"Quando o Mundial chegar ao fim e os ciclos noticiosos reorientarem as atenções colectivas, os problemas dos trabalhadores do Qatar continuarão no mesmo sítio.
A história do golfo Pérsico é longa e complexa, mas é possível contá-la com variações mínimas. Uma tribo nómada vai circulando pelo deserto até tropeçar numa coisa valiosa. A coisa valiosa (costumavam ser pérolas) é vendida a pessoas dispostas a pagar muito dinheiro por ela. O líder da tribo descobre de repente que é a terceira pessoa mais próspera de sempre. Alguns poderes europeus (costumava ser Portugal, ou a Holanda) concluem que pagar muito dinheiro por coisas valiosas é menos razoável do que ir lá buscá-las à força. Quando a coisa valiosa deixa de o ser, seguem-se umas décadas de travessia (literal e metafórica) do mesmo deserto, até se tropeçar noutra coisa valiosa (costuma ser petróleo) e recuperar o estatuto. Impérios oficiais (o britânico) e oficiosos (o americano) fazem depois o obséquio de intermediar a integração da tribo em vários sistemas hegemónicos, acolhendo-a como nação do séc. XX.
O Qatar, uma península do tamanho do distrito de Beja, cumpriu à risca este percurso até 1971, quando um terceiro tropeção acidental revelou que as suas águas territoriais ocultavam o maior depósito de gás natural do mundo. Reinventado do dia para a noite como um país inimaginavelmente rico, dedicou-se a transformar 1,1 milhões de hectares de Fontes da Telha em algo com o aspecto de pertencer a um país inimaginavelmente rico.
É possível fazer isto muito depressa desde que se adopte uma versão turbinada dos mesmos processos utilizados nas modernizações do Ocidente. Basta haver um estado forte, uma quantidade imensa de mão-de-obra barata, vontade suficiente para tratar essa mão-de-obra como descartável (tal como houve com as centenas de milhares de mortos deixados pela Revolução Industrial, pela cobertura ferroviária da América, pela construção do Canal do Panamá, etc.), e o empenho político que crie as estruturas necessárias para que algumas desigualdades acidentais se tornem gigantescas e permanentes.
De seguida, especialmente se estiverem entalados entre duas potências regionais com mau feitio, há que criar ligações fortes com o Ocidente de forma a não voltarem a ser tribos nómadas desempregadas. O Qatar tem-se esmerado também nesta área, tornando-se um dos parceiros comerciais predilectos do Reino Unido e cortejando várias benevolentes instituições ocidentais, como as Forças Armadas dos EUA, para as quais construíram simpaticamente uma base militar de mil milhões de dólares, ou a FIFA, o patusco prostíbulo hemisférico de Havelange e Blatter, a quem compraram a organização do Mundial 2022, no mesmo carnaval de corrupção que levou mundiais anteriores aos braços abertos de oligarquias e juntas militares.
Foi com esta promissora pré-história que o pré-Mundial começou, a reboque do escrutínio de uma imprensa inglesa que depressa encontrou (e terá sido outro tropeção acidental) um emblema capaz de agregar toda a indignação dispersa: os “6500 trabalhadores mortos” denunciados por uma manchete do Guardian em Fevereiro de 2021.
O Governo do Qatar rejeitou prontamente a manchete original, garantindo que apenas três pessoas tinham morrido na construção de estádios. Não havendo qualquer motivo para levar a sério esse número absurdo, a surpresa maior é descobrir que o número “6500” ainda tem menos ligação com a realidade. Como o próprio Guardian esclarece a meio do artigo (alvo de sucessivas e discretas correcções nas semanas seguintes), esse é o total de mortes num período de dez anos (2010-2019) confirmadas pelas embaixadas dos cinco países que compõe o grosso da população não nativa (Índia, Paquistão, Nepal, Bangladesh e Sri Lanka). Alguns deles seriam residentes de longa data e muitos, especialmente do contingente indiano, não trabalhavam sequer na construção: eram médicos, professores, administrativos, lojistas. O total de 6500 mortes, não discriminadas por causa, inclui hipoteticamente várias quedas fatais de andaimes — tal como inclui doenças crónicas, acidentes domésticos, mortes de berço, desastres de viação, enfartes durante o sexo e afogamentos no jacuzzi.
Independentemente da causa, 6500 mortes ao longo de dez anos é um número alto? Baixo? Normal? É difícil saber sem mais contexto e dados comparativos — e parte do problema no Qatar é a dificuldade em obter dados e contexto. Mas será aceitável usar essas lacunas para concluir, como faz o Guardian, que, “embora as mortes não estejam discriminadas, é provável que muitas delas tenham ocorrido em projectos relacionados com o Mundial”? Como se calculou a probabilidade daquele “provável”? Nunca saberemos, mas a título de comparação, segundo dados do Pordata, Portugal registou perto de 3 mil mortos por acidente de trabalho nos dez anos que antecederam o Euro 2004. Seria aceitável enquadrar esse total como o Guardian fez, afirmando ser “provável” que muitas delas tenham ocorrido em obras para o Europeu? Se assim fosse, quão “vergonhosa” seria a nossa competição?
Mesmo que aceitemos a hipótese estatisticamente menos provável, atribuindo todas as 6500 mortes a projectos de construção (presumindo, portanto, que todos os imigrantes qualificados se tornam imortais quando chegam ao Qatar e só morrem os que usam betoneiras), temos os dados adicionais do próprio Governo indiano segundo os quais a taxa de mortalidade não só não foi excessiva, como foi inferior à dos migrantes residentes noutros países do Golfo no período análogo (na Arábia Saudita, foi o dobro), nenhum dos quais andou a preparar um mundial.
Mas o número chocante cumpriu-se na sua reprodução, com a informação recontextualizada e reconvertida para evocar a imagem de arenas desportivas construídas sobre os ossos de 6500 cadáveres. Essa implicação errónea não apaga os (muitos) problemas de condições de trabalho, exploração e opacidade burocrática que existem no país. O que não faltam são relatórios mais sérios e rigorosos do que a notícia do Guardian, feitos por organismos como a Amnistia Internacional, que continua a alertar para a persistência de omissões inexplicáveis na certificação de óbitos, turnos de 12 horas com pouca água e em temperaturas elevadas e miseráveis condições de alojamento.
A mesma Amnistia Internacional também reconhece (num relatório de Outubro) que as reformas implementadas no país desde 2017, em parte por causa do Mundial (incluindo a criação de tribunais laborais, a introdução de um salário mínimo e a abolição do kafala, o antigo sistema de patrocínio coercivo que era, curiosamente, outro legado colonial britânico), resultaram em “melhorias notórias” nas condições gerais dos trabalhadores migrantes e tornaram o regime mais transparente e aberto a avaliações externas. Uma dessas avaliações foi feita por uma equipa da Organização Internacional do Trabalho, agência da ONU que acompanhou dois ministérios do Governo qatari num processo mais metódico de classificação de dados, produzindo em 2020 a mais fiável contagem que temos até agora de vítimas mortais em acidentes de trabalho: foram 66.
Em Portugal, em 2002 (à mesma distância de dois anos do Europeu), houve 357.
A cobertura mediática do Mundial tem sido o que é não por espírito de missão, nem intenção de dissimular, mas pela inércia habitual que faz a generalidade da imprensa flutuar ao sabor das marés, percebendo inconscientemente que a sua mais importante função actual é servir como um mecanismo auxiliar de gestão emocional, permitindo ao público orçamentar o seu desconforto, consolidá-lo em pequenas prestações e reagir com a agência política contemporaneamente possível: uma curadoria individual de opiniões fortes e opções de consumo.
Uma das características partilhadas por esta atenuada ethos tablóide e pela ideologia mundial dominante (que tem muitos nomes: palavras que podemos sussurrar em voz baixa ou escrever em cartazes) é a predilecção por explicações éticas em vez de explicações estruturais. As coisas más acontecem por causa de vilões e nunca porque incentivos sistémicos produzem certos comportamentos. Uma consequência da informação coreografada deste modo é a facilidade com que se descamba para raciocínios morais próprios de crianças: aquele país é mau e faz coisas más e os países bons não deviam deixá-los brincar com a bola. É uma posição que simultaneamente assume uma superioridade tácita (o país não merece ser recompensado com a nossa ilustre presença nem com a minha valiosa ratificação televisiva) e cauciona o tranquilo encerramento do assunto.
Quando o Mundial chegar ao fim e os ciclos noticiosos reorientarem as atenções colectivas, os problemas dos trabalhadores do Qatar continuarão no mesmo sítio, não porque bárbaros de turbante sejam especialmente sádicos, mas porque, no sistema que temos, é isso que costuma acontecer aos migrantes do Sul global quando cumprem o seu destino enquanto mão-de-obra fungível. Se há quem tenha obrigação de saber isso, é o país onde centenas de timorenses dormem ao relento em Beja, onde autarcas locais e observatórios independentes denunciam regularmente situações de trabalho escravo e tráfico humano no Alentejo, onde militares da GNR são filmados a torturar imigrantes em Odemira.
Não deixa de haver distinções importantes, em género e grau, e o Qatar cai no lado errado de quase todas elas. É uma autocracia hereditária, com as mórbidas especificidades de uma região onde o respectivo monoteísmo nunca se separou do poder político, onde a liberdade de imprensa é quase nula, onde a igualdade de género é uma piada remota, onde a homossexualidade é um crime.
Qualquer uma destas desqualificações deveria ser suficiente, por si só, para não lhe atribuir a organização do Mundial. Mas não foi suficiente agora, tal como não foi suficiente no passado e provavelmente não voltará a ser no futuro. E o foco intenso na questão do Mundial deixa por responder a questão mais intrigante: porque é que as exigências que colocamos ao futebol — que se comporte como um agente moral, como um agente de boicote e como um agente de mudança — são tão mais enfáticas e irredutíveis do que as que colocamos noutros domínios?
Em 2017, uma comitiva liderada pelo primeiro-ministro visitou o Qatar, que nessa altura já tinha uma participação na EDP (entretanto reforçada) e outra na Vinci, que controla a ANA — Aeroportos de Portugal. António Costa declarou chegar “de mente aberta” e com três objectivos assumidos: “reforçar as relações políticas” entre os dois países; captar investimentos nas áreas da construção, energia, saúde e imobiliário; e averiguar se o senhor emir não estaria interessado em comprar alguma da nossa formosa dívida pública. Como deve a linguagem dos boicotes e do “mundial da vergonha” reagir a isto?
O entusiasmo com que se vulgarizou o número dos 6500 mortos, e a consequente proscrição emotiva do Mundial do Qatar, acabam por dar uma forma simples e concreta a um desconforto que se supõe muito mais amplo, complexo e generalizado. A sensação de que há algo errado com tudo isto e que nada devia ser assim; de que o mundo, tal como existe e se organiza — com acumulações arbitrárias de riqueza geracional, lotarias hereditárias, assimetrias geográficas, desigualdades sistémicas e um efectivo sistema de castas no qual direitos fundamentais são uma função do dinheiro que se tem e do sítio onde se nasceu — nos confronta repetidamente com efeitos inaceitáveis e logo a seguir com todos os compromissos e amnésias selectivas a que a cumplicidade artificial gerada pela interdependência obriga os seus principais beneficiários a fazer e a manter. É um desconforto de baixa frequência, demasiado vasto para se imaginarem soluções, demasiado difuso para caber numa emoção tão efémera e descartável como a indignação.
O que sobra, depois do reconhecimento contrariado, mas pragmático dos limites da nossa agência é um vocabulário moral suficientemente flexível para contornar vastas abstracções — a “economia”, o “realismo”, os fluxos de capital —, mas que ganha uma súbita e veemente rigidez assim que encontra um relvado e duas balizas. Laterais-esquerdos e telespectadores devem fazer “boicotes” éticos; políticos eleitos podem fazer o seu trabalho sem dar nas vistas, desde que não regressem depois ao mesmo sítio para celebrar golos.
Saul Bellow escreveu em To Jerusalem and Back (1976) que, “como a Suíça está para as férias de Inverno e a Dalmácia para o turismo de Verão, Israel e a Palestina estão para a necessidade de justiça do Ocidente — são uma espécie de estância moral”. O Médio Oriente sempre forneceu excelentes oportunidades para divulgar posições de princípio e acenar estandartes morais e o Mundial do Qatar vai cumprir uma função muito semelhante. Durante um mês, o nosso desconforto vai ser confortável; vamos saber sempre onde ele está e a forma que tem. Depois, as férias acabam e o desconforto regressará ao seu sítio do costume: em toda a parte e, portanto, em lado nenhum."