"O sofrimento dos benfiquistas era intolerável naquele Verão de 2007. Simão tinha pegado num Benfica moribundo, assumido toda e qualquer responsabilidade e suportando todo o peso de quase uma década de fracassos.
É dele o golo que dá a Taça de 2003, o primeiro troféu da equipa sénior desde 1996; e é dele o golo de penalty no Bessa que dá o título, 11 anos depois. Como também foram dele os maiores momentos daquele Benfica que foi de Camacho, Trapattoni e Koeman, o que ganhou consecutivamente troféus nacionais e brilhou fora de portas.
É Simão que pergunta a Pepe Reina se a consegue ir buscar ao ângulo na gloriosa noite de Anfield, como também é Simão que tem nos pés o empate na Catalunha, golo que abriria a porta das Meias áquele Benfica, impossibilitando o título posterior do Barcelona de Ronaldinho. Sempre ele, nos momentos mais decisivos.
Era a figura incontestável da equipa e o ídolo de toda uma geração, papel que mais nenhum outro voltaria a ter desde então. Não com a mesma magnitude, apesar de todos os golos marcados por Cardozo ou Jonas, ou pela liderança e longevidade de Luisão. Nenhum deixou marca como o ‘20’. É o símbolo da primeira década do milénio, como João Vieira Pinto fora na anterior, com a mais que válida justificação a fugir da aborrecida estatística e a entrar obrigatoriamente no campo do misticismo.
Por isso, sabíamos todos em 2007 que o tempo de Simão capitão era fio prestes a ser cortado. As suas qualidades extravasavam o contexto competitivo e ausência de títulos justificava saída para campeonatos mais abastados – basta imaginar quanto tempo duraria, no Portugal de 2023, um Simão, sem virem cá oferecerem o dinheiro duma vida. Foi namorado muito tempo pelo Liverpool, mas seria o Atlético de Madrid a levá-lo, por… 20 milhões. E preferência sobre dois jogadores, que nunca se soube quem foram. No Calderón ganharia títulos europeus com colegas mais da sua categoria – sem dúvidas, bastando atentar na linha avançada que com ele ganhar a Liga Europa de 2009: Reyes, Forlán e Aguero. Merecido.
A venda confirmou-se a 26 de Julho. A 27, uma Sexta-Feira, noticiava-se que Ángel Di Maria chegaria Domingo para o substituir. Um rapaz de Rosario, que trepara avidamente os escalões de formação do Central e que nos seniores, ainda adolescente, fizera 39 jogos; mas o que verdadeiramente criara a ilusão à sua volta tinha sido o rendimento no Mundial de sub20 daquele ano, no qual a Argentina é campeã com seis vitórias em sete jogos (e 16-2 no score de golos…), com Kun Aguero a arrebatar os troféus de melhor jogador e marcador. Di Maria tinha maravilhado também, pelo estilo irrequieto que com o fisico franzino fazia surgir o Fideo como alcunha e pelas diabruras duma canhota extrovertida, muito em falta naquele Benfica.
A contratação fez barulho por toda a Europa: o Arsenal perdera a corrida para um Benfica ainda de terceira linha. Ninguém percebia como. Wenger tinha ficado fascinado com o Ángel e queria trazê-lo para a Europa, colocando a jóia em trânsito no Salamanca – a disputar a La Liga 2 – para a polir ao jeito europeu. Fideo não gostou da trama e rejeitou, como já tinha rejeitado o Boca por conselho do treinador que o lançou, Carlos Ischia –
«Carlos me dio la posibilidad de jugar más adelante para que me vengan a buscar, me dio la posibilidad de ir al mundial Sub 20, la verdad que estoy agradecido, es una gran persona, me aconsejó a irme a Europa y que el tren pasa una vez a la vida, son solo palabras de agradecimiento, si bien no es uno de los entrenadores con mas renombres que tuve, me marcó mucho»
– e finalmente decidiu-se pelo Benfica, que oferecia os sete milhões de euros que muita falta faziam aos cofres do Rosario Central. Chegava a Lisboa numa semana em que partilhava as capas dos desportivos com Belletti, o lateral brasileiro que o Benfica pensou poder ir buscar, por empréstimo – até Mourinho e o Chelsea pensarem nele para fazer sombra a Paulo Ferreira e contratarem-no em definitivo ao Barcelona.
Chegou como Enzo. A planear fazer do Benfica um Salamanca, que o último destino afinal era mesmo suposto ser Londres, mas não o Emirates. «Sei que o Benfica é um clube enorme e que luta por grandes títulos. Por isso, espero fazer uma grande temporada em Portugal e ir depois para o Chelsea» completando com uma belíssima explicação, dizendo que o Benfica era «uma excelente entrada na mais alta roda do futebol europeu.» Ingenuidade que o MaisFutebol apelidou de “sinceridade pouco comum”…
Di Maria precisou de tempo, naturalmente. Naquele 2007-08 estreou-se na segunda mão da pré-eliminatória da Liga dos Campeões, em Copenhaga, e três dias depois mostra excelentes apontamentos na Choupana, num 0-3 ao Nacional – não conseguiu foi replicar isso de forma consistente. Durante a época participa em 45 jogos, mas faltava-lhe a maturidade que Maxi Pereira, ainda médio ala, e Cebola Rodríguez já tinham. E por isso foram eles as principais opções para Camacho e Chalana.
Nova época, concorrência ainda mais apertada apesar das grandes Olimpíadas que protagonizou, onde ganha o Ouro junto a Messi mas sendo ele o actor principal, com aquela chapelada frente à Nigéria. Chegado a Lisboa de confiança em alta, vê-se a tirar senha numa sala de espera com Reyes – antes de ir para o Atlético ter com Simão – , Urretaviscaya, Pablo Aimar – que para Quique era muitas vezes o homem da esquerda no 4-4-2 -, Carlos Martins ou Rúben Amorim, que acaba por ser o dono do lado direito pela obsessão do treinador espanhol pelo equilibrio e futebol de processos invisíveis. Correu mal. Com zero títulos em dois anos, certamente passaram pela cabeça de Fideo as tentações de sair, sustentadas pelas memórias das primeiras declarações como jogador do Benfica. O plano tinha falhado. Mal ele sabia que naquele plantel já estavam os escudeiros que completariam consigo a espinha dorsal de Jesus. Quim, Maxi, Luisão, David Luiz, Coentrão, Aimar e Cardozo já eram assalariados do Benfica, nenhum imaginando a diferença em futebol jogado no ano seguinte.
Na asa esquerda do losango, Di Maria cumpriu finalmente as promessas do seu ruidoso talento. Partiu campeão para Madrid, com dez golos e 17 assistências na bagagem – as que lhe valeram a convocatória para o Mundial da África do Sul.
Treze anos depois, volta já consagrado, campeão mundial com direito a nova inscrição na lista dos marcadores duma final pelo seu país. Figura histórica já, lenda viva ainda com capacidade para fazer a diferença na maior prova futebolística do planeta. Daí que as dúvidas que se coloquem ao seu estado física não sejam mais que… desejos. Projecções.
Retorna a Lisboa, todos dizem, por uma época mais outra de opção. Novamente, com pretensões de fazer apenas escala, desta vez por motivos mais nobres, do coração – quer terminar a carreira em Rosario, no seu Central. Numa fase em que todos optam pelo dinheiro das Arábias ou que o amigo Messi precisa de reforços para levantar o Miami, Ángel prefere ser anjo e cumprir desejos dos milhões que já por si muito rezaram.
Em Lisboa, espera-se impacientemente, como esperavam os pastorinhos num morro perto de Ourém pela visão prometida, com hora e data marcada – Di Maria, que sempre fez do seu futebol coisa imprevisível, mantém todos de olhos postos no Flight Radar ou de olhar espetado no céu azul de Tires, a ver os aviões passar. Que, como o seu futebol, é de levar as mãos à cabeça."