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terça-feira, 7 de janeiro de 2014

Silêncio

Ontem, não foi um dia normal: o Rei foi enterrado em Dia de Reis; tivemos uma chuva persistente, provavelmente enviada por São Pedro para benzer o acontecimento; e o próprio Neptuno enviou a maior e mais alta tempestade marítima, que Portugal tem memória!!!
Mas o luto ainda não terminou, no próximo fim-de-semana, vamos ter jogo importante, que esperamos seja a derradeira homenagem da equipa ao King, com a vitória que ele merece...
Antes do jogo vai ser cumprido um minuto de silêncio, e eu desejo que seja mesmo um minuto de silêncio, o Eusébio foi aplaudido e ovacionado vezes sem conta, seria bonito desta vez, agradecer-lhe com silêncio... afinal de contas chama-se um minuto de silêncio por alguma razão!!!
E já agora, prevendo que vão passar um filme nos ecrãs gigantes com imagens do King, também seria bonito, que não tivesse banda sonora... E se alguém dos adversários não respeitar o momento, o problema é deles, abafar com palmas esses prováveis impropérios, é uma 'ajuda' que eles não merecem!!!
Deixo aqui algumas das imagens mais marcantes destes dias:

A geografia de Eusébio

"Eusébio não se mede em golos; mede-se em vidas tocadas num momento particular da História.
Reforcei esta ideia recentemente, durante aquela triste tentativa de matematizar em golos a distância entre Eusébio e Ronaldo: a minha geração, nascida nos anos 1970, e as seguintes podem, quando muito, especular sobre o impacto que Eusébio teve num Portugal para nós inimaginável.
Eusébio foi um desportista, mas também um terramoto e, como os terramotos, deixou marcas na pedra - em todas as pedras - que ainda podemos visitar em conversas com os nossos pais e avós. É infalível: qualquer que seja a cor do coração, falar-nos-ão de um cartógrafo impossível, que definiu a geografia do nosso futebol, mas que também foi transversal; durante décadas, completa e miraculosamente imune às baixezas do facciosismo. Ninguém que viveu tantos anos nas trevas esquece, e muito menos deixa de estar grato, a quem lhes acendeu uma luz, não importa o clube nem o cartão de sócio.
Não há como comparar Eusébio, e o contexto de Eusébio, com nenhuma outra figura, com nenhum outro nome, porque não falamos de bola: falamos de tocar a vida das pessoas num momento específico da História. A homenagem que se lhe pode fazer é a constatação de até que ponto se tornou inconcebível que apareça alguém capaz de ser um factor de união remotamente comparável; alguém capaz de pairar acima do ódio e da mesquinhez do futebol, quando nem os partidos políticos admitem, por um segundo, pôr de lado o oportunismo e a tacanhez em nome do bem-estar de milhões."

Simplesmente Eusébio

"Aqui na distante África, na terra de Eusébio onde ando por estes dias, o grande Mário Coluna diz que perdeu um filho. E, ouvindo o célebre capitão do Benfica e da Selecção dos tempos gloriosos, lembro-me de ouvir contar a história do miúdo que chegado de Maputo – à época Lourenço Marques – tratava Coluna, que tinha mais sete anos do que ele, por… senhor Coluna num sinal de respeito e humildade que o tempo nunca apagou, nem mesmo quando Eusébio passou, primeiro com o brilho das estrelas, depois com a eficácia dos predestinados, a ser o abono de família do Benfica dos anos 60 e início dos anos 70 quando os seus remates certeiros – até mesmo quando os joelhos já não ajudavam – entravam como balas nas balizas adversárias.
O King aplaudido e agraciado, embaixador do Benfica e da Selecção era do futebol e nunca quis ser de outro mundo. Gostava mais de estar no relvado do que no camarote. Gostava daquele cheiro que, dizem, só a relva tem.
Saí de Lisboa ao início da tarde de domingo ainda a notícia da morte de Eusébio era recente. Neste mundo global, tudo o que vi e li chegou aos leitores de Record, mas em plena era da globalização é absolutamente extraordinário como a simples referência à minha condição de português encaminhou todas as conversas para o desaparecimento de Eusébio, o seu legado, a inevitável comparação com Cristiano Ronaldo, o que dele disseram Di Stéfano ou Pelé. No aeroporto do Dubai, em trânsito, encontro um amigo espanhol que me pergunta se lera o que tinha escrito Don Alfredo. Que não, que acabara de aterrar. Sentado, computador à frente, encontro a frase de Di Stéfano – “Para mim, Eusébio, sempre será o melhor.” Não sei se assim é e, na verdade, ninguém sabe porque não há uma maneira de aferir essa condição. Sabe-se que Eusébio da Silva Ferreira está entre os maiores de sempre e, não por acaso, gerações de portugueses emocionaram-se com ele, com a sua genialidade e o seu talento quase tão contagiantes como o seu sorriso de menino pobre a quem a vida deu o que talvez ele nunca pensasse ter. Como escrevi no meu Facebook: Nunca vi o Eusébio jogar. Não é do meu tempo, embora ele – como todos os seres eternos – seja de todos os tempos. Nunca vi o Eusébio jogar, como não vi a partida das caravelas de Vasco da Gama ou a saída do hidroavião de Gago Coutinho e Sacadura Cabral. Vi, vezes sem conta na televisão, aqueles golos à Coreia relatados pelo Artur Agostinho no Mundial de 1966. Não os vi ao vivo, mas vivi-os como se tivesse o secreto desejo de lá ter estado no estádio ao lado do Mundo que abria a boca de espanto. Nunca vi o Eusébio jogar ao vivo mas, eu sportinguista, já expliquei ao meu filho pequeno que aquela estátua, no Estádio da Luz, é a de um jogador de que ele um dia vai ouvir falar. Mesmo sem nunca o ter visto rematar à baliza como, dizem, só ele rematou. Da próxima vez que voltar ao Estádio do Sport Lisboa e Benfica espero que se mantenha nos lugares de estacionamento, onde se pode ler presidente, vice-presidente, administrador e outros títulos pomposos um lugar vago que sempre lá esteve e que diz simplesmente: Eusébio.

O Eu a Eusébio
“Uma coisa me consola, Eusébio. É que não fui eu quem cobriu Você de adjectivos, de apodos, de cognomes mais ou menos imaginosos. Não fui eu quem disse que Você era a pantera, o príncipe, o bota de oiro, o relâmpago negro, o coice para a frente, o astropata. Também não fui eu quem disse que o seu nome era Eusébio. Dar o Eu a Eusébio, que pretensão! Derive, derive e vire, vire e atire sem parança, Eusébio, seu genial tragalhadanças!”
Alexandre O’Neill - Uma Coisa em Forma de Assim

Arquivo
Só acompanhei em directo uma parte do trabalho das televisões portuguesas na cobertura do que é, sem discussão, um grande acontecimento mediático. Vi até à hora de almoço de domingo e, com a ajuda das ferramentas tecnológicas, segui o essencial do restante trabalho quando aterrei. Parece-me claro que a RTP arrancou melhor e fez melhor num terreno onde tinha vantagem e, é justo dizê-lo, a sua equipa de produção estava há muito (como tem que acontecer) devidamente preparada. A RTP tem também uma grande vantagem sobre as televisões privadas em matéria de arquivo e soube usar bem esse material laboriosamente trabalhado ao longo dos anos. Terá havido ou não um excesso na cobertura do acontecimento? A resposta é sim, mas é inevitável que assim suceda. Durante aquelas horas os públicos procuram informação sobre aquele evento em concreto. Se, estando em directo, não há excessos e redundâncias? Claro. Mas só quem nunca esteve em directo é que não entende isso.

Made in Benfica
Eusébio faz parte de uma época que não volta mais. Durante décadas os jogadores oriundos das “colónias” alimentavam as equipas da “metrópole” numa relação onde o colonizador tirava todo o partido e dava pouco em troca. Mas no Benfica do tempo de Eusébio não entravam estrangeiros e, de facto mesmo com esse mercado privilegiado, havia um Benfica, made in Benfica como Luís Filipe Vieira expressou numa recente entrevista. O Mundo mudou tanto que o conceito faz hoje pouco sentido. Talvez seja melhor negócio e crie equipas mais competitivas encontrar jovens talentos em mercados como a Colômbia ou a Sérvia. Essa opção é legítima, mas ela não pode eliminar por completo a criação de valor na formação nem a oportunidade que se dá a esses jogadores para crescer. Isso, sim, é um péssimo ato de gestão até porque, quase 40 anos depois da independência os maiores talentos dos países africanos de língua portuguesa continuam a chegar com destino traçado: Benfica, Sporting e FC Porto. Fácil de entender, não?"

Uma marca registada

"Quando o tempo do futebolista foi naturalmente consumido e a sua obra inimitável o fez passar à condição de mito inapagável, Eusébio tornou-se referência de gerações, confundiu-se com o país. Há muitas décadas que o Pantera Negra é um fenómeno social, um nome que vai passando de voz em voz, a imagem que perdura na memória colectiva, a marca capaz de se sobrepor a uma sociedade que no seu tempo de maior fulgor profissional ainda pouco tinha de global.
Uma das maiores tentações de ontem foi fazer a projecção sobre o valor do futebolista Eusébio no jogo contemporâneo, comparado às estrelas planetárias que facturam ao minuto – trabalho inútil.
Para os heróis não há limites, cada um tem as suas virtualidades. Como os génios, são incomparáveis e bem dispensam a desfeita de juízos apressados. Resta à história calibrada pelo saber dar o seu veredicto, sabendo-se já que no caso de Eusébio ele é o King que foi resgatando os portugueses da sua endémica desconfiança.
Depois do luto, do respeito que é devido à família, há um trabalho para fazer, para além de alimentar o mito, fazendo reviver histórias antigas, eternas.
Eusébio deixa um património inconfundível ao futebol: a sua inigualável técnica de remate – o corpo que se inclina para a frente, a acumulação de energia logo descarregada brutalmente sobre a bola, a precisão quase infalível. Para além da literatura (pouca) que se foi publicando sobre os seus traços biográficos, falta estudar e dar à aprendizagem aquilo que verdadeiramente universalizou o nome de Eusébio: a técnica apurada de golear.
Quando o treino do futebol tende a especializar-se, o “remate à Eusébio” tem de ser estudado em todas as suas vertentes, fazer parte de um repertório técnico capaz de distinguir os melhores praticantes.
Caberá à universidade portuguesa – e no país existem faculdades com competências demonstradas na formação de alguns dos melhores treinadores do Mundo – e à Federação Portuguesa de Futebol o desenvolvimento de um projecto científico e técnico que permita criar a marca registada de um dos mais brilhantes jogadores da história. Que é português, nosso, para sempre."

Mudança de paradigma

"Eusébio desapareceu fisicamente, mas o seu legado irá acompanhar-nos para sempre, como sucede com as personagens que são imortais. Porque uma coisa pode discutir-se, mesmo quando se sabe perfeitamente que da discussão nunca nascerá a luz, e essa é se Cristiano Ronaldo já é ou alguma vez será o futebolista que foi Eusébio. Mas outra é indiscutível: a de que Eusébio é e será sempre o jogador mais marcante da história do futebol português. Suceda o que suceder daqui para a frente.
Quando, em 1960, Eusébio chegou a Lisboa, o Benfica tinha ganho dez campeonatos e o Sporting outros tantos. O futebol português dividia-se entre estes dois polos, com a intromissão episódica do FC Porto, que vencera a prova por cinco vezes. No dia em que Eusébio deixou o Benfica rumo ao eldorado norte-americano, em 1975, a relação de forças tinha-se modificado radicalmente, com 21 campeonatos para o Benfica e 14 para o Sporting: o FC Porto nunca foi campeão com o Pantera Negra no activo.
O que se passou com Eusébio foi uma mudança de paradigma como nunca mais se viu em Portugal, nem provavelmente se verá, porque a indústria que se instalou no futebol não se compadece com a permanência num país periférico como o nosso de um jogador com predicados como os que ele apresentava. Velocidade, potência, um remate portentoso de força e colocação, resistência ao choque e até humildade: tudo isso eram atributos que Eusébio tinha em doses muito superiores aos dos seus contemporâneos.
A juntar a isso, Eusébio tinha pelo Benfica o amor que um filho tem pelos pais. A história do livre direto que, pelo Beira-Mar, não quis bater às redes encarnadas, que ele mesmo me contou, numa tarde, num dos restaurantes do Estádio da Luz, já chegava para o provar. Mas o maior serviço que Eusébio prestou ao Benfica depois de deixar de jogar foi de magistério de influência:numa noite invernosa, apareceu com Manuel Vilarinho e virou umas eleições que as sondagens inclinavam para a recondução de Vale e Azevedo. Nessa noite o Benfica guinou e a finta de corpo foi Eusébio que a fez."

Para lá dos golos

"Golos de todos os feitios e para todos os gostos, arranque, tiro, drible em movimento, inteligência em jogo, bolas paradas. Eusébio era muito mais do que isso.
Melhor jogador português do século XX. Achei graça à definição ouvida na rádio pela manhã e apreciei o jeito entendido de fazer justiça sem ferir susceptibilidades. É inexorável haver uma geração para a qual Eusébio será o melhor de sempre a título definitivo; da mesma forma, quem não o viu jogar tenderá a substituí-lo nos afectos por Cristiano Ronaldo. A situação é normalíssima, compará-los não faz sentido. Eusébio foi um monstro do futebol, um jogador à parte, um integrante do reduzido lote dos imortais. Cristiano está no mesmo caminho, qualquer um deles seria sempre um craque qualquer que fosse a geração a que pertencesse. O saudado crescimento de um não apaga o outro da história. Eusébio estará sempre na galeria dos melhores da história do futebol, a par de Di Stéfano, que ele próprio considerava o melhor de todos, e de muitos outros cujos desempenhos os imortalizaram.
Vi jogar Eusébio. Anos mais tarde devorei cassetes de vídeo sobre o Mundial'66 e revi tudo quando as imagens foram passadas para CD. Os golos, o arranque, o tiro, o drible em movimento, a inteligência em jogo, a nobreza, a lealdade, a pureza, o prazer de jogar. Tinha tudo, mas prefiro contar uma história.
Já lá vão uns anos largos. Num dia atendi um telefonema do João Malheiro, amigo desde o tempo em que era correspondente de O JOGO em Vila do Conde. Disse-me que estava com uma pessoa que me queria pedir um favor. Para meu espanto, passou o telefone a Eusébio, que se apresentou com toda a simplicidade do mundo. O pedido não chegava bem a sê-lo: o King gostava que o jornal desse cobertura noticiosa a uma digressão do então Clube Portugal, uma selecção de velhas glórias do futebol português que se iria deslocar a um torneio internacional.
Ficamos à conversa um bom bocado, falámos do enormíssimo jogador que ele fora e das saudades que deixou. A dada altura disse-lhe ser mais um dos muitos admiradores dele, mas acrescentei que as coisas poderiam ter sido diferentes. Quis saber porquê. Nesse jogo memorável de 1966 ante a Coreia do Norte, com 0-3 aos 25', Eusébio fez quatro golos seguidos. Quando marcou o penálti que deu o 4-3, o meu pai sentiu-se mal. Um susto, uma comoção ligeira que não o impediu de ver José Augusto assinar o 5-3. Quando acabei a minha história, ouvi um suspiro do outro lado: "Eh pá!, mas correu tudo bem, não correu? Agora fiquei preocupado." A seguir quis saber tudo sobre o meu pai, se tinha sido mesmo só susto, o que era feito dele, o que fazia na vida, se continuava de boa saúde.
Este era Eusébio, o cidadão."

Morreu o rei

"Embora todos soubéssemos que o estado de saúde de Eusébio apresentava algumas debilidades, a notícia da sua morte, ontem de manhã,  deixou em estado de choque o país inteiro.
É que com o desaparecimento daquele que foi um dos maiores jogadores mundiais da sua geração, não só fica mais pobre o seu clube de sempre, o Benfica, mas todos nós ficamos amputados de um dos membros mais unanimemente amados da nossa comunidade lusíada.
Tudo o que aconteceu durante estes dois dias no mundo inteiro, por via de sucessivos testemunhos enaltecendo a figura e a carreira de Eusébio, resta como a demonstração maior de como foi idolatrado ao longo de várias gerações, até daquelas que não tiveram o privilégio de o ver jogar.
Vindo um dia do bairro pobre da Mafalala, na então Lourenço Marques, recomendado por mãe Elisa à guarda de Mário Coluna, rapidamente conquistou o mundo com o seu talento e, ao mesmo tempo, com uma enorme humildade que viria a marcar toda a sua vida.
Ao serviço do clube que amou e da selecção que serviu com orgulho, Eusébio ganhou tudo o que havia para ganhar.
Com o seu contributo, sempre decisivo, os melhores troféus estão agora a engalanar para sempre o novo museu do Benfica, que fica a dever-lhe igualmente uma enorme dedicação, tantas vezes levada ao limite, e até com risco para a sua integridade física.
Morreu o Rei: resta-nos chorar a sua perda mas, ao mesmo tempo, retendo na memória os momentos de felicidade que nos permitiu viver ao longo de muitos anos, e que todos, reconhecidamente, lhe agradecemos."