"Já se cumprem 67 anos sobre o desastre de Superga. Regressado de Lisboa, o avião que transportava o «Grande Torino» despenhou-se quando se aproximava de Turim. Nesse dia, o clube deu um passo definitivo para a eternidade das lendas. Agora, o Torino regressa a Lisboa.
Quando fez o avião correr pela pista da Portela e elevar-se molemente como uma gaivota preguiçosa nos céus de Lisboa, o comandante Pier Luigi Meroni estava longe de pensar que esse poderia vir a tornar-se num voo complicado. Aliás, Meroni era um piloto com experiência e conhecida amplamente o trimotor G.212 I-ELCE que comandava, bem como o percurso que previa uma escala técnica em Barcelona.
E estava um dia bonito, ainda por cima. Tanto assim que a primeira etapa da viagem decorreu de forma agradável e absolutamente sem incidentes. É claro que os tempos eram outros. Em 1949 não se ia de Lisboa a Turim nas poucas mais de duas horas de hoje. Às 9h45, o controlador aéreo do aeroporto de Lisboa registou, muito provavelmente, a partida do aparelho da companhia Avio-Lire-Italiana com satisfação de mais um dever cumprido. A chegada a Turim estava programada para cerca das 17h15. O voo não cumpriria o seu destino.
Convenhamos que Pier Luigi Merino já não saiu de Barcelona com a mesma tranquilidade com que tinha iniciado a sua manhã portuguesa. Sobre o norte de Itália chovia há três dias. Na véspera, uma intempérie terrível abatera-se sobre a Ligúria e o Piemonte cortando estradas, danificando edifícios, deixando gente sem abrigo. Razões mais do que suficientes para um redobrar lógico de todas as atenções.
Superga dista meia dúzia de quilómetros de Turim. É um local aprazível, de passeios domingueiros em redor de uma colina onde se ergue a basílica e o cemitério onde repousam os velhos reis italianos de casa de Sabóia. Mas talvez sejam precisamente os sossegos as atracções milenares das tragédias.
Em Maio os dias já são longos. Todavia, nessa tarde escurecera cedo por causa das nuvens negras que se acautelaram nos horizontes e foram descendo do céu como um prenúncio de morte. Por volta das cinco horas da tarde um nevoeiro espesso atravessou-se no caminho da aeronave que já deixara Lisboa há tanto tempo. Pier Luigi Merino e os seus coadjuvantes, o co-piloto Cesare Banciardi, o telegrafista Antonio Tangrazi e o mecânico Caleste D'Inca, iam fazendo os possíveis e impossíveis para se orientarem dentro de um «cockpit» no qual o altímetro deixara pura e simplesmente de funcionar. Diria mais tarde o relatório do inquérito levado a cabo pelo governo italiano que as fortíssimas rajadas de vento terão provocado a deslocação do aparelho para uma rota diferente da habitual. Merino continuou a descida de aproximação ao aeroporto, tudo indica que convencido de já ter ultrapassado os montes de Superga e a colina da basílica que se ergue até praticamente setencentos metros de altura. Seria um erro terrível e irremediável. Quando os recortes da igreja surgiram, aterradores, na frente de uma tripulação ansiosa, era já demasiado tarde. A máquina choca contra a cúpula do templo e despenha-se em chamas pelo derredor.
Tudo terá sido, porventura, demasiado rápido para o drama colectivo dos pânicos, das preces e das certezas inequívocas do fim. Exactamente às 17h20 a notícia caiu, taxativa e crua, nas redacções dos jornais italianos: «O avião-especial - um trimotor da companhia Avio-Lire-Italiane - no qual viajava de regresso a equipa do Torino caiu perto de Superga. Morreram todas as pessoas que seguiam a bordo da aeronave - 31, incluindo a tripulação». Os adjectivos tinham ainda de esperar mais um pouco. Aliás, os próprios jornais sentiram na intimidade a extensão dessa noite de desgraça. Renato Casalbore, director do «Tuttosport», Renato Tosatto e Luigi Cavallero, redactores da «Gazzeta del Popolo» e do «La Stampa», eram três dos cadáveres carbonizados que se espalhavam por entre uma amálgama de ferros entortecidos. Como se o infortúnio fizesse questão de abraçar a todos.
A equipa que fez nascer a lenda
Chamavam-lhe em Itália, «Il Grande Torino». E os jornais e jornalistas, sempre dispostos a promover heróis, referiam-se-lhe como «uma das mais poderosas e maravilhosas equipas que o futebol italiano jamais soube exprimir». Falava-se, ao tempo, das extraordinárias proezas de uma «squadra» capaz de marcar 125 golos no campeonato de 1947-48 e de golear o Alessandria por 10-0 na mesma época. E ninguém punha em causa que tal obra de arquitectura futebolística tinha sido obra de um industrial turinense, Ferrucio Novo, conhecido por «commendatore Novo», chegado à presidência do Torino aos 42 anos, em 1939, com vontade de transformar o clube num exemplo de organização à... inglesa.
Ferrucio Novo rodeou-se de sábios. Sobretudo dois: Roberto Copernico e Ernst Egri-Erbstein, um trânsfuga húngaro que chegou a ser por mais de uma vez treinador da equipa. Foram eles os responsáveis pelo reforço de um conjunto que sonhava com o título italiano. E a obra foi ganhando corpo com a aquisição, a pouco e pouco, daquela que seria a sua constelação de estrelas: o médio de ataque Ossola, do Varese; o ponta-de-lança Gabetto, da Juventus; os alas Menti, da Fiorentina, e Ferraris, do Inter, Mas o passo decisivo deu-se no momento em que Novo garantiu o concurso da dupla de contro-campistas do Veneza, Ezio Loik e Valentino Mazzola. E Mazzola rapidamente se transformou na grande figura do Torino, «capitão» e símbolo de uma «squadra» que venceria nada menos de cinco «scudetos» consecutivos, embora interrompidos pelas épocas de 43/44 e 44/45 durante as quais as sequelas da II Grande Guerra impediram a disputa do campeonato italiano.
O Torino era um clube de ideias futuristas e de uma dinâmica imparável. Pretendia formar dois conjuntos de igual qualidade, um para disputar as competições internas, outro com nomes mais sonantes para viajar pelo Mundo como «Globetrotters», recebendo os «cachets» elevados que esses nomes garantiam. Seria o «Torino Esportazione». E a curiosidade do mundo para ver esta «squadra da sognare» ia-se fermentando na maneira como ela se passeava nas Taça Latina e sobretudo no «calcio» onde conseguira manter-se invencível em casa durante nada menos de 88 jogos consecutivos.
Quando a mecânica da morte, da forma brutal como geralmente funciona, pôs um fim a esta sede insaciável de vitórias do Grande Torino, a equipa então treinada pelo inglês Leslei Lievesley seguia na frente da classificação e, no domingo anterior à sua viagem a Lisboa, empatara 0-0 no campo do Inter, obtendo dois novos recordes para a época: 19 jogos seguidos sem perder no campeonato e dando 10 jogadores titulares à selecção italiana. Seria esse empate, que lhe garantia praticamente o título de 48/49, que faria o presidente Novo dar a autorização definitiva para a deslocação a Portugal onde o Torino defrontou o Benfica num jogo de homenagem a Francisco Ferreira, «capitão» dos 'encarnados' e da selecção portuguesa.
O Benfica venceria por 4-3 num confronto espectacular. Para o Torino seria a última derrota antes daqueloutro, dolorosa e irrevogável. A Federação Italiana, com o acordo expresso de todos os outros clubes, declarou o Torino campeão a título póstumo. A «squadra granata» respeitou os seus derradeiros compromissos apresentando a equipa júnior.
Os adversários, cavalheirascamente, jogaram contra eles com jogadores da mesma idade. Seriam precisos vinte e sete anos para que o Torino voltasse a ser campeão de Itália. A calamidade de Superga pusera fim ao que o «L'Equipe» chamava «orgulho do desporto latino». A morte destruíra a técnica e a beleza plástica de um grupo de futebolista extraordinária mas dera-lhes, em troca, um lugar único na lenda e no catálogo dos heróis. Porque, como toda a gente sabe, só a morte nos dá a eternidade.
No Jamor, antes de Superga
A última derrota do Torino
«A vitória do Benfica sobre o Torino foi nítida, regularíssima e teve brilho», escrevia-se em «A Bola». E logo abaixo: «Mas a categoria dos italianos em nada ficou apoucada». A equipa redactorial era de luxo: José Olímpio, Cândido de Oliveira e Alberto Valente. E, como é lógico, os elogios a uma equipa e a outra multiplicaram-se. Aos italianos porque eram... o Grande Torino; aos portugueses porque foram capazes de vencer o... Grande Torino. Por curiosidade, a ficha do jogo aqui fica:
Estádio Nacional
Árbitro: Harry Pearce (inglês)
Benfica: Contreiras (depois, Pinto Machado); Jacinto e Fernandes; Moreira, Félix e Francisco Ferreira «cap»; Corona, Arsénio, Espírito Santo (depois, Júlio e logo Vítor Baptista por lesão deste), Melão e Rogério.
Torino: Bacigalupo; Ballarin e Martelli; Gregor, Rigamonti e Castigliano; Menti, Loik, Gabetto (depois, Bongiorni), Mazzola «cap.» e Ossola
Na primeira parte: 3-2
0-1 por Ossola; 1-1 por Melão; 2-1 por Arsénio; 2-2 por Menti; 3-2 por Melão; 4-2 por Rogério e 4-3 por Menti, de «penalty».
Resultado final:4-3.
Entre os 31 mortos
18 jogadores para a história
A catástrofe de Superga matou dezoito jogadores. A saber: os guarda-redes Bacigalupo e Ballarin II; os defesas Ballarin I, Maroso, Rigamonti e Operto; os centro campistas Grezar, Castigliano, Loik, Mazzola, Martelli e Fadini; os avançados Menti II, Gabetto, Ossola, Grava, Schubert e Bongiorni. Com eles desapareceram igualmente os técnicos Ernest Egri-Esbstein e Leslie Liesvseley; os dirigentes Agnisetta e Civalleri; o massagista Cortina; os responsáveis pelos equipamentos, um agente de viagens, três jornalistas e, logicamente, a tripulação do aeroplano. O funeral dos homens do Grande Torino foi uma terrível imagem de dor de todo um país."
Afonso de Melo, in O Benfica