Últimas indefectivações

quinta-feira, 19 de abril de 2018

Alvorada... do Martins

Quatro linhas e entrelinhas

"A 17 de Março de 1974, o Sporting e o FC Porto jogaram em Alvalade, como ontem. Mas o que estou a contar não é sobre futebol. É o seguinte, na redacção do jornal República, o jovem editor de desporto escreveu um artigo sobre aquele jogo e mandou-o para os serviços de censura. Naquele tempo, o que aparecia nos jornais, mesmo sobre jogos de futebol, era lido por censores. Daquela vez, o censor, distraído, aprovou o artigo, que foi publicado. Dizia: "Os muitos nortenhos que no fim de semana avançaram sobre Lisboa, sonhando com a vitória, acabaram por retirar, desiludidos com a derrota. O adversário da capital, mais bem apetrechado (sobretudo, bem informado da sua estratégia), fez abortar os intentos dos homens do norte. Mas, parafraseando um astuto comandante, perdeu-se uma batalha mas não se perdeu a guerra"... O narrado batia certo com os factos ocorridos nos 90 minutos: o Sporting ganhou (e já agora por 2-0). Mas esta história e aquele antigo artigo não são sobre futebol. No dia anterior ao jogo, sábado, 16 de março de 1974, acontecera o Regimento de Infantaria 5 ter saído de Caldas da Rainha e marchado sobre Lisboa. Embora não por muitas dezenas de quilómetros, Caldas fica a norte de Lisboa e, nesse sentido, os que de lá vêm são "nortenhos"... Os sublevados foram parados às portas da capital por forças fiéis ao regime salazarista e retiraram-se para o seu quartel, onde se renderam. O comunicado oficial sobre o assunto foi: "Reina a ordem em todo o país." Batalha perdida, "mas não se perdeu a guerra". Como vaticinou o corajoso jornalista, seis semanas depois do falhado Golpe das Caldas, aconteceu o vitorioso 25 de Abril... Ontem, houve dois jogos da Taça de Portugal (no outro, jogou o Caldas, clube amador), mas isso é futebol. O que faço aqui é aproveitar para lembrar a extraordinária coincidência de se terem juntado os três, Sporting-Porto-Caldas, outra vez. Então, lembro: já houve tempos em que os relatos dos jogos nas quatro linhas deviam ser escritos e lidos nas entrelinhas."

FC Porto, Sporting e Benfica

"Sérgio Conceição, Jorge Jesus e Rui Vitória, cada um com os seus problemas particulares, estão a comandar com competência os três clubes portugueses. O desporto nacional de fabricar vítimas em função dos resultados tem aqui pouco espaço desta vez

muitos anos que os três maiores clubes do futebol português não mantinham uma competição tão equilibrada e interessante. Isso ficou provado na semana que deixa o FC Porto com caminho aberto para o título de campeão, o Sporting como favorito para ganhar a Taça de Portugal (ao Aves) e o Benfica como o maior perdedor mas ainda espreitando a oportunidade de vencer a Liga.
É uma boa altura para fazer um ponto de situação dos acontecimentos desportivos desta época na perspectiva dos três grandes.
O FC Porto não teve muita sorte na fase final da temporada. Para além das provas que perdeu apenas na marcação das grandes penalidades, ambas com o Sporting, inequivocamente há uma equipa com Danilo e Marega, poderosa, pressionante, goleadora, e uma outra, sem eles, com menos soluções, ainda para mais se aos grandes problemas se juntarem episodicamente outros, como foi o caso de Alex Teles, Brahimi, Corona e não só. O incansável Herrera desdobrou-se no meio campo, e disfarçou a ausência de Danilo tanto quanto possível, mas na frente não há alternativa a Marega como assistente do ponta-de-lança, seja ele Aboubakhar, que tem ido de mais a menos, ou Soares, outro bom avançado. Sérgio Conceição sentiu, portanto, muitas dificuldades neste trabalho extremamente difícil que lhe foi proposto de fazer uma equipa a partir dos jogadores sob contrato. Está a ter êxito e apresta-se para colocar um ponto final num longo jejum de títulos. Tem muito mérito e o FC Porto pode agora programar com calma um futuro que deve contar com Diogo Dalot, Sérgio Oliveira, José Sá e outros jovens de qualidade. De uma época para a outra, o desafio será ultrapassar o provável abandono de Casillas e de algum dos centrais, como Marcano e talvez até Diego Reyes. O FC Porto foi forte frente ao Benfica, teve sorte no golo de Herrera, por ter acontecido nos últimos minutos, e foi eliminado à tangente na Taça de Portugal. A poupança de Marega deve ser vista à luz da necessidade de gerir o jogador mais decisivo e de não correr riscos naquele que é o objectivo principal: ser campeão.
O Sporting ganhou um líder nestes dias: Jorge Jesus. Convém que quem manda no Sporting perceba isso e não estrague o que está bem. A equipa é boa, combativa, profissional, tem dois jogadores tecnicamente espectaculares (Gelson Martins e Bruno Fernandes), outros dois com a personalidade e qualidade que faz a diferença (os ‘capitães’ Rui Patrício e William Carvalho) e vários outros que chegaram este ano e acrescentaram (Battaglia, Acuna, Piccini, Ristovski, Coentrão). A recuperação de Brian Ruiz e a importância de Bas Dost e Coates completam o núcleo. Precisa, apenas, de mais alternativas no ataque porque Montero e Doumbia não pertencem a este filme. Esta realidade impõe ponderação, maturidade e sentido de responsabilidade a quem dirige. Provavelmente o Sporting precisará de vender, como qualquer outro clube português, mas deve saber proteger o essencial para poder continuar a recuperação desportiva dos últimos anos, começada com Leonardo Jardim, prosseguida por Marco Silva e potenciada por Jorge Jesus, que teve de assumir mais responsabilidades das que são normais num treinador. Na verdade, como diz Jesus, o Sporting bateu-se bem em todas as frentes. Competiu com personalidade, mesmo na Europa, e só fraquejou naquele período das lesões em que perdeu pontos decisivos em Setúbal e Estoril. Não tivesse sido isso e a época poderia ser de sonho para o Sporting que, depois de ganhar a Taça da Liga e garantir a ida ao Jamor, sempre a custa do FC Porto, ainda dispõe da possibilidade, realista, de acabar segundo na Liga com a abertura de uma janela de oportunidade para a Liga dos Campeões. Mais do que isso é pouco provável.
O Benfica não deveria ser ingrato para Rui Vitória, que está a ser crucificado pelas substituições que introduziu no jogo perdido com o FC Porto. E não há razão para isso, a não ser, talvez, na substituição directa de Rafa por Sálvio. Talvez que a equipa pudesse ter ganho com a deslocação de Rafa para outras zonas, porque estava, na verdade, a ser o jogador mais incómodo para o adversário. De qualquer forma, é preciso olhar para o que havia no banco e para quem estava em campo. O Benfica tinha no terreno um quarteto de criativos pesos-pluma: Rafa, Pizzi, Cervi e Zivkovic. Nos últimos momentos importava ganhar peso e, não tendo aparecido o golo, também cuidar do resultado (foi o que fez Sérgio Conceição em Alvalade com a entrada de Reyes para médio defensivo, e também perdeu, repararam?). São decisões normais no futebol. Às vezes sai bem, outras não, e calha a todos. De resto, Rui Vitória teve o mérito de inventar uma defesa, depois da saída de Ederson (Man, City), Nélson Semedo (Barcelona) e Lindelof (Man. United) e da entrada de Luisão na última etapa da carreira. Não era fácil e o treinador cumpriu com a prata da casa, limitado pelas possibilidades financeiras do clube. Lançou Rúben Dias, um central com o qual a selecção contará no futuro. Recuperou Jardel e André Almeida para o papel que tinham tido dois anos antes. Confiou em Bruno Varela, que tem qualidades. E, tal como Conceição e Jesus, o treinador do Benfica teve duas lesões complicadas de gerir – primeiro a de Krovinovic, que estava a ganhar estatuto de titular, e agora a de Jonas, no momento decisivo. Nada que deva fazer esquecer o mérito com que geriu a renovação e regressou à luta quando, a certa altura da temporada, tudo parecia perdido. O Benfica acabará sempre a época com um título: o da Supertaça. Se ficar em segundo lugar, podendo a partir daí aceder à Champions, o único ponto verdadeiramente negativo será a carreira europeia, que foi péssima qualquer que seja o ângulo de análise."

Campeão português precisa de um tapete de 10 x 10 metros, alguém tomou nota?

"Esta é uma crónica para quem gosta de desporto. Para quem, perante uma vitória, grita Portugal, divulga nas redes, diz-se orgulhoso, não se cansa de ver o feito.

É uma crónica sobre um menino açoriano que subiu ao pódio da Taça do Mundo no Open Internacional de Ginástica no escalão juvenil. Ganhou a competição com 19.250 pontos. Ao lado de Tomás estavam Damir Manacof da Rússia, com 19.200 pontos e Leonor Manta da Roménia com 18.600 pontos.
O sorriso de Tomás Amaral na vitória é quase comovente, diz tudo. Está ali o seu momento, é grande, é imenso, é o seu nome, o hino do seu país, os pais a morrer de orgulho, de certeza, a treinadora, Alexandra Barroso, de lágrimas nos olhos, os amigos a torcer para que tudo tenha valido a pena. Um corpo de rapazinho, pequeno e esguio, a voar num tapete de dez por dez metros. Vence o ouro para Portugal e deveríamos estar histéricos de felicidade, deveríamos abençoar o século XXI e a evolução dos nossos atletas e respectivas condições de trabalho. Tomás Amaral só pode treinar duas vezes por semana, porque não há condições em Ponta Delgada para este ou outros campeões e, apesar disso, como a estrada em tempos para Rosa Mota, os atletas persistem.
O Tomás Amaral treina no Clube de Actividades Gímnicas de Ponta Delgada. A treinadora diz que as condições que têm são más, que precisa de uma área oficial de 10 metros por 10 metros mais do que duas vezes por semana.
Quem nasceu a ver Nadia Comăneci e afins a voar nos tapetes, com o arco, a bola, a fita, nas paralelas assimétricas, só pode dizer: incrível, ganhámos, ganhámos aos russos, aos outros, aos do costume. Nós, o povo de feitos incríveis em tantas áreas, sim, nós, mas caramba na ginástica e sem condições.
O sorriso de Tomás Amaral fez o meu dia, fez o dia de muita gente, mas não de um país. Há modalidade e modalidades, já se sabe. As atenções estavam no futebol, dizem-me. Vão dizer isso ao Tomás, sim? Talvez até seja do adepto ferrenho de futebol este o nosso campeão, mas isso nem interessa para nada.
O que importa mesmo dizer é que precisamos de dar condições aos nossos atletas, jovens ou menos jovens, olímpicos ou paralímpicos (e se formos para o universo dos paralímpicos, pois devíamos ter vergonha como país, porque as medalhas chegam-nos em barda, mas esses são os atletas do não-apoio). E em Ponta Delgada estas condições não existem. O que existe é uma enorme vontade de vencer, de ser melhor.
Depois de escrever estas linhas, soube que Diogo Ganchinho é campeão da Europa de Trampolim. Ok, não tem o glamour de outras coisas, pois, mas parabéns Diogo, parabéns Tomás! E parabéns Portugal."

Senhoras e senhoras. Eis Leônidas, o homem que mostrou o pontapé de bicicleta ao mundo

"O "diamante negro" deu nome a uma barra de chocolate, fez sucesso com as adeptas francesas e converteu-se numa das primeiras estrelas de dimensão global no França 1938. De tal modo que um árbitro não sabia se o seu pontapé de bicicleta era contra as regras ou não (Esta é a terceira história na nossa nova série enquanto Portugal não entra em campo no Mundial da Rússia)

Haverá poucos gestos mais icónicos no futebol e com tanta capacidade de deixar as pessoas boquiabertas do que um bom pontapé de bicicleta. Que o diga Zinedine Zidane, por exemplo, quando ficou embasbacado com a nota artística de Cristiano Ronaldo e o seu tento que voltou a pôr todos a falar dos melhores lances do género da história. E a quem temos a agradecer a fama deste elástico movimento de pés e braços? Leônidas da Silva.
O "diamante negro" ou "homem elástico", como ficou conhecido para a posteridade, foi o grande responsável por fazer do pontapé do bicicleta algo tão popular e, para os primeiros que o viram, algo que desafiava as leis da física e da gravidade. Um pioneiro que foi a primeira super estrela brasileira, um dos primeiros nomes verdadeiramente globais do futebol e um homem que enfrentou com uma bola no pé os preconceitos raciais da época. E que teve no França 1938 o seu grande palco.
Não foi um percurso fácil, desde as favelas do Rio de Janeiro até ao topo do futebol mundial. Avançado centro diminuto mas com uma velocidade e uma agilidade que lhe permitiam estar sempre no sítio certo à hora certa, Leônidas teve uma ascenção meteórica. Na década de 30, em poucos anos, passou do São Cristovão para os gigantes como o Peñarol (no Uruguai), ou o Botafogo. Pelo meio, ainda foi ao Mundial 1934, mas sem o peso mediático e desportivo que alcançaria quatro anos depois.
Foi por esta altura que terá começado a treinar o movimento que ganharia a alcunha de pontapé de bicicleta. Para muitos, terá sido mesmo o inventor e, se é certo que não deveríamos deixar um facto meter-se no meio de uma boa história, não existem dados históricos que permitam comprovar essa asserção com 100% de certeza (as fontes mais fiáveis dizem que os primórdios do gesto estarão pelos finais do séc. XIX na América do Sul, entre as comunidades que conheceram o futebol por intermédio dos imigrantes ingleses). Ainda assim, ninguém lhe tira a fama como o homem que deu a conhecer esta arte ao mundo, assim como o seu primeiro grande mestre.
A primeira ocasião documentada em que o terá utilizado remonta a 24 de Abril de 1932 e cedo a sua fama começou a levar multidões ao futebol na esperança de apanhar o lance que parecia saído das lendas de magia. De tal modo se tornou um ícone que quebrou a barreira racial e conseguiu ser contratado pelo Flamengo, então famoso pelo seu estatuto elitista branco. Por tudo isto a sua presença no terceiro Mundial tinha tudo para ultrapassar a de um mero jogador.
E assim foi. Numa competição onde Uruguai e Argentina não viajaram para França em protesto pelo segundo Mundial consecutivo na Europa, o Brasil foi o grande representante sul-americano numa altura onde os canarinhos (que então ainda não jogavam de amarelo) ainda não eram o sinónimo de futebol que hoje encarnam. Cartel que podem agradecer em parte a Leônidas, que se destacou logo no primeiro jogo a caminho de se tornar o melhor marcador do torneio, naquele que é um dos grandes clássicos da história dos mundiais.

Do outro lado estava a Polónia para o jogo de "mata-mata" (uma vez que não havia fase de grupos) que vendeu muita cara a derrota. O resultado foi de 6-5 (não, não é resultado de desempate por grandes penalidades), numa partida imprópria para cardíacos que contou com muitas reviravoltas no marcador, um campo cheio de lama, tempo-extra, e um hat-trick de Leônidas que saiu em ombros perante o entusiasmo geral.
Foi o início da fama do brasileiro que haveria de explodir na ronda seguinte. Seguiram-se mais dois golos frente à Checoslováquia (em dois jogos) na eliminatória em que mostrou ao mundo o pontapé de bicicleta. Segundo reza a lenda, o árbitro terá ficado tão estupefacto que não sabia se o que tinha acabado de ver estava de acordo com as regras do jogo ou não. Desta feita, não vamos deixar os factos intrometer-se no meio de uma boa história.
A eliminatória deixou mazelas físicas em Leônidas que terá saído a coxear de um jogo que levou Raymond Thourmagem a escrever para o "Paris Match" que, "esteja na terra ou no ar, o homem borracha tem um dom diabólico para controlar a bola e disparar tiros indefensáveis quando menos se espera. Quando ele marca, tudo parece um sonho." Aura que também passou para as adeptas francesas, segundo consta, que não perdiam uma oportunidade de meter conversa com a estrela que, pelo seu lado, não desprezava de todo a atenção.
Numa ocasião, terá visitado o famoso teatro do burlesco "Folies Bergere" onde após o espectáculo foi convidado aos bastidores para conhecer a estrela, Mistinguett. Após a entrada no camarim, as atenções dos presentes viraram-se para ele, o que fez a artista sair para regressar com ainda menos do que tinha vestido anteriormente e dizer "claro que aceito o seu convite para jantar, querido". Leônidas não tinha convidado, mas aproveitou a oportunidade e ganhou uma fã. As artistas não perderam um jogo seu até ao final do Mundial.
Competição em que o "diamante negro" acabou por não agraciar a final porque, confiantes na sua superioridade, os brasileiros pouparam-no para o jogo das meias-finais. Saíram derrotados pelos eventuais bicampeões Itália e tiveram que se contentar com a disputa pelo terceiro lugar, com Leônidas a marcar mais dois golos e a ganhar o troféu para melhor artilheiro do torneio com sete tentos.

A fama global de Leônidas - que no seu país natal levou à criação do chocolate "diamante negro", ainda hoje um produto de grande sucesso - acabaria por ser cortada precocemente com o eclodir da II Guerra Mundial e o interregno dos mundiais por 12 anos. O avançado continuou a sua carreira pelo Brasil, onde após ter passado oito meses na prisão por ter falsificado documentos para escapar ao serviço militar obrigatório, ingressou no São Paulo onde acabou o seu percurso como jogador e chegaria a ser treinador.
Seria depois comentador e, mais tarde, dono de uma loja de mobília, longe dos olhares curiosos. Com o gesto gravado na memória colectiva que levou uma geração de milhões a apaixonarem-se pelo futebol e ganhou quase vida própria. Certo, Cristiano?"

Benfiquismo (DCCCXII)

Vigilantes...

Lanças... Condicionamentos!

“Quando o Ayrton Senna morreu, estava no Europeu de sub-16 e tive de levantar-me da mesa para ir para o meu quarto chorar”

"De coração angolano e feitio português Edgar trabalha hoje na área dos números e das finanças, depois de ter terminado um curso de gestão e de ter passado três anos em Angola a tentar desenvolver o seu futuro pós-futebol. Ex-jogador do Benfica passou nove anos em Málaga, onde nasceram os filhos, e esteve com um pé no Real Madrid e no Barcelona. A família continua a ser a sua base, por isso não dispensa os fins de semana com a mãe e os irmãos. E é ele quem bate o funge

- Nasceu em Angola. Onde em concreto?
- No Kwanza sul, no Libolo, mas fui cedo para Luanda, com 7 ou 8 anos.

- Os seus pais, o que é que faziam?
- O meu pai, Mário Pacheco, tinha uma padaria. A minha mãe, Maria Pacheco, sempre foi doméstica.  
- O Edgar é o primeiro filho?
- Não, sou o quinto. Do meu pai e da minha mãe, somos 8, eu sou o quinto e somos sete rapazes e uma menina. Só do meu pai, no total, somos 15.
- Porque foram viver para Luanda?
- Porque no Calulo, vila da zona do Libolo, havia guerra civil, muitos ataques e na altura a Unita invadiu a cidade e tivemos que ir para Luanda. O meu pai teve que começar tudo do zero. Deixamos lá a nossa casa, toda queimada, e fomos para Luanda.

- Viveu algum momento de tensão, de medo?
- Era criança, não tenho muita memória. Mas muitas vezes levantávamos para fugir e depois voltávamos para trás, para casa. Felizmente, não houve um ataque feroz. Os meus pais já estavam em Portugal com 4 irmãos quando isso aconteceu. Não podiam viajar com todos, não tinham condições para viajar com todos. Nós ficámos com as avós e com as tias.. 

- Com quantos anos e por que é que vem para Portugal?
- Com 12, 13 anos. Já gostava muito de jogar futebol, mas não era federado porque lá era muito complicado. Fui jogando naqueles clubes de bairro, na praia, na areia, descalço, sem sapatos, sem nada. Já gostava de futebol. O meu irmão também jogava futebol, no Primeiro de Agosto, uma das equipas importantes de Angola. Depois, esse meu irmão foi para tropa. Eu fui jogando na rua com os amigos. Foi aí que comecei. Depois, um senhor que gostava de me ver jogar, falou com o meu irmão e disse-lhe que era bom que eu tentasse vir a Portugal, que tinha condições, e em Angola não. Foi assim que eu vim.
- Então veio directamente para o Benfica?
- Sim, vim directamente para o Benfica para fazer um teste. Foi o Gil Gomes, que foi campeão dos sub-20, em 1991, que já estava nos juniores do Benfica e era nosso amigo de bairro que me ajudou a fazer um teste no Benfica.

- Quem foi o treinador que o viu?
- Na altura, os treinadores eram o Bastos Lopes e o Rui Oliveira, o Nené foi sempre o coordenador. Viram que eu tinha jeito e felizmente fui aceite.

- Nessa altura os seus pais já cá estavam?
- Não. Viemos todos de férias mas depois eles voltaram e eu fiquei sozinho.

- Ficou a viver onde?
- No princípio não havia espaço no centro de estágio e fiquei em casa de uma amiga de um irmão meu, mas depois passei para o centro de estágio no Estádio da Luz. Vivi e cresci lá dentro.
- Foram difíceis esses primeiros tempos sem a família?
- Foram. Éramos uma família numerosa, 8 irmãos dentro de casa e aquilo era tudo diferente. Todos ajudávamos em casa, só havia uma menina. Hoje faço tudo porque a minha mãe me ensinou. Cozinho, couso, engomo. Felizmente, naquela altura tínhamos de aprender para nos ajudarmos uns aos outros. Mas foi difícil no princípio. Nunca tinha conhecido um país sem ser Angola, com uma cultura diferente, costumes diferentes.

- Lembra-se do que sentiu quando cá chegou?
- Chegámos no verão, com os meus pais, não foi muito mau. Mas depois o frio e as saudades começaram a apertar, os meus pais em Setembro voltaram para Angola, aí…

- Chorava muito?
- Sim, chorava, tinha saudades. A minha mãe e todos na família dizem que sou chorão (risos). Chorava todos os dias. Mas não chorava para voltar, porque sabia que aquilo era uma oportunidade para mim e para a minha família, e por isso agarrei-me com unhas e dentes e trabalhei muito.

- Jogou sempre no Benfica?
- Houve uma altura em que joguei no Alverca, que era uma sucursal do Benfica, mas apenas dois meses.

- Continuou a estudar em Lisboa?
- Sim, primeiro na Escola Secundária de Telheiras. Depois, com os horários dos treinos, fui estudar para a Luísa de Gusmão.

- O que fazia nos tempos livres?
- Gostávamos de ver outros desportos, basquetebol, andebol. Aos fins de semana alguns iam para casa e os que não tinham familiares próximos, ficavam ali. De vez em quando, havia pais dos outros colegas que nos levavam de fim de semana. Também chegámos a ir passar fins de semana a casa de sócios, era engraçado.

- De que sócios?
- Estávamos lá todos os fins de semana e alguns sócios que nos viam sempre ali, gostavam de um jogador ou de outro e pediam autorização ao clube para nos levar para passar o fim de semana.

- Não tinha cá ninguém de família?
- Tinha uma tia, que ia e vinha e quando ela estava cá eu ia passar os fins de semana com ela. Mas ela estava mais tempo em Angola.
- Nos primeiros tempos foi chamado a alguma selecção?
- Fui chamado pela primeira vez à selecção de Lisboa, com 14 anos. Nessa altura era iniciado e fomos campeões de um torneio que se fazia todos os anos, e de onde escolhiam os jogadores para a selecção nacional. Antigamente havia selecção de sub-15, mas já foi extinta. A partir dali joguei sempre na de sub-15, sub-16, sub-17, sub-21.

- Quando cá chegou, nacionalizou-se logo?
- Tenho dupla nacionalidade porque os meus avós paternos são portugueses brancos e as minhas avós são negras, genuínas de Angola, por isso é que nós somos todos mulatos.

- Antes de vir para Portugal, por que clube é que torcia?
- Já torcia pelo Benfica. Antes de vir para o Benfica, eu vi as duas finais da Liga dos Campeões - via os jogos com o meu pai. Vi a final em que perdemos contra o PSV, perdemos por penáltis e já sofria pelo Benfica. Já era benfiquista, mas nunca tinha sonhado ir para o Benfica.

- Em miúdo queria ser o quê quando fosse grande?
- O meu sonho era ser médico. Veio o futebol e desviei um pouco do meu sonho.
- Quando é que fez o primeiro contrato? Quando é que começou a ganhar dinheiro com o futebol? 
- Quando sou juvenil do segundo ano faço o meu primeiro contrato profissional com o Benfica. 

- Ainda se lembra do valor do primeiro ordenado?
- Já não me lembro bem... acho que eram seis contos e quinhentos. A seguir foi o dobro e depois o triplo. Não me lembro bem. Já era bom para mim, que na altura era um miúdo.

- Houve alguma coisa que quis comprar logo?
- Já não me lembro. O que tu queres comprar nessa altura são aqueles ténis, aquelas sapatilhas, aquelas calças que tu nunca tiveste hipóteses e que os teus colegas sempre tiveram, porque as condições dos pais deles eram melhores do que as tuas. Os meus pais sempre me enviaram dinheiro e nunca me faltou nada, mas eu sabia que era com dificuldade que eles conseguiam fazer isso. Depois, os meus irmãos mais velhos também já trabalhavam e ajudavam.
- Quando foi jogar para o Benfica?
- Com 17 anos, já tinha feito uma época inteira nos seniores do Benfica.

- Lembra-se do primeiro jogo pela equipa sénior do Benfica?
- Lembro. Foi contra o FC Porto. Ainda tinha idade de júnior e fui jogar a finalíssima. O treinador do Benfica era o Artur Jorge e eu entrei na segunda parte.

- Estava muito nervoso?
- Um bocado, mas tinha muita confiança, queria singrar. Acho que a vontade foi tanta que joguei bem. Ainda tenho os jornais em casa. Fui considerado um dos melhores jogadores em campo. Perdemos 1-0. Eu ainda tinha mais um ano de júnior mas o Artur Jorge, chamou-me e disse: “Tu já não voltas para os juniores, ficas connosco agora.” Parecia mentira. Aliás, eu nem acreditei. No dia seguinte quando voltamos para Lisboa, eu vou para treinar com os juniores e disseram-me: “O mister não quer que treines mais connosco, vai ao departamento, agora estás de férias, mas daqui a um mês regressas, nos seniores”. Pensei que era mentira. A partir desse dia era sénior e nunca mais deixei de jogar tirando aquela fase do Alverca, que foram dois meses, mas voltei logo a seguir.

- Foi para o Alverca por alguma razão em especial?
- Foi o treinador, o Paulo Autuori, que achou que eu era muito jovem. Foi para me habituar. Mas não demorei muito no Alverca, dois meses, três no máximo.

- Na altura que vai para o Alverca ainda está a viver no centro de estágio?
- Não, no último ano de júnior o Benfica pediu-me para ficar a viver num apartamento ao lado do estádio, com um colega. Depois quando passei para sénior, fui viver para outro apartamento ao lado, com a minha família, os meus pais e os meus irmãos.

- Tinha quantos anos?
- 17, 18 anos. As condições em Angola estavam cada vez piores, não era seguro, e os meus irmãos também vieram para cá estudar. Eu já tinha condições e felizmente lá se formaram. Já tinha o mimo da mãe e a família toda reunida em Lisboa, menos os irmãos mais velhos que ficaram lá. Foi uma etapa bonita.

- Vieram todos viver consigo?
- Sim.

- Nessa altura já namorava?
- Ia namorando (risos).
- Quando regressa do Alverca para o Benfica, quem é o treinador?
- O Manuel José. Chamou-me e joguei sempre, nunca mais saí.

- Mas depois foi para o Real Madrid. Porquê?
- Fiquei 3 anos nos seniores. Depois do Manuel José, veio o Graeme Souness, o escocês. Eu jogava, mas havia problemas, com o presidente Vale e Azevedo. Não foi certo comigo nessa altura.

- Não foi certo em que aspecto?
- Na renovação. Eu era um jogador titular do Benfica, ganhava muito pouco, cheguei a um patamar rápido. Atingi muito rápido as cláusulas do contrato. Eu queria ajudar a minha família e ganhava pouco nessa altura.

- Tem ideia de quanto é que ganhava?
- Não me lembro, uns dois mil e tal contos? Não me lembro, mas sei que para um jogador profissional era pouco. Havia jogadores que nem eram convocados a ganhar cinco ou dez vezes mais do que eu. Eu nem pedia tanto ao Benfica. O Vale e Azevedo falava uma coisa hoje, outra amanhã... e eu tive uma proposta irrecusável do Real Madrid.

- Nessa altura tinha empresário?
- Não, mas o Manuel Barbosa entrou no negócio com o Real Madrid. Fez o negócio e depois foi-se embora porque eu não tinha contrato de representação com ele. Já não me lembro do valor do contrato do Real Madrid, mas não tinha nada a ver com o do Benfica. Ajudei a comprar a casa da minha mãe, ajudei a formar os meus irmãos e não fiquei arrependido. Mas quase desisti. O Vale e Azevedo ia fazendo com que eu desistisse. Ele não conhecia ninguém no R. Madrid, mas dizia que conhecia. Aquilo foi uma história que ele arranjou... O tempo depois veio explicar quem ele era, com os processos todos que teve. Muitos jogadores foram embora. O João Pinto, que era uma referência na equipa, rescindiu contrato com ele. Dessa situação tenho muita mágoa. Quase desisti, pelo amor e carinho que tenho pelo Benfica.
- A sua ida para o Real Madrid acontece porque o Edgar quer ou é o Vale e Azevedo que propõe?
- Eu não queria ir. Eu naquela altura estava em forma, era dos melhores jogadores do Benfica, fui considerado um dos melhores jogadores do torneio de Toulon e surgiu o interesse de muitas equipas. 

- Quem é que o contacta?
- Alguém do Real Madrid liga para minha casa, para o telefone fixo. Mais uma vez eu nem acreditei, nem tinha essa noção, mas a história foi essa: eles ligaram-me e perguntaram se queria ir para o Real Madrid. É assim que surge o Manuel Barbosa, porque era empresário FIFA e as coisas tinham de ser bem feitas. E depois o Vale e Azevedo veio sempre com as palavras certas, a tentar mudar as coisas. A dizer que eu podia rescindir o contrato com o Real Madrid, que já tinha falado com o presidente do Real Madrid, mas era mentira. O Real tinha um departamento de emergência e disse-me: “Qualquer coisa, liga para nós”. Foi uma confusão. Fiquei triste com o presidente Vale e Azevedo mas não com o Benfica, nunca. Antes de ir para o Real ainda dei uma entrevista, à RTP, para me justificar aos sócios, disse em directo que ia sair e pedi desculpa às pessoas que me ajudaram, desde os cozinheiros, aos roupeiros, sócios. Que aquela decisão não era minha, mas eu tinha que gerir família e tinha que ir embora. A minha cara não era a melhor nem a mais contente apesar de ir para a melhor equipa do mundo. Demorou muito para eu aceitar que tinha deixado o Benfica. Mas fui tratar da minha vida. 

- Foi sozinho para Madrid?
- Não, levei o meu irmão mais velho, Mário Júnior, que sempre seguiu a minha carreira

- Gostou de Madrid? Como é que foi a adaptação?
- Gostei. Já namorava com a minha mulher, Mónica Pacheco, e ela acompanhou-me. Ia e voltava porque estava a estudar cá, mas depois instalou-se lá definitivamente comigo. A minha mãe e a minha irmã também ficavam lá comigo de vez em quando, os meus outros irmãos não, porque estavam cá a estudar na faculdade. Fiquei lá instalado com a minha namorada.

- Então a adaptação foi fácil.
- Sim, a língua é semelhante, a comida é semelhante. Os espanhóis são afectivos. E começou tudo de novo, uma cidade nova, um clube diferente. Não senti uma grande diferença, um impacto entre o Real Madrid e o Benfica. Era igual. O adeptos também têm aquela paixão e fervor pelo clube.

- Quem era o treinador quando chegou?
- Era o Guus Hiddink, o holandês.

- Correu bem, como é que foi em termos desportivos?
- Correu bem, mas joguei pouco. Assinei por 5 anos, mas a equipa do Real Madrid tinha sido campeã europeia no ano anterior e, se as pessoas conhecem a história do Real, sabem que é muito difícil aos jovens singrar naquela equipa. Era complicado, porque também lidei com jogadores como o Redondo, Raúl, Morientes, Roberto Carlos, e eu sabia que era muito difícil jogar. O treinador falou comigo, para eu ser emprestado ao Málaga, para jogar, porque eu ainda era jovem. Só que era como se descesse mais um escalão: eu já vinha do Benfica, não era justo.
- Mas foi para o Málaga.
- Sim e foram quase 9 anos lá. Fui para o Málaga em 99, na abertura do mercado de inverno. Fiquei lá esse ano, depois voltei para o Real, mas havia um acordo entre eles, fui comprado pelo Málaga e voltei.

- Gostou.
- Gostei. O Málaga estava na II divisão, fomos campeões. Subimos de divisão e foi giro. A Andaluzia é uma zona mais calorosa. Quando cheguei a Málaga identifiquei um bocadinho de Angola. São pessoas muito mais abertas, o tempo ajuda, é considerada a Cidade do Sol. Está próxima de Marrocos e do mar mediterrânico. Gostei.

- É verdade que, a determinada altura, também teve uma proposta do Barcelona?
- Tive. Já na I divisão faço uma época muito forte. E havia vários clubes interessados, entres eles o Barcelona. Tive um pré-acordo com eles.

- Não foi porquê?
- Porque me lesionei uma semana antes. Quem me lesionou foi o Naybet, ex jogador do Sporting, jogava pelo Corunha.

- Se não fosse a lesão tinha ido?
- Tinha, estava em boa forma e tenho a certeza de que iria jogar no Barcelona.

- Foi onde a lesão?
- No joelho, rotura de ligamentos, tive que ser operado. No meio do azar tive sorte porque a minha mulher estava grávida. Ela teve o meu filho no ano da minha lesão, em 2000.

- Como é que se chama o seu filho?
- Edgar Júnior. A lesão fez-me parar e como estava mais tempo em casa, pude acompanhar toda aquela etapa do bebé. Com o filho ao meu lado, esqueci-me da lesão.

- Entretanto, foi para o Getafe.
- Depois da lesão fui para o Getafe de Madrid fazer os últimos 4 meses, ajudar a equipa a subir, porque precisava de rodar. Regresso ao Málaga e entretanto nessa altura casei. Casei em 2003 e fico no Málaga até 2006.

- A sua filha nasce lá também?
- Sim, a Meline, que gosto de chamar Mel, nasceu em 2004, em Málaga.
- Mas sai em 2007. O que acontece entretanto?
- Venho para o Boavista. A opção foi minha, mas fiquei meio arrependido de ter vindo. O Málaga queria renovar comigo nesse ano, mas eu queria regressar a Portugal, já tinha saudades de Portugal e o Boavista era das 4 melhores equipas de Portugal, tinha o Jaime Pacheco que é um bom treinador. Mais tarde, a sua estrutura deu problemas, mas eu não sabia que aquilo ia acontecer. Gostei muito do clube e de viver no Porto. As pessoas do norte são pessoas de carinho e que gostam apoiar, independentemente de estares no Boavista, são gente boa.

- Mas as coisas deram para o torto consigo e com o Boavista.
- Deixaram de pagar-me. Não só a mim, e essa história ainda está em tribunal. Mas o clube ficou no coração e as pessoas que trabalharam lá também. O clube fica sempre no nosso coração.

- É então que vai para o Alki Larnaca, do Chipre. Como é que isso surge?
- Sim, mas tenho o mesmo problema. Não pagam.

- Gostou do Chipre?
- Tive sorte com as cidades em que vivi. Larnaca era uma zona muito bonita. As praias são giras, o país não é muito grande, pode-se visitar várias cidades.
- A sua mulher e os seus dois filhos foram consigo?
- Foram, foram sempre.

- Adaptaram-se bem?
- Sim. É engraçado que os meus filhos saíram de Málaga e vinham com o sotaque da Andaluzia, depois fomos para o Porto e ficaram a falar nortenho, “à Puorto”, depois fomos para o Chipre e só falavam inglês. Era uma confusão (risos).

- Para si foi fácil adaptar-se a Chipre e ao inglês?
- No princípio não, temos que ter tradutor mas depois uma pessoa apanha. Nunca fui muito bom a falar inglês mas percebia e, pouco a pouco, já falava com eles. Tens que falar, não tens como não falar. Eles só falam inglês ou grego que era mais complicado.

- Esteve quanto tempo no Chipre?
- 4 meses, aquilo correu mal, não pagavam. Depois não queriam que eu ficasse mais na casa que me tinham arranjado porque já não havia dinheiro para pagar as casas. Foi muito chato e tive que vir embora. O clube depois desapareceu, desceu de divisão.

- Não chegou a receber dinheiro?
- Não, aquilo depois ficou em tribunal e na FIFA, mas eles foram à falência. E não recebi nada. 

- Quando voltou para Portugal, foi viver para onde?
- Para Lisboa. O futebol desiludiu-me e desisti. Ainda tive uma proposta de um clube na China, mas não era como agora. Era mais uma aventura e a família estava cansada de andar de um lado para o outro, os meus filhos também tinham a escola.

- Eles continuam a estudar?
- Continuam. A minha filha está com 13 anos. O meu filho virou-se para o lado da saúde. Eu quis ser médico e ele também quer ser. E também joga futebol, no Real Massamá, no primeiro ano de juniores. É bom jogador, tem jogado sempre. Joga no lado esquerdo, a avançado. A minha filha quer ser pediatra. É engraçado porque o meu cunhado é médico, o meu sogro é médico cirurgião, em Angola, as tias são enfermeiras. São todos ligados à saúde.
- Quando regressa a Portugal já tinha casa em Lisboa?
- Tinha, comprei a minha casa em 2000.

- Estava a dizer que quando regressa a Lisboa desiste do futebol.
- Sim, já tinha 32 anos e o meu objectivo no futuro era estudar outra vez. Larguei a escola no 11º ano, depois não conseguia estudar mais e tive de desistir, no 1º ano de sénior, no Benfica. Nessa altura tinha a ambição de estudar.

- Gostava da escola?
- Gostava, sempre fui bom estudante. No centro de estágio estava sempre a estudar e a ler, e ajudou-me mais tarde.

- Então quando regressa inscreve-se para acabar o 12º ano?
- Quando voltei, o Zé Carlos estava no Sindicato dos Jogadores, disse-me que havia a oportunidade de ex-jogadores fazerem o 12.º, nas Novas Oportunidades. Resolvi aproveitar. Estavam lá outros jogadores, o Emílio Peixe, o Bruno Basto, muitos ex-jogadores. Fizeram uma turma de jogadores para nos sentirmos mais à vontade. Perguntaram-me qual era a ambição, eu disse que não queria parar por ali. E inscrevi-me na faculdade.

- Onde e em que curso?
- Fui à procura de cursos de desporto, mas todos os que encontrava tinham a ver com director desportivo e eu queria um bocadinho mais, um que me desse uma bagagem maior. Queria fazer gestão de empresas e encontrei Gestão de Organizações Desportivas, na Universidade Lusíada. Basicamente é um curso de gestão de empresas com algumas cadeiras de desporto. Tem anatomia, que me deu algumas dores de cabeça, matemática e contabilidade, mas sempre gostei de matemática. Tive a ajuda dos meus irmãos, da minha sogra. Tinha aberto uma empresa com o meu irmão em Angola e dava para estar parado um ano a estudar e a pagar as propinas.

- Uma empresa de quê?
- Era uma pequena e média empresa de construção que depois foi à falência com a crise em Angola. Mas fui tendo a ajuda da família. Era a minha vez de estudar, os meus irmãos formaram-se todos, tirando os mais velhos que já não tinham idade para isso. Foi uma batalha que gostei. A minha mulher também me acompanhou. Ela ainda começou primeiro. Ela começou na Lusíada do Porto, eu ainda estava no Boavista, depois interrompeu quando fomos para Chipre. E depois ela é que me fez ir para a Lusíada porque matriculou-se em Lisboa e terminamos os dois no mesmo ano.

- Em que é que a sua mulher se formou?
- Em gestão de empresas. Foi ela que pesquisou por mim, encontrou aquele curso e fui fazer o teste de adesão. Estive uma semana em casa, a estudar forte, e fiquei aprovado. Depois foi aquela batalha de voltar a estudar, já não estudava desde os 16 anos. Como não tínhamos dinheiro para dois explicadores, o meu explicador era o computador. Passava o dia todo a ver aulas e explicações no Youtube. Fazia play/pausa, escrevia, recuava. Como era bom a matemática, apanhei logo. O primeiro teste de matemática tive zero, o segundo tive um. Tranquei a disciplina, porque tinha de estudar, não adiantava estar a insistir. No primeiro teste depois disto tudo tirei 17 a matemática. Acabei com média de 14 a matemática. Também tive média final de curso de 14. Porque houve algumas disciplinas que não foram fáceis, como anatomia, que tem muito a ver com fisiologia.
- Ao longo dos anos, o dinheiro que foi amealhando investiu onde, além da empresa em Angola? 
- Tenho propriedades. A casa da minha mãe, a minha casa, ajudei também a comprar as casas dos meus irmãos. Tenho em Angola duas casas, uma na ilha de Luanda, no Mussulo, que aluguei quando a coisa complicou. Porque eu depois fui para Luanda.

- Termina o curso no mesmo ano que a sua mulher e vai trabalhar para Angola?
- Sim. Na altura havia mais oportunidades de trabalho em Angola. Estamos a falar de 2013. Fomos para Angola com os filhos. Ficámos lá três anos. O meu filho começou a jogar na Academia do Primeiro de Agosto, em Luanda.

- O que fez enquanto esteve em Angola?
- Surgiu a proposta de trabalhar no Benfica de Luanda, na gestão do clube e fiquei lá esses três anos. No princípio correu bem. Mas depois não pagavam também. O presidente era boa pessoa, pagava tudo do bolso dele, mas no final já estava um bocado cansado. A minha mulher trabalhou primeiro num banco e depois passou para uma empresa de importação e exportação, que também quase foi à falência. Resolvemos vir embora, porque depois a situação piorou em Luanda, não se conseguia trocar kwanzas por dólares. A crise que o governo nunca imaginou que chegasse lá, chegou, e chegou muito forte. A juntar à corrupção que existe em Angola...E nós povo sempre a sofrer. Decidimos vir para Portugal, porque mais vale vir ganhar pouco em Portugal do que estar naquela situação. 

- Regressaram quando?
- A minha mulher veio primeiro, em Agosto de 2016 e eu vim em Novembro, Dezembro. Aqui tínhamos casa, as escolas são melhores. Lá tinha uma casa por terminar, tinha a casa da ilha, mas era caro. Decidimos vir. Mais vale viver com pouco e ser feliz em segurança. Estamos a ver os miúdos a crescer e aquela sociedade não estava boa para eles. Agora temos de pensar nos nossos filhos em vez de pensar só em nós.

- Foi fácil arranjar trabalho cá?
- No princípio foi difícil.

- Quanto tempo demorou a arranjar emprego?
- Seis meses. Só comecei a trabalhar em Agosto de 2017.

- Trabalha onde, faz o quê?
- Estou numa empresa, na eSPap, que faz a gestão partilhada do Estado. Faz os registos todos das despesas e receitas do Estado. É uma das várias que existem. É o ordenado mínimo mais um bocado. Nesta altura não é o mundo, mas os dois a trabalhar a gente consegue.

- A sua mulher trabalha onde?
- Está a trabalhar numa empresa. Ela estava comigo, mas depois surgiu a hipótese nessa empresa a ganhar um bocadinho mais e deu o salto. É preciso ter paciência, todos os dias são dias de vitórias. Na nossa vida ganhamos sempre as nossas batalhas, esta é mais uma. Vamos chegar lá.

- Qual o seu objectivo agora?
- O objectivo é crescer. No futebol é uma confusão. Tentei entrar no futebol, mas as portas ainda não abriram. Hoje em dia fala-se de pós carreira, de estudos, é o que eu tenho. Já fiz esse pós carreira e as oportunidades deviam surgir em vários clubes, sou formado, mas... Quero fazer mestrado também, na área de gestão financeira, de forma a dar-me mais bagagem para trabalhar não só na área desportiva e no futebol.

- Gostava de trabalhar no futebol?
- Gostava. Nunca gostei muito da parte técnica. Mas posso estar na gestão financeira do clube, ajudar no trabalho diário do clube, de forma a que o exercício financeiro do clube no final do ano seja positivo.

- Bateu a muitas portas?
- A algumas. Falei com o Nuno Gomes que na altura estava no Benfica. Entramos em contacto, mas depois ele saiu. Falei com algumas pessoas, mas não é fácil. Falei com o presidente do Sindicato de Jogadores que me pediu para enviar o currículo e disse que vai ver se consegue também. Até lhe disse, se eu que sou formado não consigo, para outros há-de ser muito mais difícil.
- Quais são as amizades maiores que ficaram do futebol?
- Foram as de Málaga, também porque foi onde joguei mais tempo. E as amizades no Benfica dos seniores. Costumo jogar todas as semanas com o Bruno Bastos, José Soares, Maniche, Simão Sabrosa, Luís Boa Morte.

- Jogam futebol de 11?
- Jogamos futebol de sete, em sintético. Agora não jogo porque estou lesionado. Jogamos com os jovens e não é fácil. Há duas semanas ganhamos a uma equipa de miúdos, de 20 anos, angolanos. Mas a nossa experiência veio ao de cima (risos).

- Os seus pais estão vivos?
- Graças a Deus.

- Vivem cá?
- O meu pai está mais tempo em Angola. Ele tem uma fazenda de café que está a recuperar e continua com a padaria dele. Vai e vem. Agora esteve cá porque foi operado às cataratas. Já vai fazer 75 anos. A minha mãe vai lá três, quatro meses e fica cá cinco, seis meses. Está mais cá.

- Tem alguma mágoa em relação ao futebol?
- Não. Quer dizer, a situação do Boavista, o dinheiro que me devem, acho que a dada altura, em que fizemos acordo e não cumpriram, as pessoas deviam dar a cara. Mas têm os telefones desligados, é só advogados com advogados. Deviam dar a cara. Isso marcou-me um bocado. O Chipre não, porque aquela gente não me diz nada. Mas o Boavista, somos todos portugueses e quem estava no clube na altura devia ser um bocadinho mais sério e honrar aquilo que acordou, pelo menos dar a cara e dizer podemos pagar “x”.
- Sente que foi um jogador com azar?
- Quando tive a minha lesão no joelho, em Málaga, eu estava no auge da minha carreira, estava jogar muito bem, sou chamado à selecção A para fazer um amigável, no Açores, contra Moçambique. Nessa altura estava numa fase de projecção, ainda estava nos sub-21 mas já era chamado à selecção A, e depois aquela lesão...

- Tramou-lhe a vida?
- Mas faz parte da vida. Se calhar se não me tivesse lesionado não ia viver tanto tempo em Málaga, não ia ter muito amigos em Málaga onde vou muitas vezes de férias, até porque tenho lá casa. 

- Continua a lá ir?
- Sim. A casa está alugada porque ainda estou a pagar a hipoteca e a renda paga a hipoteca. Gosto muito dessa casa porque foi onde cresceram os meus filhos. Mas é a única que ainda estou a pagar, de resto não devo mais nada a ninguém. Devem-me é a mim. Se me tivessem pago tudo o que devem, se calhar não estava nesta situação.

- Vive com dificuldades?
- Não, quando já tens a casa paga, é muito bom. O que interessa ter primeiro é tecto, o resto vem depois.

- Qual foi a maior extravagância que fez na altura em que teve mais dinheiro?
- Já comprei carro bonito. Não aqueles carros tipo Ferrari, mas já tive um Mercedes SLK e tive um jeep. Mas nunca fiz nenhuma loucura.

- Nunca perdeu a cabeça com mais nada?
- Não. Mesmo na altura em que tinha melhores condições do que agora, sempre viajei em económica, nunca viajei em executiva por exemplo. Às vezes podíamos comprar um bocadinho mais de roupas, mas sem entrar em loucuras.

- Viu colegas a perder a cabeça?
- Sim, alguns. Tive colegas que não tinham casa mas já tinham um Ferrari, um Porsche. Outros viajavam para fora com montes de amigos e pagavam viagem em executiva para todos. Muitas jóias, muitos diamantes. Não digo nomes, obviamente. Eu preferi poupar e investir. Investi na família e em Angola, só que em Angola não deu certo, mas a vida é assim.

- A sua ideia é ficar em Portugal ou gostava de um dia voltar a Angola e ficar a viver lá?
- Como está Angola agora, não. A nossa Angola do passado não é a mesma. Infelizmente, às vezes o desenvolvimento complica um bocadinho as coisas, a ambição aumenta, a juventude hoje em dia também não demonstra uma evolução boa para o futuro de Angola. De férias é outra coisa, podes ir. Angola não é assim tão violenta como as pessoas dizem. É preciso ter algum cuidado, mas também aqui ninguém à meia noite para a Cova da Moura. A bairros complicados não se vai, mas dá para andar na cidade à vontade.

- Sente-se mais português do que angolano?
- É complicado. Acho que me sinto os dois. Se calhar na parte da minha maneira de ser, de pensar muito no futuro, é mais um bocadinho português. Mas o lado caloroso, amigo, brincalhão é mais africano.

- Disse que sabe fazer tudo em casa, a mãe ensinou. Na cozinha também?
- Sim, tudo o que é comida angolana faço. Faço muamba, calulo, carne seca. E também faço o resto das comidas. A parte de casa de que gosto mais é a cozinha. Tenho que ter condições na cozinha para sentar e ver televisão porque gosto muito de lá estar.

- A sua mulher é angolana?
- É. É como eu. O trajecto é parecido. Ela veio estudar para cá. é mulata como eu, mas parece branca porque é um bocadinho mais cabrita, o cabelo dela é muito mais liso e tudo.
- Tem algum hóbi?
- Gosto de desporto. Gosto muito de música, mais da africana, porque gosto muito de ritmos. E adoro Fórmula 1, chega a um ponto quase de doença (risos). As duas coisas que me fazem ficar em casa e não ir a nenhum lado, é o Benfica e a F1. Mas o Benfica estou a falar de tudo, porque se uma equipa de andebol, basquetebol ou hóquei joga com uma equipa forte, eu tenho de ver. Quer dizer, às vezes há situações que fico tão nervoso que nem vejo (risos).

- É supersticioso?
- Sou. Não sou doente, mas sou.

- Que tipo de superstições?
- Não sou aquele esquisito, não sou supersticioso com objectos. Dou um exemplo, em Angola fui uma vez ver um jogo do Benfica com o meu cunhado e o Benfica não ganhou, já não vou ver jogo com ele. Se tem jantar só chego depois do Benfica jogar. E se estou a ver um jogo e aparece uma visita que não está programada, fico... então se o Benfica não está a marcar golo, ai. Os sítios onde me sento, a camisola que visto do Benfica...

- Quando era jogador que tipo de coisas tinha?
- Aquelas coisas de entrar com o pé direito. Fazia sempre as mesmas coisas. Tinha um ritual. Tinha que falar com a minha mulher ou com o meu filho antes do jogo. No balneário ia à casa de banho antes de entrar para o campo e tinha de falar com eles. Se ela não atendia o telefone, o massagista levava o telemóvel e depois fazia-me sinal quando ela ligava. Assim já ficava calmo. E se era jogo em casa eles tinham de estar na bancada e eu tinha de vê-los e mandar beijos.

- Tem alguma alcunha?
- Não. Só na família. Desde pequeno que os meus pais me chamam Degas. Alguns dos que estiveram comigo no centro de estágio também chamam, mas no geral, no futebol, não. Em Espanha a maior parte chamava-me Pacheco, porque é tradição lá chamarem pelo apelido.

- É crente?
- Sou católico, mas não praticante. Não é preciso ir a lado nenhum para acreditar. Eu posso entender-me com Ele, nos meus pensamentos.

- Vamos à F1. Quando surge essa paixão?
- O meu irmão, o terceiro dos mais velhos, gostava muito de motas. Ele quase morreu. Já teve uns cinco, seis acidentes de mota, em Angola. Até que ficou um ano no hospital e aí começou a desistir das motas. Por volta dos meus 13, 14 anos, já eu estava no Benfica, cada vez que ia a Luanda de férias, como ele gostava muito de motas, via o campeonato do mundo de 250cc e de 500cc. Mas em simultâneo também via a F1. Foi nessa altura que surgiu o Ayrton Senna e comecei a gostar, porque angolano defende o brasileiro como defende o português, porque somos PALOP's e falamos a mesma língua. Quando Ayrton Senna se torna o melhor do mundo aí começou a minha paixão pela McLaren e pelo Ayrton. Com o tempo fui adorando a F1.

- Então quando o Ayrton Senna faleceu...
- Chorei. Estava na selecção, no campeonato da Europa de sub-16, em Dublin, na Irlanda, quando vieram dizer que ele tinha morrido, tive que sair da mesa para ir para o meu quarto, porque fiquei “doido”, triste, triste, fui chorar. Foi uma desilusão é a mesma coisa que o Benfica todo morrer, aquilo foi... Mas nunca desisti de seguir a F1 e acompanhei a McLaren porque foi a equipa onde ele teve mais sucesso. Depois apareceu o Hamilton e foi como se tivesse encarnado o Ayrton Senna. A mesma história, a mesma equipa, os mesmos objectivos. Aí comecei a ficar outra vez vidrado num piloto, não só na equipa. Até hoje.

- Alguma vez assistiu a um GP ao vivo?
- Não. Nunca consegui por causa do futebol. Mas já vi de motas. Adoro o Valentino Rossi. Mas é fácil gostar dele. Consegui ver o último GP aqui no Estoril. Levei o meu filho, que está atrás do mesmo vício.

- Nunca teve mota?
- Não, não. Tenho medo. Gostava de andar, mas não sou muito aventureiro.
- Quando começou a jogar à bola quem eram os seus ídolos do futebol?
- Eu adorava o Rijkaard porque usava caracóis como ele. As primeiras equipa de futebol por que me apaixonei foi a seleção do Brasil de 1986 e a Laranja Mecânica, do Marco van Basten, Rajkaard. Adorava o cabelo dele e então toda a minha passagem pelo futebol juvenil do Benfica eu usava o cabelo igual a ele. No Benfica adorava o Valdo. É engraçado que quando era miúdo vi-o e depois ele volta do PSG para acabar a carreira no Benfica e eu ainda jogo com o meu ídolo. Ficava no quarto com ele e ele achava estranho eu ficar a olhar tanto para ele (risos).

- De todos os treinadores que teve qual o marcou mais?
- Não posso falar de futebol juvenil porque todos me marcaram e considero-os a todos como pais. Sou o que sou hoje por causa deles. O Artur Jorge passou pelo Benfica não deixou boa memória para os benfiquistas mas a mim deixou, porque foi o treinador que teve o atrevimento de me pôr a jogar com 17 anos contra o FCP. Apostou em mim. O Mário Wilson e Manuel José também me marcaram muito. Manuel José foi buscar-me ao Alverca. Como treinador foi sempre maravilhoso e como conselheiro era muito boa gente. O Sheu também foi muito bom conselheiro. Depois na selecção, tive muitos, o Rui Caçador, o Jesualdo Ferreira, que também é angolano, ajudou-me muito. O Benfica foi uma casa aberta e boa para mim.

- Nunca o incomodou ter representado a selecção de Portugal em vez da selecção angolana?
- No auge da carreira, antes de lesionar-me ainda pensei duas vezes. Mas depois, ia de férias para Angola, falava com dirigentes, ia ver jogos e aquilo é tudo complicado. E também pensava que não era justo porque as pessoas que me apoiaram e apostaram em mim eram daqui de Portugal e da selecção portuguesa. Eu conhecia toda a gente da federação porque joguei em todas as selecções. Não era justo.

- Hoje quando vê um jogo entre Portugal e Angola, torce por qual?
- É complicado. No Mundial apostei mais por Angola porque sabia que no jogo seguinte Portugal ia ter mais vantagem e passar a fase de certeza. Mas não foi decisão fácil. Fico sempre dividido, seja em que modalidade for. Normalmente torço por aquele que precisa mesmo da vitória ou que está em maior dificuldade. Mas é sempre complicado. Fico muito dividido. É engraçado que nas férias eu podia ir a muitos lados, mas nunca conheci nenhuma ilha exótica porque eu queria sempre ir para Angola. Só tinha um mês, tinha que ver a família. E era muito feliz lá em Angola.

- Nunca gostou de viajar para outros destino?
- Só viajei uma vez na vida, em lazer, de férias. Fui com a minha mulher, irmão e cunhada para o Nordeste porque a minha mulher queria muito, porque por mim ia para Angola (risos).

- O que costuma fazer nos tempos livres. Por exemplo, no fim de semana?
- Nós estamos sempre enfiados na família. Fim de semana eu gosto de estar com a minha mãe. A minha mãe está com 70 anos, já não está para cozinhar tanto como antes, ainda faz, mas quem bate o funge sou eu. Quando vem os meus irmãos, estamos todos enfiados na mãe. Passamos o dia todo a comer funge, a conversar. Nós angolanos gostamos muito do ambiente familiar e quando dás conta já são duas, três da manhã. Ou então fico a ver futebol ou F1."

Título: tudo mais decidido

"Sou homem de fé, religiosamente falando, mas não alimento qualquer fezada, desportivamente escrevendo na vitória neste campeonato.

O FC Porto ganhou o jogo na Luz e deu um passo avantajado na conquista do título. O Sport Lisboa e Benfica, tetra-campeão nacional - é bom não o esquecer, como fingem alguns mais desmemoriados - deixou de depender dos seus próprios jogos. O jogo foi equilibrado, com algum ascendente do Benfica na primeira parte e do Porto no segundo tempo. Desta vez, a sorte esteve do lado dos azuis e brancos, no único remate enquadrado com a baliza de Bruno Varela, que teve uma tarde relativamente desafogada. Tal como Casillas, se exceptuarmos os remates de Cervi e sobretudo de Pizzi ao cair da primeira parte que, aliás, poderia ter feito bem melhor.
Temos de saber aceitar os desaires, ainda que com a tristeza e desilusão que os envolve. Todos querem ganhar e nem sempre se pode vencer.
Podemos agora chorar a ausência de Jonas, que, creio, poderia ter tornado o jogo diferente. Mas o futebol é mesmo assim, com este tipo de contingências que podem surgir a qualquer momento. Já o treinador do Porto, com a chico-espertice habitual no reino do futebol, fez um enorme bluff com as lesões de Maerga e Corona, que, afinal, recuperaram num ápice milagroso.
Sentiu-se sempre que o Benfica não conseguiu superar o trauma dos jogos com o Porto, no Estádio da Luz. Apesar do notável apoio do público encarnado, pairou no ar a recente tradição de que não se tem conseguido vencer este clássico, ainda que na última derrota (2016) e dois empates (2015 e 2017), o Benfica se tenha sagrado justamente campeão.
O Benfica rematou muito pouco e só se ganham jogos olhando para a baliza. Lamento dizer, mas, na minha modesta opinião, Rui Vitória errou nas substituições, sobretudo na terceira que me pareceu inexplicável. Estando o resultado em 0-0 a poucos minutos do fim que era, apesar de tudo, menos mau para o Benfica que seguiria na frente e dependendo de si próprio (e até com dois nulos lá e cá, logo com uma ligeira vantagem de goal-average que poderia ser importante em caso de igualdade pontual no fim da Liga), tirar Pizzi para colocar Seferovic, que pouco ou nada tem feito, poderá ter estado na origem do golo portista. Onde Herrera foi feliz no chuto era onde Pizzi certamente andaria se estivesse em campo. Tratou-se de uma substituição apenas desportivamente correcta, como quem diz, não estou satisfeito com o empate, vai daí mais um atacante...
Sou homem de fé, religiosamente falando, mas não alimento qualquer fezada, desportivamente escrevendo, na vitória neste campeonato. Seria preciso ganhar todos os jogos e ver o FCP perder um  jogo, sendo que, em teoria, só tem um jogo com alguma dificuldade no Funchal. Já nós, benfiquistas, com esta derrota iremos provavelmente disputar em Alvalade o direito ao segundo lugar do pódio que possibilita a oportunidade para entrar na fase de grupos da Liga dos Campeões.
Uma última palavra sobre a escolha do árbitro. Já não sei há quanto tempo e há quantos jogos este clássico é arbitrado por juízes da Associação do Porto, depois do tempo em que o lisboeta Pedro Proença sistematicamente prejudicava o Benfica. Será que não há outros árbitros que possam estar nestes jogos? O resto é tudo refugo só para os jogos menores? Se o critério é o de serem internacionais (até parece que só há os dois da A. do Porto), veja-se a ausência do Mundial de juízes portugueses, que fala eloquentemente sobre isso.
O certo é que Artur Soares Dias nunca mais foi o mesmo árbitro desde as brutais pressões se não directamente físicas, assaz psicológicas e familiares de que foi alvo (e outros) no Centro da Maia. Os sempre invocados e-mails do SLB mais parecem 'pressões de meninos de coro' quando comparados com as sevícias que foram levadas a cabo por energúmenos que, tal zelosos intermediários de outros poderes, há muito deveriam estar afastados. Permitam-me trocadilho: água dura em pedra mole, tanto dá até que muda!
No jogo propriamente dito, se exceptuarmos a evidente penalidade ao minuto 92 cometida contra Zivkovic (no Dragão e a favor do FCP, como teria sido a decisão?) não se pode dizer que o Benfica perdeu por causa do homem do apito. Mas lá que foi uma arbitragem medrosa, quiça manhosa, nos lances em que a decisão poderia cair para um lado ou para o outro, lá isso é verdade.

Ruth
Pude ver em ante-estreia o filme Ruth que passará a partir de Maio nos cinemas portugueses. Trata-se de uma magnífica realização de um jovem, António Pinhão Botelho, filho de Leonor Pinhão e de João Botelho. É caso para dizer que «filho de Botelho, sabe filmar».
O filme relato-nos, com dinâmica e rigor, a saga da vinda de Eusébio da Silva Ferreira para o Benfica nos já longínquos anos de 1960 e 61, após uma disputa taco-a-taco com o Sporting. O título do filme Ruth é simbolicamente feliz, pois foi com o nome falso de Ruth Malosso que o então promissor Eusébio viajou de avião para Lisboa, assim se antecipando ao seu eterno rival.
Gostei da obra. Não apenas e sobretudo por se tratar de uma história em que o meu clube escreveu o seu futuro, mas fundamentalmente porque nos possibilita fazer uma viagem no tempo, com peripécias hoje inimagináveis, com meios e instrumentos de persuasão e influência que agora seriam pré-históricos, com as quase ingénuas regras no tráfico de influências entre os venerados poderes administrativos, futebolísticos e políticos naqueles annus horribilis do Estado Novo.
Magnífico é o modo como nos é apresentado o ambiente da então Lourenço Marques, entre apaniguados dos dois clubes, entre as diferentes classes sociais de Moçambique daquele tempo, entre a propaganda e a utopia, entre o café dos brancos e a rua dos negros. Como disse o realizador, «o filme não é sobre futebol, nem sobre o Benfica ou Sporting. O filme é sobre uma pessoa, um país, uma época».
Um pormenor que gostaria aqui de partilhar. No fim do imbróglio da vinda de Eusébio para o Benfica, este teve de pagar ao Sporting de Lourenço Marques a quantia de 400 contos. Fiquei curioso em saber a que corresponderia hoje aquela importância. E, de acordo com a conversor da Pordata, equivaleria a 174.633,84 euros (cerca de 35.000 contos em moeda antiga). Como se constata, outros tempos em que o esbanjamento não era o que é hoje! E uma pechincha para o incomparável e eterno Eusébio da Silva Ferreira!
Excelente, em suma. E uma brilhante interpretação do jovem Igor Regalla, no papel de Eusébio então em trânsito para Lisboa.

Contraluz
- Arbitragem:  Em Chamartin, no jogo Real Madrid - Juventus.
Os espanhóis continuam a ser escandalosamente beneficiados por arbitragens vergonhosas. Veja-se o que aconteceu nas meias-finais da Champions do ano passado, contra o Bayern de Munique. Pois agora depois dos italianos virarem por completo a eliminatória, um tal de árbitro auto-resolveu não prosseguir para o justo prolongamento e assinalou uma penalidade com lupa na mão e espuma no apito. E Buffon não merecia ter acabado a sua longa e exemplar carreira na Liga dos Campeões com uma expulsão, mas, que diabo, um homem não pode aguentar tudo com ar senhorial!
- Empolgante: A luta pela promoção...
... na competição que ainda chamo «Segunda Divisão». Há, ainda sete equipas que podem sonhar com aquela possibilidade, ainda que uma delas - o Nacional da Madeira - esteja quase com um pé na 1.ª Divisão. E é interessante observar que há uma grande e positiva dispersão geográfica e histórica entre os candidatos, desde os Açores (Santa Clara), ao Académico de Visei, ao Arouca, à sempre saudosa Académica de Coimbra, ao Leixões e ao Penafiel."

Bagão Félix, in A Bola