"Aos olhos dos cidadãos a justiça do futebol não é credível. É grave. Nem só o 'doping' põe em causa a verdade desportiva.
Entre todos os pilares essenciais à democracia, penso que o da justiça é o mais débil. A saúde não é exemplar, mas funciona; a educação não é a melhor (muito por culpa dos ratos burocráticos dos gabinetes do ministério) mas é ampla; a justiça, porém, é profundamente deprimente pela inaceitável demora dos processos e, acima de tudo, pela gritante desigualdade entre cidadãos.
As mais recentes e badaladas prescrições de processos a gente rica e mediática tem, aliás, dado da justiça portuguesa uma imagem disfuncional da própria democracia, sem que sobre o assunto se sinta um verdadeiro incómodo político do Governo e da própria Assembleia da República.
Percebo que a justiça portuguesa assente na ideia de que mais vale inocentar um criminoso do que culpar um inocente e que para isso procure oferecer amplos e generosos mecanismos de defesa que permitem infindáveis recursos que demoram infindáveis decisões dos tribunais. Não acredito, porém, que a Europa desenvolvida passe a vida a condenar inocentes e, no entanto, os prazos de decisão dos processos são descomunalmente menores.
Há, pois, uma inércia processual e uma evidente resistência à mudança na estrutura judicial portuguesa. A questão está mesmo em saber se o problema está na incompetência da capacidade de mudar, ou se está na falta de vontade de mudar.
Aparentemente, não parece aqui haver matéria desportiva que justifique a análise obviamente sucinta que usámos. Mas haverá, porque não me parece ser entendível, apenas à luz do desporto, a aberração de algumas decisões disciplinares feitas por órgãos com competência para julgar os processos de natureza desportiva e que evidenciam o mais evidente desrespeito pela inteligência e pelo bom senso dos cidadãos.
Quando o conselho superior de magistratura se pronunciou no sentido de impedir que juízes figurassem nesses órgãos disciplinares percebeu-se que o maior dos receios era o de que juízes com responsabilidades sociais e profissionais inerentes à sua função acabassem, na hora das decisões, por se deixaram influenciar pelas suas paixões clubísticas e decidissem, não em conformidade com os regulamentos e com a lei, mas de acordo com interesses particulares.
Ora, o que é legítimo perguntar é se esses juízes se deixam apenas influenciar pelos seus clubes e por quem os dirige. Ou seja, parece-me legítimo admitir, no mínimo, o receio de que esses juízes simplesmente influenciáveis, quer seja por clubes e pelos seus dirigentes, quer seja por outros poderes com influência na sociedade.
A verdade é que o futebol ficou a perder muito com essa decisão, até porque desde logo passou a ideia de que o próprio Conselho Superior da Magistratura admite que há dois pesos e duas medidas éticas e técnicas para a justiça do futebol e para a outra justiça, sendo que a do futebol poderá ser mais permissiva, mais tolerante à subjectividade ou à tentação de acomodar as decisões com os interesses próprios.
Acredita-se que a criação do novo tribunal desportivo (tanto tempo que tudo demora em Portugal, meu Deus!...) ajude a resolver esta situação de credibilidade zero em que vive a justiça do futebol português, mas até que tudo esteja devidamente regulamentado e, enfim, activado, a verdade é que continuaremos a ter casos que mancham a credibilidade do futebol e colocam sobre inevitável suspeição. É preciso entender, uma vez por todas, que não é só o doping que põe em causa a verdade desportiva.
(...)"
Vítor Serpa, in A Bola