"Não foi a primeira vez que o Benfica decidiu uma final europeia em Itália. A outra foi em 1965 e foi infame! Frente o Inter, em Milão, em pleno S. Siro. Ficou para a lenda!
O título não é meu: roubei-o. Ou melhor: pedi-o emprestado. A frase é do Miguel Torga que sabia da vida como ninguém. Vinha a calhar, logo, não hesitei. Roubei-o ou emprestá-o, faça o leitor o juízo que bem lhe apetecer.
Contas, sim, porque chegámos à altura de fazer contas.
Não foi perfeito? Não. A perfeição existe? Respondem-me vocês que eu não sei. Mas, se não foi, foi quase.
Estive em Turim. Estádio bonito, arrumado. Dizem que leva 40 mil pessoas mas não esteve nem perto. Dir-se-ia estranho. Não pelas pessoas que vinham de Lisboa e de Sevilha e não da própria Turim que ignorou olimpicamente a sua final sem Juventus. Estranho porque conheci o Comunale, o Dell'Alpi, que sendo feios como o Demo, tinham algum do gigantismo, que se atribui à Velha Senhora. Pois. Em Turim está-se como em Braga, em Guimarães. Maneirinho... Mas Turim também é tão maneirinha...
A Dona da Pensão da Vida é uma mulher velha como o Mundo. Convém ter as contas certas com ela. Talvez nisto tudo se veja um sinal de modernidade à mistura com decadência, com a verdade dos novos tempos.
Também estive na Luz com 120 mil pessoas. Que digo eu? Com 130 ou 140 mil, vá lá saber-se. Ninguém controlava bilhetes, entrava-se pelos portões com os pés no ar, entalado na multidão excitada e incontível. Era um tempo muito para além deste tempo, já complicado de lembrar quanto mais de afirmar.
Turim foi o Alcácer-Quibor desta época do Benfica. Uma derrota quase vitória. Mais: um empate quase vitória. O ir sendo não sendo.
O que falhou? Aqueles que pelo caminho se perderam em cartões amarelos e vermelhos. Estamos todos ou quase todos de acordo. (Há sempre uma réstia de inveja mesquinha em comentadores e articulistas de meia-tigela). O Benfica-de-todo-inteiro teria ganho. Senão fácil, confortável. Mas não houve Benfica-todo-inteiro. Houve o Benfica possível na noite impossível. Se me garantirem que nem daqui a mais de 52 anos o Benfica ganhará uma taça da Europa, eu acredito. Não creio no Destino (assim mesmo, com maiúsculas, mas aceito que a Dona da Pensão da Vida embirra com as contas como qualquer matrona embirrenta que gere o negócio do marido que já morreu).
E o domingo tornou-se segunda-feira
Três dias depois estive em Wembley, na final da Taça de Inglaterra. Arsenal-Hull City. Estavam quase 90 mil pessoas num gigante admirável. Metade vestia com o amarelo e negro às riscas do Hull. Dizem as estatísticas que Kingston-ipon-Hull tem 250 mil habitantes. Estaria lá um quarto? Ficaram em casa os velhos, as crianças e os entrevados? Não sei. Mas o novo Wembley comparado com o pequenino novo Juventus Stadium (mas passa pela cabeça de alguém baptizar assim um estádio italiano?) é motivo para ironia maior do que a do Camilo no Eusébio Macário. Num lugar e no outro estive com amigos velhos e estreitos, e encontrei gente que há muito não via. Até de Águeda. De um lugar ao outro vi a festa de uns e a tristeza dos outros. Em Turim a tristeza tinha uma cor: o vermelho.
Finais perdidas: na Europa demasiadas finais perdidas. Oito, se não contarmos com a Taça Latina; nove se contarmos com aquela de Santiago Bernabéu, frente ao Real.
Talvez (repito, talvez) não nos caiba ver o Benfica ganhar uma taça europeia. Nós, os da geração que entra nos 50 anos. O Eusébio não voltou a ver, o Coluna também não. Mas a grandeza dos clubes não se reduzir à estatística meramente mecânica de comparar provas a esmo como se valessem todas a mesma coisa. Haverá outros tempos e outras coisas para ganhar. Quem de quatro tira uma, ficam três. Foi uma época única, invejável.
Antes da final de Wembley, um adepto do Arsenal desabafava-me: «Tomáramos nós o lugar do Benfica. Há nove anos que não ganhamos coisa nenhuma». Ganharam. A festa foi vermelha em Londres. É esse o caminho dos vencedores, mesmo quando passam temporadas esquecidos das vitórias. Depois vêm mais sábados e domingos de euforia pelas ruas. É assim a vida: faremos nós todos (mas todos sem excepção!) contas com a dona da sua pensão.
Em Turim o Benfica, verdadeiramente não perdeu: fez apenas um pequeno intervalo no vício de ganhar.
E por isso o domingo se tornou segunda-feira..."
Afonso de Melo, in O Benfica