"No dia 6 de Agosto de 1945, «Little Boy» caiu sobre Hiroshima. Outro rapazinho pensou que tinha caído o céu. Chamava-se Shintaro Yokoshi, tornou-se português e do Benfica.
HIROSHIMA é a maior cidade da região de Chugoku, na ilha de Honshu, a maior do Japão. A história de Hiroshima é velha e carregada de simbolismo. Fundada em 1589, viveu guerra após guerra, desde a batalha de Sekighara à implementação da Sanyo Railway, em 1894, durante a primeira guerra sino-japonesa, do profundo desenvolvimento industrial levado a cabo no decorrer da guerra russo-japonesa à importância d sua localização estratégia na I Grande Guerra, sendo local de aprisionamento de mais de 500 prisioneiros de guerra alemães.
Mas, no dia 6 de Agosto de 1945, às 8h 15m da manhã, Hiroshima tornou-se sinónimo de morte.
Dizem que estava um céu azul claro sobre a cidade. Ouvia-se ao longe o matraquear dos motores do B-29 pilotado pelo coronel americano Paul Tibbets. O avião chamava-se Enola Gay. Hoje, este nome soa mais facilmente aos ouvidos de cada um por via da música dos Orchestral Manoeuvres in the Dark. Na altura era simplesmente o nome da mãe do piloto: Enola Gay Tibbets. No ventre de Enola Gay viajou «Little Boy» a primeira bomba atómica lançada sobre um pedaço da humanidade. Robert Serber, aluno de Robert Oppenheimer, o «pai da bomba», foi o responsável pelo nome carinhoso dado ao engenho macabro. A sua imaginação era feita de sons agradáveis: apelidou a bomba que caiu, pouco tempo depois em Nagasaki, de «Fat Man».
A destruição de «Little Boy» foi horrenda: a violência da fissão nuclear do urânio-235 condenou à morte imediata cerca de 80 mil pessoas, destruindo 69% dos edifícios da cidade. Até final do ano, o número de mortos subiu aos 140 mil. A população de Hiroshima era de aproximadamente 340 mil habitantes.
Quando saiu o sol
NO meio dos escombros sobreviveu Shintaro Yokoshi: tinha nove anos.
Yokoshi veio para Portugal há mais de 50 anos. A sua vida é profundamente ligada ao Benfica. Ainda há pouco tempo descreveu ao «Correio da Manhã» como assistiu ao infernal acontecimento de Hiroshima. Às 8h 15m da manhã no dia 6 de Agosto de 1945 estava na escola. Pouco depois passeava-se por entre corpos carbonizados de crianças da sua idade e de adultos que tinham feito até aí parte da sua vida. O rapazinho Yokoshi precisou de uma memória infinita para nunca mais esquecer os estragos que outro «Rapazinho», o que viajava dentro do Enola Gay viria a provocar na sua existência.
Aos 22 anos chegou a Portugal e já tinha sido nadador Olímpico. Ficou. Pelas suas mãos passaram os grandes nadadores portugueses dos últimos 40 anos, um deles seu filho, Alexandre Yokoshi, atleta do Benfica, 27 vezes campeão nacional sénior (100 e 200 metros bruços e estafetas) e finalista Olímpico nos jogos de Los Angeles, em 1984, nos 200m bruços. Foi por influência do mestre Yokoshi que Alexandre Yokoshi chegou ao Benfica. Nessa altura, Shintaro Yokoshi era treinador de natação no Benfica, como o viria a ser igualmente na Selecção Nacional. Aliás, também Ana Cristina Yokoshi, filha de Shintaro e irmã de Alexandre, foi atleta e campeã pelo Benfica. Muitos anos depois da maldita bomba.
Nessa entrevista ao «Correio da Manhã», datada de Agosto de 2003, Shintaro Yokoshi contava: «Estava na escola e estava sentado junto à janela. De repente vi uma luz muito forte, muito clara, muito mais forte do que a do dia. Ouvi um grande estrondo, parecia a explosão de uma bomba mesmo perto do meu corpo. Olhei na direcção de onde tinha vindo a explosão e vi uma enorme bola de fogo. Era criança, julguei que tinha caído o sol... E depois veio um vento muito forte que destruiu todas as janelas da escola.»
Passaram-se quase setenta anos. Shintaro Yokoshi encontrou uma nova vida em Lisboa e no Benfica. A memória, essa, nunca prescreve..."
Afonso de Melo, in O Benfica