"Em 1947, Rogério Lantres de Carvalho saiu do Benfica para tentar a sorte no Brasil, no Botafogo. Para sua infelicidade, chocou de frente com uma das figuras mais romanescas da história do futebol: um cavalheiro chamado Heleno de Freitas.
Se há figura curiosa na história do futebol, essa figura é Heleno de Freitas. Aliás, há uma extraordinária biografia sobre ele e que, pelo caminho, fala do Benfica. Mas já lá vou.
Heleno de Freitas foi, segundo Nelson Rodrigues, grande mestre da crónica, uma personagem romanesca. Já Marcos Eduardo Neves, o autor do livro Nunca Houve Um Homem como Heleno de Freitas, conta: 'Heleno é o tipo perfeito do grãfino. Ele dita modas. Veste-se com grande apuro. As roupas são impecáveis na confecção, e a sua colecção de gravatas causa inveja aos milionários. Dificilmente, no futebol actual, se pode apontar craques do gramado que também são craques no salão. Heleno reúne os dois predicados. E pode-se dizer que, dada a sua condição social, o artilheiro do Botafogo é craque apenas por esporte'.
Filho de boas famílias, Heleno de Freitas foi jogador do Botafogo entre 1940 e 1948. Indiscutível a sua qualidade técnica e a sua categoria, na altura talvez só comparável a Leónidas, o Diamante Negro do Flamengo, que se tornou famoso na Europa durante o Campeonato do Mundo de 1938, em França. Se fora de campo era um cavalheiro, sempre que se encontrava numa situação competitiva tornava-se insuportável. Discutia com os árbitros (as suas expulsões foram motivo para páginas inteiras de jornais), pegava-se à pancada com adversários e, às vezes, até com os próprios colegas, que tratava, como gosta de dizer o povo, abaixo de cão.
A embirração com Rogério
Só mais tarde se percebeu que a loucura de Heleno de Freitas estava umbilicalmente ligada à sua vida de galã. Conquistador inveterado, esbelto, rico, boa figura, rapidamente se viciou em éter (à época encharcavam-se lenços e inalavam-se para dar sensação de euforia) e chegou a abusar da cocaína. Boémio como era, contraiu a sífilis ainda jovem, e a doença levá-lo-ia a uma inconsciência dos seus próprios comportamentos e um estado permanente de megalomania.
Heleno de Freitas teria um fim triste, encarcerado num hospital psiquiátrico em Barbacena, abandonado pela fileira de amigos da classe alta que passaram os seus tempos de devassa acompanhando as suas presenças assíduas em boates e casinos, desfigurado e, finalmente, sem saber sequer a sua própria identidade.
Mas, antes disso, cruzou-se com uma grande figura benfiquista: Rogério Pipi.
Na verdade, Rogério sairia do Benfica para tentar uma aventura no estrangeiro, precisamente no Brasil e no Botafogo. Deixo-vos com a prosa de Marcos Eduardo Neves, o autor desse livro formidável: 'Em Julho, chegava ao Rio, contratado por seis meses, o ponteiro Rogério Lantres de Carvalho, craque da selecção de Portugal. O investimento alvinegro foi caro. Ídolo do Benfica e da Europa, Rogério fazia uma novidade na ponta: dava arranques para superar o marcador e, alacançado o fundo, centrava para a área. Primeiro português importado pelo futebol brasileiro, muitos da comunidade lusitana não saberiam para quem torcer num Botafogo-Vasco. Rogério, entretanto, não corresponderia às expectativas. Muito por causa de Heleno de Freitas. Era notório que o centroavante se invocava com pontas. Logo em seu primeiro contacto com o grupo, Rogério sofreu com a estrela do clube. Ao fazer um passe errado no treino, Heleno chegou junto do gringo e soltou: - Acho melhor você tirar as chuteiras e calçar tamancos... Segundo Juvenal, Rogério era um óptima pessoa, bastante calmo, se dava com todo o grupo. Menos com quem deveria: - Se o Rogério acertasse metade das bolas que tentou, o Heleno o colocaria nas nuvens; ia se consagrar no futebol brasileiro. Só que ele errava uma, duas, a pressão aumentava, o Heleno se descalibrava, humilhava, irritava, e o Rogério, só faltava chorar... Ávila pedia calma a Heleno. Em vão: - Que nada, Ávila! O cara tem de jogar! Esse sujeito veio para jogar futebol, chega aqui e não sabe jogar? Que volte a terra dele, então!'
Como vêem, o moço de boas famílias espinafrava como um carroceiro. No seu regresso a Portugal, Rogério refiria as dificuldades de relacionamento que teve com Heleno de Freitas, praticamente dono do clube por toda a sua influência desportiva e social.
Heleno acabaria por sair a mal do Botafogo e tentar a sua sorte no Boca Juniors, da Argentina, no Vasco da Gama e no Junior Barranquilla, na Colômbia. A sua personalidade destruí-o como jogador, a droga destruiu-o como atleta, a doença destruiu-o como homem.
Rogério não estava habituado a ser destratado no Benfica.
Rebelou-se. E fez bem.
De Heleno de Freitas dizia um médico seu amigo: 'É como um violino macabro. Os seus nervos estão todos esticados, que, a qualquer momento, podem rebentar'. Como rebentaram. O que fez dele uma personagem fascinante."
Afonso de Melo, in O Benfica
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