"O mercado é palco de todos os sonhos, porém a abordagem deve ser sobretudo racional. Não só pelo lado financeiro, mas também pelo respeito pela política desportiva delineada
A pré-época traz sempre elevadas expetativas. Para jogadores, treinadores, dirigentes e, claro, para os adeptos. Se tem decaído o interesse nas grandes competições, sobretudo naquelas que, durante a infância, nos deixavam a sonhar acordados com expetativa de descobrir novos mundos e novas gentes, como eram os Mundiais e Europeus, já que não havia o volume de informação e consumo de hoje, o mercado de transferências e a construção de novas equipas ainda têm o seu quê de emocionante, graças ao desconhecido que tantas vezes acarretam.
Não exagero quando digo que o último dia de transferências na Europa tem quase tanto impacto como a final de um torneio continental, tamanha a expetativa que gera. Semelhante talvez só as longas madrugadas passadas a queimar fusíveis para montar planteis de luxo em simuladores que me davam todo o poder que queria ter enquanto emborcava doses irrefletidas de Guronsan e virava as páginas dos livros que tinha de ler para a frequência da manhã seguinte. Desligava o PC dia dentro, após os amigáveis, depois de testar um por um os reforços, ficar contente com todas as decisões e deixar na lista alvos para o inverno seguinte. Por vezes, o campeonato quase nem interessava, só a equipa, que enumerávamos com orgulho aos amigos com um único objetivo: criar inveja. Os saves eram muitos mais do que os títulos, mas quando acertávamos podíamos puxar dos galões com o encolher de ombros de desdém e o habitual puf, eu levei o Notts County ao título europeu.
Para a vida real, como costumávamos dizer por oposição à das novelas, bem que podiam transportar os limites que nos impunham para evitar a bancarrota (e mesmo assim…) e talvez se tivesse evitado que em dois, três meses de loucura tivessem implodido ou descido ao fundo dos infernos vários clubes históricos. Se éramos olheiros, diretores desportivos e treinadores virtuais, felizmente havia um líder que nem precisava fazer-nos cair na razão. A folha de Excel transformada em código binário cortava-nos as asas: a direção bloqueou esta transferência por falta de fundos. Todavia, nessa vida real não há gente tão avisada e é esta que, por vezes, coloca na gaveta o elefante que os olha a meio da sala, o fator racional, antes de fechá-lo a sete chaves.
Apesar da loucura que tantas vezes se vive é das alturas do ano mais interessantes. É com os anúncios de novos técnicos e dos reforços sonantes que se começa a vislumbrar o caminho, se este existir. É que há vários perfis de dirigentes. Os que esboçam uma política desportiva de acordo com as necessidades e capacidade financeira, e seguem-na sem vacilar; outros que acreditam que todos os bons jogadores são capazes de jogar juntos e pouco se preocupam com o equilíbrio; e ainda os mercantilistas, que têm uma visão mais abrangente e, ao mesmo tempo, desfocada, preocupando-se mais com importações e exportações do que com o sentido desportivo.
Quantas vezes não se vê uma ideia colocada de parte por oportunidades de mercado? Ou uma aposta de relevo não encontrar continuidade no relvado, criando um impasse no retorno do investimento? Quem manda deverá abstrair-se o mais possível do seu lado emocional e rodear-se de uma estrutura, mais profissional do que criada pela afinidade, que também sirva de contraditório e, por isso mesmo, ajude a filtrar decisões.
Todd Boehly chegou ao Chelsea e tem gastado fortunas. Tanto que houve uma altura em que nem balneário havia para tanta gente no plantel. Já vai no quarto treinador, interinos à parte, em duas épocas desastrosas: 12.º classificado na primeira, 6.º na segunda, zero títulos. Contratar por impulso dá nisto. Foram maus jogadores? Nem por isso. E, neste mercado, que ainda vai no início e em que vendeu na ordem dos 100 milhões, já leva outros 70 investidos.
Claro que os Blues são realidade à parte. Mas se olharmos para os €252M do Benfica na gerência de Rui Costa – contra 390M em vendas, é verdade, e ainda excluindo a aparente eminente saída de João Neves – e pensarmos que ainda falta um lateral-direito e provavelmente mais um médio competente (estaria a adaptação de Rollheiser já relacionada?), temos de concluir que houve decisões erradas, precipitadas ou não estruturadas. Talvez nenhum outro grande pudesse resistir a isto, no entanto, se continuar assim, os encarnados também não conseguirão fazê-lo muito mais tempo, sob o risco de depauperarem os ativos da equipa ou andarem em permanente reconstrução, que tem óbvias consequências.
Há aqui uma realidade organizativa e profissional que falta consolidar. Se os primeiros sinais do mercado pareceram positivos – e que nos levou a acreditar numa maior proximidade entre a política desportiva e o modelo do treinador –, Di María, que já obrigará a que lhe expliquem uma necessária mudança de contexto, e Renato Sanches, em que o lado físico faz duvidar do sucesso da eventual transferência, parecem apostas meramente emocionais.
A realidade do Sporting tem sido muito mais racional e estruturada, e tem compensado a aposta cirúrgica. Percebemos sempre para onde quer ir. Ioannidis, se chegar, irá acrescentar poder ofensivo e versatilidade e Debast tornará a construção mais forte e o setor mais sólido, com perspetivas de valorização para negócio futuro. Tudo parece lógico, bem ponderado e maturado.
É precisamente a falta de mercado que não nos deixa antever para onde quer caminhar Vítor Bruno. Com um grupo sem Pepe e Taremi e sem novidades que não venham da formação ou do canto do castigo, o técnico pouco poderá fazer mais do que dar retoques na ideia de Sérgio Conceição. Eventualmente, torná-la mais vertical na construção e também mais limpa, com menos segundas bolas e passes longos sem nexo. A grande novidade vem, entretanto, de um miúdo cheio de moral e boas decisões, carregadinho de talento, que todos queremos que seja feliz, chamado Rodrigo Mora. No entanto, a responsabilidade não poderá nunca estar sobre os seus ombros."