Últimas indefectivações

terça-feira, 12 de janeiro de 2016

O silêncio dos inocentes da Quinta Pequena

"Em duas épocas consecutivas, o Benfica defrontou o Luso do Barreiro na primeira eliminatória da Taça de Portugal: uma enxurrada de golos - sete mais doze, mas seis mais seis. Num dos jogos, José Torres marcou sete!

Bem sei que, no Funchal, a sorte e o azar são muito relativos. Mesmo assim arrisco-me a dizer que há equipas às quais o azar bate à porta com facilidade e regularmente.
Vamos ver o curiosíssimo caso do Luso.
Luso do Barreiro: fundado a 11 de Abril de 1920.
Mas o azar do Luso foi mais tardio: acumulou-se entre 1962 e 1963.
Comecemos pelo princípio, diria o senhor de La Palice.
Estávamos em Setembro, dia 23 de Setembro de 1962. O Benfica preparava-se para rumar a Manchester onde defrontaria o United num particular entusiasmante que terminou com um empate 2-2. (Podemos falar deste jogo um destes dias, se estiverem para aí virados).
Mas, para já, deixamos Manchester e vamos mais prosaicamente ao Barreiro, já ali do lado de lá do Tejo.
A primeira eliminatória da Taça de Portugal ditou um Luso do Barreiro-Benfica.
Nesse tempo as eliminatórias eram todas a duas «mãos». Esta não fugia à regra e abalavam os 'encarnados' para Sul já com a cabeça em Manchester como é normal nestes casos.
«Partida em ritmo de treino», acusavam os periódicos. «Benfica devagar e devagarinho», escrevia-se na imprensa.
Fosse como fosse o resultado foi expressivo da diferença entre as duas equipas: 0-7.
Ao «ralenti» ou em «câmara lenta» foi-se de golos. Lá está - azar do Luso. E enquanto o Benfica foi até Manchester mostrar os seus campeões europeus, os pobres jogadores do Luso não adivinharam sequer o que estava para lhes acontecer na segunda «mão», no Estádio da Luz.
Não tardou muito: dia 4 de Outubro.
Golos, golos e mais golos!!!
Um exagero de golos que já não se usa mas que se usava à época. O Benfica volta a actuar com muitos dos seus reservas. Aliás quase só reservas: Barroca; Serra e Maximiano; Neto, Saraiva e Brás; Cesarino, Calado, Torres, Pedras e Mendes.
Reservas mesmo, e ponto final.
Calado marcou dois; Pedras, três; e Torres, o grande José Torres, só à sua conta marcou 7 - sim, por extenso, sete.
12-0 para o Benfica e um Luso desfeito no regresso à margem sul.
E se pensam que o azar dos barreirenses se ficou por aqui, desenganem-se. Leiam só mais uns parágrafos.


Finalmente um golo!
O Benfica não conquistaria essa edição da Taça de Portugal: perderia 0-2 frente ao Sporting na final do Jamor.

Mas venceria a seguinte e de que maneira: 6-2 ao FC Porto!
Ora adivinhem só quem cairia em sorte aos 'encarnados' na primeira eliminatória? Isso mesmo! Acertaram em cheio!!! O Luso do Barreiro.
Voltavam os cordeiros à imolação vermelha. Da qual saíram de novo sob o deprimente silêncio dos inocentes.
Precisamente um ano menos um dia mais tarde: 22 de Setembro de 1963.
Nova vitória gorda do Benfica: 6-0 no Campo da Quinta Pequena.
Força a mais contra força a menos. E a força, no futebol, como todos sabemos ajuda a impor a técnica.
Conta quem lá esteve que o Luso do Barreiro durou meia hora. E como os jogos duram hora e meia, as contas fazem-se já aqui ao lado.
Vida difícil a da rapaziada do Luso, convenhamos. Três encontros, três cabazes de Natal antes de Dezembro, vinte e cinco encaixados e nem um para amostra.
Mas havia ainda mais um Benfica-Luso marcado para esse mês de Setembro: no dia 29, no Estádio da Luz, segunda «mão».
Como não poderia deixar de ser, o Benfica voltou a fazer golos em catadupa: mais seis. Só que também houve uma novidade: o Luso marcou!
Só por isso valeu uma ou outra crítica à falta de empenho Benfiquista. Coisa que terá feito os jogadores encarnados dormirem para o lado que melhor lhes conveio, creio eu.
O resultado foi mais do mesmo: 6-1.
Preocupava a lesão de Eusébio, a inadaptação de Coluna a n.ª 9. Agradavam os três golos de José Augusto e, no Luso do Barreiro, gabavam-se Faia (mais um dos que passavam ao lado da carreira) e o médio Batata e o dianteiro Haran.
Entretanto, em Lisboa, tudo na mesma: a vida corria..."

Afonso de Melo, in O Benfica

Viagem triunfal no paquete Timor

"Um jovem benfiquista foi o passageiro de honra numa memorável viagem a Matosinhos.

O Benfica iria defrontar o Leixões na penúltima jornada do Campeonato Nacional de 1959/60. Depois da vitória ao Sporting por 4-3, bastava um ponto para se sagrar campeão. A comemoração exigia pompa e circunstância. Para além dos já habituais autocarros e comboios especiais, a Comissão Central do Benfica decidiu organizar uma deslocação inédita no paquete Timor, da Companhia Nacional de Navegação.
Foram cerca de quatrocentos passageiros que embarcaram na tarde de 14 de Maio de 1960, em Santa Apolónia, perante uma multidão que acenava com bandeirinhas vermelhas e ecoava vivas ao Benfica!
Entre eles, encontravam-se um pequeno benfiquista que se lançou com enorme entusiasmo para a frente do presidente Maurício Vieira de Brito quando este se preparava para embarcar. Pediu-lhe para que o levasse. O presidente perguntou: 'Mas como queres tu ir? Os teus pais deixam-te?'.
Depois de confirmar se ele poderia embarcar, prontificou-se a pagar-lhe o bilhete. O rapaz foi de imediato a casa pedir aos pais. Com autorização dada e bilhete na mão, o jovem Tiago dos Santos Gouveia, de 12 anos, sócio n.º 29616, embarcou eufórico. Bastante educado, gerou um ambiente de enorme simpatia ao seu redor. Até o capitão do paquete lhe deu 20 escudos para comprar uma bandeira do Benfica. Comprou-a e nunca mais a largou.
A viagem decorreu na maior animação, com vários espectáculos que se prolongaram pela madrugada. Faziam parte da ementas pratos bastante originais, como Sopa Cosme Damião, Bacalhau 'Todos por um', Águias do Mar ou Triunfo à Benfica.
Na manhã seguinte, o paquete entrou no porto de Leixões. Tinha chegado, finalmente, o ansiado dia do jogo, que se disputou nessa tarde, no Campo de Santana. O pequeno Tiago, sempre com a sua bandeira na mão, viu o seu clube vencer o Leixões por 2-1 e sagrar-se campeão nacional! Regressou doido de alegria e, num acto de agradecimento, ofereceu a sua 'querida bandeira' a Maurício Vieira de Brito.
Este e outros títulos do Campeonato Nacional podem ser recordados na área 6. Campeões sempre do Museu Benfica - Cosme Damião."

Ana Filipa Simões, in O Benfica

Um Homem do seu tempo e muito para além dele

"José de Sousa Esteves
Faleceu em Novembro do ano passado um Benfiquista ilustre de que o nosso Jornal deu a notícia como se impunha. Era de elementar justiça. Mas também se disse nesse obituário que mais tarde Zé Esteves teria o destaque de que era merecedor. Ei-lo.

Durante mais de cinquenta anos foi um dos mais profundos conhecedores do impacto que o desporto tem nas sociedades bem com em cada individuo. E como a sua prática regrada, fundamentada e desenvolvida deve ser um tónico de formação individual de modo a uma integração plena de um ser único numa sociedade diversa.


Associado praticante
Nasceu em Lisboa, a 20 de Setembro de 1919, entrando para associado do Clube pela mão desse extraordinário Benfiquista, 'Águia de Ouro' em 1976, Justino Pinheiro Machado, com aprovação em 19 de Março de 1933, aos 23 anos enquanto estudante universitário. Professor de educação física no Liceu de Oeiras marcou gerações de alunos pelos seus métodos inovadores e exemplo íntegro do modo como a correcta utilização do corpo pode ser útil no dia a dia bem como forma de integração social pelos jogos em equipa que proporcionada onde, na generalidade, há uma divisão de tarefas solidárias para o bem comum, para o sucesso. Amante da prática desportiva viu-a sempre pelo lado lúdico ainda que exigente. Muito menos pelo apego exacerbado ao sucesso a todo o custo, mesmo que com batota.
No Benfica praticou Atletismo entre 1936/37 e 1939/40, tal como Râguebi durante três temporadas entre 1938/41. Dois desportos que considerava complementares em termos de formação, desde o mais individual e solitário até ao mais colectivo numa equipa de 15 em campo, 30 no total.

Curso de Iniciação Desportiva
Estudioso da sociedade humana desde os primórdios, integrando a forma desportiva como dínamo de desenvolvimento humano desde a sua origem foi no Benfica, nos anos 50 e 60, que encontrou as condições ideológicas (liberdade para criar e respeito pela inovação) e associativas (grandeza de um clube que lhe permitisse desenvolver as suas ideias) que fizeram dele uma referência profissional, cívica e Benfiquista para sempre.
Em 1954 com o beneplácito da Direcção presidida pelo inigualável Joaquim Ferreira Bogalho implementou no Clube um 'curso de Iniciação Desportiva' colocando em prática as suas ideias, pois o professor José Esteves abominava a teoria em detrimento da prática. Era a prática que tornava efectiva e justificava a teoria. A 'Iniciação Desportiva' foi um Maço importante num Clube que, apesar de eclético, tinha no Futebol ao mais alto nível a sua razão de ser e existir. Foram milhares os jovens (com inscrições vocacionadas essencialmente para colocar os filhos - entre os 8 e os 15 anos - dos associados a fazer educação física) que durante mais de uma década puderam contactar pela primeira vez com a Ginástica, Natação, Atletismo, Basquetebol, Andebol e Voleibol, movimentando cerca de 200 jovens por temporada. Para além de outras iniciativas interligadas como  visitas culturais e noções de 'dietética e higiene alimentar'.

Secretário-técnico do SLB
Em 1955/56, o sucesso de uma iniciativa para jovens fez com que a Direcção pensasse em criar para José Esteves um cargo que superintendente todo o desporto do Clube extra-futebol. Foi assim criado o lugar de Secretário-técnico continuando a ser um dos professores, num conjunto cada vez mais abrangente, do 'Curso de Iniciação Desportiva'. A progressiva autonomização desta iniciativa que começou ligada à secção para conquistar lugar à parte terminou com a reabertura da secção de Natação, em 1966 até à actualidade, depois de estar inactiva desde 1939/40.

O professor José Esteves
Pouco dado a mediatismos quando tinha condições para ser figura pública no pós-'revolução dos cravos' preferiu continuar com as suas actividades de promoção e fomento da educação física e tentar passar a mensagem do poder do corpo para modelar o poder da mente.

Sócio de Mérito
A 22 de Março de 1958 foi eleito 'Sócio de Mérito' pela prática efectiva e continuada de serviços relevantes ao Clube. Em 1999 foi doutorado honoris causa (tendo como patrono Almeida Santos) pela Universidade Lusófona num reconhecimento justo do seu trabalho criativo, inovador, descomplexado e libertador do ser humano enquanto cidadão responsável e consciente. Em 1961 esteve como preparador físico da Selecção de Juniores que fez um brilharete num torneio europeu organizado pela UEFA.

Em 17 de Novembro de 2015 morreu um Benfiquista daqueles que pelo modo como conduzem a sua vida se tornam ímpares, como é o Clube com que um dia se identificaram. Aos 83 anos teve uma vida preenchida da qual podemos sempre dizer que não foi uma mais uma!
Obrigado Zé Esteves!

Engrandeceste o Benfica no tempo e momento certo. Se não fossem homens como tu o Benfica não seria a instituição que é! E é muito!

Actividade intelectual
O professor José Esteves a par da sua actividade em prol do engrandecimento do Clube foi desenvolvendo intenso trabalho de pesquisa que culminaria com a publicação em 1967 um livro (com 4.ª edição em 1999) que depressa se tornou a 'Bíblia' da sociologia desportiva e pedagogia da actividade física para desenvolvimento dos jovens, 'O Desporto e As Estruturas Sociais'. Mas com consciência cívica elevada, num tempo de Ditadura, tornou-se um cidadão incomodo, situação que se agravou com a tese que apresentou, em conjunto com António de Sousa Santos: 'Sobre a promoção desportiva nacional' no III Congresso da Oposição Democrática, que decorreu em Aveiro, entre 4 e 8 de Abril de 1973. Reunião que foi importante - até pela carga policial desproporcionada pelos agentes da PIDE e da GNR - na aceleração da necessidade de Portugal se tornar um País Livre e Democrático, como ocorreria pouco mais de um ano depois em 25 de Abril de 1974"

Alberto Miguéns, in O Benfica