"Em poucas semanas, as imagens mediáticas do futebolista João Félix foram-se confundindo com um modelo de juventude triunfante. Será que lhe podemos exigir que se comporte como protagonista de uma epopeia nacional?
Mais do que qualquer personalidade do mundo das artes ou das letras, mais até do que as figuras da cena política que todos os dias circulam pela paisagem mediática, o jogador de futebol João Félix tem sido imagem dominante no nosso mundo audiovisual. Porquê? Porque é protagonista de uma transferência que envolve um valor na ordem dos 120 milhões de euros.
O espectáculo futebolístico não se esgota, felizmente, nas atribulações financeiras que o vão contaminando. E também não o podemos confundir com as formas bélicas de clubismo que mancham a beleza do jogo. Acontece que a proliferação de imagens de João Félix é um fenómeno que nos mobiliza. A sua condição nascente de milionário, ainda antes de completar 20 anos, está mesmo a conferir-lhe a dimensão de símbolo nacional, a todos os níveis exaltada. Numa homenagem realizada em Viseu, terra natal do futebolista, o presidente do município identificou-o até como uma "mais-valia" para a promoção do concelho.
Esta perversão da expressão "mais-valia", banalizada na sociedade portuguesa, é reveladora do poder do futebol enquanto máquina de reconversão de todas as linguagens. Na origem, a expressão remete para um contexto económico muito diferente do nosso e, mais do que isso, para um velho conceito marxista que apontava não para uma soma (mais valor), mas para uma subtracção (valor mascarado): "mais-valia" seria o valor apropriado pelos detentores dos meios de produção, pagando aos seus assalariados menos do que o valor gerado pelo respectivo trabalho. Na nova matriz futebolística, a "mais-valia" é tão-só um sinal de grandeza, um suplemento redentor de alguém, ou alguma coisa, que supera as medidas da norma.
Em face do evento social que João Félix passou a ser, importa pensar para lá dos cifrões do seu trabalho. Sem esquecer que os citados milhões não justificam qualquer observação moralista. Ninguém discute a legitimidade de João Félix, a sua família ou o seu agente decidirem a sua vida como entenderem. O talento do jogador não depende dos actos financeiros em que possa estar envolvido, do mesmo modo que os ordenados que venha a receber não retiram (como também não acrescentam) o que quer que seja ao reconhecimento desse talento.
O que confere a João Félix uma dimensão eminentemente social - e, mais do que isso, cultural - é o facto de, em poucas semanas, a sua trajectória como futebolista ter adquirido a "mais-valia" de um modelo de juventude triunfante. Jogar futebol, ganhar milhões e ter 19 anos, eis o caldeirão metafórico de um destino paradisíaco, eminentemente português.
Daí a contradição que todos evitamos enfrentar. Vivemos numa sociedade em que os temas inerentes à juventude - da entrada no mercado de trabalho aos muitos modos de envolvimento com as novas tecnologias - são frequentemente escalpelizados. Ao mesmo tempo, a saturação de "debates" em que tudo isso é vivido não exclui (antes parece favorecer) a eufórica fusão das representações simbólicas da juventude com as imagens de sucesso de uma escassa minoria de profissionais de futebol. Como se a sofisticação artística de um Cristiano Ronaldo fosse não a expressão de uma excepção radical, mas um destino compulsivo da identidade lusitana.
Há exactamente 60 anos, em Os 400 Golpes, um dos filmes fundadores da Nova Vaga francesa, o realizador François Truffaut criou uma personagem que continua a resistir (e, mais do que isso, seduzir) como símbolo do carácter irredutível da juventude: chama-se Antoine Doinel, foi o primeiro papel de Jean-Pierre Léaud, e distingue-se por um misto de solidão e revolta que Truffaut encenava com infinita ternura.
Quando o vemos a ler Balzac, aquilo que a imagem criada por Truffaut nos diz não tem nada de programático: a leitura dos clássicos não implica qualquer menosprezo por outras maravilhas, incluindo as do espectáculo futebolístico. Acontece que a vitalidade de uma sociedade revela-se não apenas através das suas imagens da juventude, mas também do imaginário em que inscreve os seus jovens. Em boa verdade, João Félix é apenas o protagonista incauto de uma epopeia cujo programa narrativo se esgota na espuma mediática. Creio mesmo que lhe estamos a exigir mais do que ele tem para dar."
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