"Sei da lógica impositiva das audiência. Mas não me curvo perante a inundação intragável da banalidade
1. A exageração é um dos traços da contemporaneidade. Por exemplo, os constantes alertas coloridos de meteorologia sobre a fatalidade de uns pingos de chuva em Junho ou de uma rabanadas de vento de 40 Km, tal como há semanas aconteceu com a misteriosa depressão 'Miguel'. Esta lupa aumentativa dos (não) factos e das (muitas) palavras é um dos traços do que gira à volta do futebol. O tempo de pousio futebolístico - quase reduzido a pó - é agora pasto para toda a sorte de demasia e de imoderação. Não há dia em que não se fale de ninharias de milhões sobre milhões, a propósito de transferências, empréstimos, cláusulas de rescisão e até - imagine-se tal contradição - de aquisições conhecidas a custo zero! Agora há espaço televisivo para, horas a fio, nos repetirem até à náusea, as (im)prováveis, (in)desejáveis e (im)possíveis transacções, em misturas capciosas de «pelas informações que obtivemos, estamos em condições de afirmar», «ao que julgamos saber de fonte segura», «parece haver movimentações nesse sentido», «tudo está preso por detalhes», etc. Em todos os programas sobre futebol é raro ouvir o moderador (?) avisar da falta de tempo, ao invés do que acontece no resto da actualidade onde a norma é ele ou ela dizerem «conclua, por favor», «30 segundos para finalizar», «o nosso tempo esgotou-se». Em certos programas (não todos, felizmente), há intervenientes que cumprem o seu tempo de glória, com fanfarronices, truques, gritaria de taberna e outras formas pouco urbanas e elegantes de serem pagos. Durante o prime time da noite agora e por mais quase três (!) meses só dá mais mercado, mais transferências e outros mais todos à condição para perorar horas seguidas sobre hipóteses que, nestes casos, bem poderíamos definir como algo que não é, mas que a gente faz de conta que é, para ver o que seria se fosse. Uma pessoa que abra a televisão nos canais informativos só vê essa névoa espessa em torno da bola. Mesmo os canais, que souberam construir o seu caminho e prestígio ao longo de muitos anos, renderam-se à tabloidização futebolística (e não só) e dão-nos mais do mesmo. Matraqueiam os espectadores (aqui não ficaria pior essa pérola do AO: espeta... dores) com antevisões, previsões, explicações, sugestões, constatações em redor de (quase) nada. Eu - que sempre gostei muito de futebol - já não suporto tanta conversa, tantos lugares-comuns, tanto bulício artificial, tanta especularão, sem sentido, tantas imagens repetidas, tantos euromilhões num mercado de pessoas, tanta peleja sobre minudências, tantos absolutismos de retórica... Tudo em dose cavalar, com o devido respeito pelo animal e o pedido de indulgência do PAN.
Até 31 de Agosto (uff!) o prime time dos canais noticiosos generalistas é quase todo delicado ao dito mercado, se exceptuarmos o canal público. Aproveita-se a circunstância dessa obscenidade anti-desportiva de o período de transferências entrar pela época dentro, em nome do primado do dinheiro da mercadoria. Junta-se o inútil ao patético. Perdeu-se o sentido da proporcionalidade.
João Félix, a fazer fé em certos programas e nos respectivos rodapés ou oráculos, já terá sido transferido para aí umas 50 vezes para uma mão-cheia de clubes-lavandarias. Já terão perguntado por Bruno Fernandes não menos de outras 50 vezes. Já não há balizas que cheguem para tantos guarda-redes novos no Benfica ou no Porto. Enfim, dantes dizia-se que o segredo era a alma do negócio. Agora parece que estes programas são a nova alma do negócio. Só não sei para quem, mas suspeito.
A diversidade, que deveria advir da concorrência, esfuma-se no monolitismo. Se exceptuarmos o serviço público de televisão, encontrar um mero nicho televisivo fora da futebolândia + novelândia é um achado. Cultura? Ciência? Música não-pimba? Literatura? História? Etc., onde param essas extravagâncias? Mais tarde ou mais cedo se pagará o excesso, a imoderação, a destemperança, a estupidificação, a alienação. A não ser que, em Portugal, nos conformemos com esta triste realidade: futebol mais futebol mais futebol para encantar as massas (em ambos os sentidos) e nos distrair ou abstrair de tudo o resto.
2. Outra exageração habitual é a da distância que vai do bestial a besta e vice-versa, normalmente alcandorada a título de primeira página ou à abertura de programas da rádio ou televisão. Um grande humorista brasileiro, Millor Feranndes, chegou a caricaturar este exagero: «o futebol é o ópio do povo e o narcotráfico dos media».
Vivemos freneticamente o tempo dos superlativos, dos endeusamentos sem travão e da obsessão pelas medidas da quantidade: mais, maior, super, hiper, maxi, numa caminhada aumentativa sem stop. No futebol já não chega o excelente, o fabuloso, o prodigioso, o notável. Sabe a pouco. É preciso chegar ao monstro, ao colosso, ao gigante e tantos outros epítetos em regime de concorrência entre os media. O problema é que se há - uns poucos - que talvez justifiquem esta forma de exageração elevada ao quadrado, outros a conquistam efemeramente por um golo saído do acaso, por um pontapé em forma de tatuagem, ou por uma cabeçada nas nuvens.
Ronaldo é um jogador incomparável. Mesmo na última fase da sua notável carreira continua a oferecer-nos momentos de eleição e, há dias, quase só a ele devemos a vitória sobre a Suíça. Mas daí a desqualificar Deus vai uma grande distância. Cito um exemplo: no dia seguinte a este jogo, neste mesmo jornal, a capa era toda preenchida com o título «Cristo Rei: mais três passos rumo à imortalidade». Percebo o jogo magnífico de mistura de palavras, mas depois disto o que se dirá em tom ainda mais encomiástico, agora que o nosso ídolo já chegou à divindade?
3. Mesmo no chamado defeso, os briefings e conferências de imprensa não nos largam: tudo interrompem em nome do sacra-futebol (como nos costumam dizer nas televisões «temos de interromper porque se impõe um directo para ouvir...»). Qualquer notícia da bola aparece intercalada entre o importante e o excitante. Para além do insólito de certas interrupções, tal evidencia também o inqualificável critério de prioridades noticiosas. Repito: gosto muito de futebol, mas abomino o exagero e a fantasia alienante à sua volta.
Nas famosas conferências de imprensa antes dos jogos, temos sete canais a reportar mimeticamente tais fascinantes momentos: SIC N, TVI 24, RTP 3, CMTV, alé dos jornais dedicados ao desporto, como A BOLA TV, SPORT TV e quase sempre um canal afecto ao clube.
Na larga maioria dos briefings, o que vemos e ouvimos? Praticamente nada. Um amontoado de frases feitas, umas perguntas de micro-ondas, uns tiques de falar sem dizer, uma perda total de tempo.
A oferta é exaustiva no exagero: directos a toda a hora e repetição seleccionada, mas extensa em todos os noticiários. Qualquer minudência desinteressante do campeonato espanhol tem honras de telejornal, eles que, em Castela, se estão borrifando para os feitos - que também os há - do nosso futebol (por exemplo, soberbamamente quase ignoraram até a nossa conquista da Liga das Nações!).
Sei da lógica impositiva das audiências. Mas não me curvo perante a inundação intragável da banalidade.
Futsal
A terceira Reconquista do SLB esta época: depois do futebol e do voleibol, agora o futsal. Fantásticos 5 jogos entre o Benfica e o Sporting, enormes equipas. Na 4.ª parida, o Benfica esteve a 30 segundos de ser campeão, e no derradeiro encontro, o Sporting, a 6 segundos do fim, ia levando a final para prolongamento com um remate que saiu ao poste! Como tem sido regra, ganhou a equipa que foi líder na fase regular. O Benfica soube renovar e diversificar o seu plantel.
Importa, sobretudo, registar a entrega e profissionalismo dos atletas de ambos os lados e como foi bonito ver, no fim do jogo, jogadores e treinadores a respeitarem-se exemplarmente. Não podendo ambas as equipas ganhar, souberam aceitar, como inexcedível fair-play, as posições de vitória e de derrota. Parabéns a todos por esta excelente propaganda feita a um desporto cada vez mais popular.
Contraluz
- Interrupção: Tal como em 2017, não haverá na época que se vai iniciar a Eusébio Cup. É pena, instituída em 2008, mereceria continuar sem hiatos, honrando a memória do grande jogador do Benfica.
- Sugestão: Com tantas referências nas camisolas dos jogadores, por que não assinalar nas costas das camisolas e por baixo do nome do atleta, o valor da respectiva cláusula de rescisão? Talvez levasse mais gente a perceber esta fantasia mercantilista...
- Exemplar: Grande e substantiva entrevista de Fernando Santos em A Bola de domingo. Assim vale a pena ler ou ouvir quem se exprime com clareza, sabedoria, sinceridade e até humildade perante o erro."
Bagão Félix, in A Bola