"Em Portugal há dois vícios de análise, um é mais que vício, é doença mesmo, a dos árbitros. Deixemo-la, que já não falta quem a transforme no elemento nuclear em todos os jogos, mesmo os que pretendem protegê-la e melhorá-la. O outro é o de excesso de análise individual. Andámos entre os casos do jogo e o melhor em campo. Ou então o pior em campo, que nisto da análise instantânea vale quase tanto encontrar um herói como um réu, no exercício mais fácil de compreender pelo adepto comum, na hora da hipersensibilidade emocional. Se a minha equipa ganha é porque o jogador A é magnífico, se perde é porque o B é um desastre. Acontece que isto de garimpar em busca da unidade que se destaca de 28 – repito, um entre 28, que são por regra os intervenientes, concretizadas as substituições - é um óbvio exercício redutor, e mesmo, na maioria das vezes, tão inútil quanto enganoso. Inútil porque identificar a unidade que se destaca um pouco mais pode dizer-nos algo da felicidade pontual de um indivíduo, de um dia que lhe correu melhor, mas pouco indicia sobre o que pode correr bem ou mal quanto a comportamentos colectivos nos jogos seguintes, e disso dependerá o sucesso. Além de que o desempenho individual até chega a variar na razão inversa da qualidade de jogo, no exemplo clássico de um guarda-redes (ou algum defesa) que só é o melhor no individual quando o adversário é superior no colectivo. E é sobretudo enganoso porque atentar à árvore impede a percepção da floresta. Escolher o melhor de uma equipa que deve funcionar como um todo, e num jogo que é inteiro, cria a ilusão de que se determinada peça funcionar é toda a máquina que vai atrás. Tirando um ou dois casos - e é preciso atingir uma escala de Messi, pela influência colectiva - raramente é verdade. Bruno Fernandes era o jogador mais decisivo dos últimos anos no futebol português? Quase ninguém duvida. E ninguém terá sido mais vezes eleito o melhor em campo. Mas não foi campeão nem perto disso esteve, que não há primaveras de andorinha solitária.
O Porto ganhou o clássico recente porque surpreendeu com Corona a lateral? Foi muito mais do que isso, mesmo se o rendimento individual do mexicano foi altíssimo. Mas o que o permitiu esse rendimento foi um contexto táctico, particularmente uma dinâmica inicial pensada para o ligar a Otávio – nos movimentos que criavam dúvida tática no lateral contrário – e Marega – aproveitamento da profundidade - que o Benfica não soube ou não pôde contrariar. Foi uma abordagem estratégica competente que permitiu instabilizar o rival. Muitos estarão convencidos de que com outro perfil de jogador – que não Ferro e Grimaldo – o Benfica teria defendido de modo mais competente. Não creio. Quando muito atenuaria. Se uma equipa que faz coincidir esses dois no onze com Weigl, Taarabt, Pizzi, Rafa e Chiquinho e não é capaz de ter bola – e de ter mesmo, por largos minutos – estará sempre condenada. O Benfica quis ganhar duelos com jogadores de posse, quando o Porto é forte em ganhar a posse com jogadores de duelos. Claro que outro fosse o resultado e estaríamos a ouvir e a ler os que sempre incensam Danilo como elemento chave para garantir equilíbrios e dar a velha consistência, expressão só lembrada quando se joga mal. Acontece que a ausência de Danilo não retirou força defensiva e presença de Sérgio Oliveira até acrescentou qualidade com bola. Como já se dizia também que Mbemba não garantia a mesma segurança de Pepe mas foi com o consagrado veterano em campo que o Porto sofreu os golos no clássico e nenhum após a sua saída. Pelo prisma individual é muito mais fácil ter razão que encontrar uma solução. Do lado do Benfica, além de se localizar a origem do mal no espaço entre Ferro e Grimaldo, mas sobretudo muitos lamentaram as ausências de Gabriel e Cervi, como se não tivessem estado em campo em todos os jogos anteriores, com a equipa sempre a sofrer golos e perante adversários mais frágeis.
O mais importante para entender o que se passou é reconhecer que enquanto o Porto colocou o jogo no território que mais gosta, de duelos e acelerações, o Benfica não encontrou forma de roubar espaço e ficar com a bola. Aliás, em jogos como este – raros em Portugal - a equipa da Luz tem vivido quase uma dúvida existencial, sobre se tem a estratégia certa para os jogadores errados ou o inverso. Certo é que o Benfica sofre sempre mais quanto mais depressa perde a bola ou mais vezes o adversário o obriga a lutar por recuperá-la. Isto pode ser atenuado ou agravado por características de um ou outro atleta, mas a essência colectiva é o que é. E no futebol coloca-se sempre mais perto de ganhar a equipa que encontra o contexto táctico para deixar mais confortáveis os jogadores, ou seja, aquela em que o colectivo favorece mais o individual do que depende dele.
Nota colectiva: Bayern de Munique – Com Hans-Dieter Flick, bombeiro de valor comprovado na organização e no scouting, o Bayern voltou à condição de melhor equipa alemã. E o que a classificação demonstra, a qualidade de jogo justifica. E no meio apresenta uma dupla que diz quase tudo sobre os propósitos de jogo: Kimmich e Thiago Alcântara. No mundo da intensidade sobrevalorizada e no país que nunca despreza o físico, a opção por médios baixos, em que a intensidade mental supera a de pernas, é evidente o caminho seguido para melhorar o jogo. E com melhor jogo, melhores resultados. Na casa das máquinas manda o cérebro e com eles o Bayern pode voltar a ser aquela máquina.
Nota individual – Aleksander Isak – Alto como Ibrahimovic, moreno como Henrik Larsson, o novo prodígio sueco assume-se finalmente na empolgante Real Sociedad, a despeito da concorrência de William José. As últimas semanas foram eloquentes, mas é o jogo de Chamartín, em que a Real eliminou o Real Madrid, que pode ter marcado a emancipação definitiva do ponta de lança de 20 anos, depois da falta de espaço em Dortmund e do relançamento no Willem II. Entende cada vez melhor o jogo, move-se com argúcia nos limites da área e a figura aparentemente frágil esconde pólvora autêntica que lhe sai do pé direito. Isak já não pode parar, e isso é uma óptima notícia para o futebol."
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