (in Associação de Professores de Filosofia, A Filosofia face à Cultura Tecnológica, Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra, 1988, p. 11). O nosso hábito tão português de solilóquio entre surdos impediu o diálogo entre duas formas diversas de pensar. Por outro lado, a incomensurabilidade dos paradigmas sucessivos, de Thomas Kuhn, também não deixou que eu fizesse epistemologia, na Escola onde trabalhava. Por isso, não assaco tão-só defeitos aos “outros”. Eu também os tenho. E, afinal, se houve, então, quem fizesse “ouvidos de mercador” ao que eu dizia e escrevia e tentasse condenar-me ao ostracismo, também venho merecendo a confiança dos que me lêem e dos que muito me ensinam e dos que também lutam por um novo paradigma. Melhor é errar por ter feito qualquer coisa, do que não ter erros porque nada se fez…"