"Hoje proponho uma viagem até ao dia da inauguração do Estádio Alvalade XXI.
Não sei se, cá de fora, têm noção, mas garanto-vos que o jogo de estreia de um estádio é um momento memorável na carreira de um futebolista. Aliás, é-o também para todos os que têm a felicidade rara de participar num evento assim, tão especial e único.
6 de Agosto de 2003
Como já aqui vos disse, há jogos e jogos.
Todos são iguais na importância, no respeito, dedicação e profissionalismo que exigem, mas há uns mais especiais do que outros. Naturalmente.
Quem tem o privilégio de estar envolvido num espectáculo desta dimensão não tem sensações de calhau. É tudo gente que sente. Gente incapaz de ficar imune à envolvência distinta que momentos como este representam.
Tive o privilégio de passar por todas essas sensações, porque fui o árbitro desse inesquecível "Sporting CP-Manchester United".
Quando recebi a nomeação estava no Algarve, a aproveitar os últimos dias das férias desportivas.
Lembro-me que, logo ali, comecei todo o processo de preparação para o amigável mais oficial que alguma vez arbitrara.
Regressei a Lisboa na véspera, dia 5. Descansei e, no dia seguinte, almocei com a minha equipa. Vestimo-nos a rigor e tínhamos um sorriso estampado na cara. Estávamos felizes. Muito felizes.
Entrámos no estádio duas horas antes da hora do início da partida (21H30). Acompanhámos, com ansiedade crescente, todo aquele frenesim, aquela agitação de luz e cor em torno daquele momento. As bancadas estavam cheias de gente, as coreografias repetiam-se. Sentíamos aquele nervoso miudinho, típico de quem está prestes a fazer algo que nunca fez antes. Os craques subiram para o aquecimento e começaram a desfilar, com a facilidade dos predestinados, todo o seu talento. Coisa bonita de se ver.
A inauguração teve a presença do então Presidente da República, Dr. Jorge Sampaio. Do balneário, acompanhávamos tudo, ainda que à distância e com o profissionalismo possível.
Os convidados maestros de luxo: Barthez e Gary Neville, Roy Keane e Paul Scholes, Ryan Giggs, Rio Ferdinand e tantos, tantos outros.
O Sporting, com vários nomes consagrados também, entrou em jogo com atitude vencedora, a dominar e a ditar as regras, como que dizendo: "Em casa, mandamos nós!".
Venceu e venceu bem, para loucura de mais de 50 mil fervorosos adeptos.
Luís Filipe ficou na história como o primeiro a marcar um golo na nova casa. João Vieira Pinto bisou e Hugo, central, marcou na própria baliza, fazendo assim o golo de honra do "dream team" comandado por Sir Alex Ferguson.
Mas, naquela noite, o resultado foi o menos importante. Melhor, muito melhor, foi a exibição portentosa de um jovem madeirense, de apenas dezoito anos de idade.
O então (quase) desconhecido Cristiano Ronaldo não jogou. Partiu. Partiu aquilo tudo, vezes sem conta. Meus amigos, acreditem no que vos diz quem esteve lá dentro: que qualidade!!!
O puto ziguezagueava, fugia para a esquerda, para a direita, acelerava, travava, cruzava, rematava, cabeceava, enfim... cansava só de ver. Que pulmão, que atitude, que talento dos pés à cabeça.
Enquanto árbitro, lembro-me de só ter visto algo parecido quando arbitrava jogos de um pequeno Deus chamado Deco (que era, também ele, qualquer coisa de indescritível!).
Naquele dia, Ronaldo apresentou-se ao mundo e logo teve o mundo a seus pés. O mundo e, diz-se, o rim direito de Rio Ferdinand.
Mesmo num jogo de faz de conta, ninguém ficou indiferente à qualidade e potência que saía dali, daquele miúdo ainda franzino.
Às tantas, já não era apenas um adversário a marcá-lo. Eram dois ou três.
Ferguson, que já o tinha debaixo de olho, nunca pensou que teria pela frente um diamante tão valioso. Não me parece que os seus jogadores tenham tido depois muita dificuldade em convencê-lo.
Naquele dia, o Sporting escreveu uma página muito bonita da sua história. Cristiano Ronaldo escreveu outra, na história do futebol mundial. E eu, arraia miúda, tive a sorte de lá estar.
Há dias felizes, não há?"
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