"Confesso o meu desinteresse por futebol feminino, extensível a muitas outras modalidades, independentemente do género dos praticantes. Sei que os nossos canais de televisão, provavelmente guiados pelo farol das audiências, gostam muito de transmitir jogos de futsal e mundialitos de futebol de praia, mas a mim esses desportos enchem-me de um inultrapassável tédio. Não contesto a excelência dos desportistas, nem critico os aficionados dessas modalidades exóticas, como jamais me passaria pela cabeça atacar os praticantes de petanca que, neste fim de semana, disputaram o campeonato na Gafanha da Nazaré.
O golfe, por exemplo, é outro desporto que me desperta tanto interesse como a sueca ou o chinquilho. Por vezes tropeço numa transmissão de golfe na televisão e pergunto-me como é que um espectáculo tão soporífero como a Baby Tv atinge audiências gigantescas em certos países. Sei que os zelotas do golfe, bem como das outras modalidades, consideram isto uma blasfémia e um sinal de irremediável ignorância porque cada um julga o desporto da sua preferência de acordo com as razões do coração e a capacidade para nos sentirmos ofendidos por quem não as entende tem alcançado máximos históricos.
Dito isto, gostaria que algum dos canais portugueses tivesse tido a visão de comprar os direitos de transmissão do campeonato do mundo de futebol feminino. Em primeiro lugar, não acho que as minhas preferências pessoais possam servir de critério geral. A televisão está cheia de programas que não me interessam ou que, quando por acaso ou masoquismo os vejo, torturam a minha sensibilidade, e não vejo que essa seja uma razão válida para sugerir a sua proibição. Em segundo lugar, o campeonato do mundo que decorre em França é o primeiro, tanto quanto me parece, a suscitar um genuíno interesse global. Basta ler a imprensa internacional generalista e ver o espaço dedicado à competição.
Haverá várias razões extra-desportivas a contribuir para isso, mas que não invalidam o essencial: sem Jogos Olímpicos, sem Mundial nem Europeu masculinos, o campeonato do mundo de futebol feminino tornou-se num dos maiores eventos desportivos do ano. Sei que a nossa selecção não está presente, que o futebol feminino ainda não é uma força avassaladora em Portugal, mas canais que transmitem semanalmente corridas de Nascar, “combates” de Wrestling e jogos de Futsal espanhol que opõem o El Pozo ao Unidos de la Desgracia certamente não perderiam muito em mostrar vinte e duas mulheres aos pontapés numa bola.
Teriam pelo menos um espectador: eu. Não garanto que visse todos os jogos, como também não vejo todos os jogos de um Mundial ou de um Europeu, mas há três razões principais que me levariam a ligar o televisor. A primeira é a curiosidade. Ver com os meus próprios olhos o nível de uma competição de elite. A segunda é o interesse por boas histórias e, neste momento, (os adeptos das telenovelas do mercado de transferências que me perdoem) não há melhor história no desporto do que o desempenho de Megan Rapinoe, capitã da selecção norte-americana, dentro e fora dos relvados. É certo que as suas declarações polémicas, como ter dito que, em caso de vitória, não iria à “fucking White House”, a catapultaram para o centro do palco mediático, mas convém não esquecer que foi Megan quem marcou os quatro golos da sua equipa nos oitavos e nos quartos-de-final.
Quando os jornais e televisões dedicam horas infindáveis à exegese de declarações banais e inofensivas de jogadores e até há um mercado específico onde competem as mulheres destes, geralmente apresentadas em bikini à beira de uma piscina, não será muito pedir à imprensa que dedique alguma da sua atenção a mulheres que se destacam por méritos próprios e que parecem ter coisas importantes a dizer sobre igualdade de direitos, discriminação, homofobia e presidentes, concordemos ou não com tudo o que dizem. Bem sei que, para a generalidade da nossa comunicação social, o rabo da mulher de Eder pode ser mais apetecível (mediaticamente falando) do que o cabelo cor de alfazema de Megan, mas convinha, por uma vez, dar mais importância ao que é mais importante.
Como se pode ler num artigo publicado esta semana no New York Times, Megan Rapinoe “talvez se tenha tornado a atleta representativa dos nossos tempos - envergando a camisola de uma nação que está dividida, jogando por uma equipa que não está, destemida e directa a exigir excelência de si mesma e um tratamento justo e equitativo por parte dos outros.” Ora, isto é muito mais do que faz a maioria das estrelas masculinas da modalidade, caladinhos que nem ratos para não afugentar patrocinadores, especialistas em gestão de imagem e de danos a essa imagem, grandes divulgadores de iates luxuosos, carros curvilíneos e mulheres de alta cilindrada.
Jogadoras de futebol como Megan ou a brasileira Marta gozam de uma liberdade, fruto da desigualdade do estatuto, que hoje é negada aos seus congéneres masculinos e que eles aceitam com um sorriso milionário nos lábios. Pode-se argumentar que a opinião de Cristiano Ronaldo, ou a de qualquer outro grande jogador, sobre temas complexos da actualidade não interessa para nada, mas não há como negar que o seu silêncio é revelador. Diz muito sobre o que se espera deles, o que eles esperam de si mesmos e a bolha em que vivem. O barulho de Megan torna ensurdecedor o silêncio das grandes marcas em que se tornaram os rapazes mais famosos do planeta.
A terceira razão pela qual eu ligaria o televisor para assistir a um jogo do campeonato do mundo é ainda mais pessoal. Na semana passada, vi com a minha filha de seis anos, num canal pago (a RTP, que envia uma equipa inteira ao Festival da Eurovisão, não destacou um único jornalista para os jogos europeus), a magnífica exibição das ginastas portuguesas em Minsk. Ela ficou deslumbrada. Gostaria também de lhe mostrar um bocadinho dos jogos das melhores jogadoras de futebol do mundo. Não que eu espere que a minha filha algum dia venha a conquistar medalhas em competições internacionais ou que venha a ser uma das melhores jogadoras do mundo, mas gostava que ela tivesse oportunidade de se deslumbrar, de admirar aquelas desportistas ou até de se aborrecer, como o pai se aborrece com futebol de praia. Gostava que ela visse para saber que aquelas mulheres existem, para saber que Megan Rapinoe existe, tem voz e não tem medo."
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