"Nasceu em Lisboa, cresceu em Marvila e antes do futebol jogou râguebi. Confirma?
Sim. Apesar das origens dos meus pais serem do norte, perto de Lamego, mais concretamente de Tarouca, eu nasci em Lisboa. O meu pai era carpinteiro e a minha mãe cozinheira num colégio infantil. Tenho duas irmãs mais novas, com diferença de quatro e oito anos. Cresci em Marvila.
Jogou râguebi quanto tempo?
Joguei dois anos no S. Miguel, que não sei se ainda existe. Comecei com 12,13 anos, gostei muito, mas era muito duro na altura. Hoje já há algumas regras, mas na altura não havia regras e aquilo era muito violento. E o futebol começou a ganhar peso.
De onde vem o bichinho do futebol?
Quando era miúdo o meu pai fez-me sócio do Benfica e levava-me ao estádio da Luz. Desde que me lembro que sou do Benfica e adoro futebol. Mas na verdade começo a jogar futebol muito tarde, já com 13, 14 anos. Não tinha nada aquela coisa de querer ser jogador.
O que queria ser?
Adorava animais e gostava de ser veterinário. Nunca pensei em ser futebolista. Também porque se calhar não tinha assim muitas qualidades. Mas um dia estava a jogar na rua e um senhor, um director do clube de Chelas, viu-me e perguntou-me se não gostava de jogar lá no clube. Disse-lhe que nunca tinha pensado nisso, mas que ele tinha de falar com o meu pai. O meu pai concordou e é assim que começa o futebol, com 14 anos.
Quem eram os seus ídolos?
O Magnusson, o Chalana... Lembro-me de vê-los jogar. O Humberto Coelho, o Valdo.
Quando vai para o Clube de Futebol de Chelas, já tem posição em campo definida?
Perguntaram-me onde gostava de jogar e eu disse que era na frente. Jogava na frente e fazia alguns golos.
E a escola?
Não era um grande aluno, gostava mais de jogar à bola na escola. Tenho poucas recordações da escola mais novo. Mas lembro-me que a determinada altura pedi ao meu pai para passar a deixar-me antes da escola porque ele era careca e eu tinha um bocado de vergonha, os meus colegas gozavam. Às vezes em vez de ir para a escola, ficava a dormir ao lado da escola ou ia passear. Mais para a frente, a partir do 2º ano de ciclo, as coisas melhoraram um bocadinho.
Depois do Chelas vai jogar para onde?
Foi tudo muito rápido. Nunca ficava mais de dois anos num clube. Depois do Chelas fui para o Olivais e a seguir para o Oriental.
Foi mudando porque recebia propostas melhores procurava outros clubes?
Houve um ano, entre juvenil e júnior, que dei um grande salto, em altura, e naquela idades jogadores com aqueles físicos, altos, impunham algum respeito. Depois comecei a ter algumas qualidades futebolísticas, rapidamente aprendi e os clubes interessaram-se. Fui para os Olivais e depois saio para o Oriental, com 17 anos, que já era um clube com outras condições. No segundo ano de júnior o treinador Francisco Barão, que é hoje treinador na equipa B do Sporting, teve a coragem de chamar-me para os seniores. Foi aí que as portas se abriram.
Lembra-se da estreia nos seniores?
Perfeitamente. Foi num jogo contra o Quarteirense, para a Taça de Portugal. Fomos para Quarteira no dia do jogo, lembro-me de ir bastante nervoso. Hoje já não é assim, quando dizes a um júnior para ir treinar com os seniores, a diferença não é tão grande e o efeito já não é o mesmo. No meu tempo quando chamavas um júnior só para treinar ele não dormia. Eu não dormia, era um sonho, eu queria era treinar, dormia muito pouco. E é no Oriental que me metem a trinco, a médio centro, porque era alto, agressivo, sempre com aquela vontade de querer ganhar.
Como surge o Belenenses?
No Oriental jogo pelos seniores todo o ano, faço um bom campeonato e é aí que desperto para o futebol. Aparecem duas equipas. A primeira a contactar-me foi a Académica de Coimbra. Houve um olheiro que veio ter comigo depois de um jogo, disse-me que já andavam a observar-me e fez-me uma pergunta: "Qual é a escolaridade que tens?". Aí fiquei assim um bocadinho... Eu só tinha o 7º ano. Passado um tempo, no penúltimo jogo da época, em que marquei um golo e até abri o sobrolho porque cabeceei na bola e houve um colega que deu uma cabeçada na minha cabeça... Fui cosido ali na hora e tudo, sangrava por todo o lado, mas eu só queria continuar a jogar. No final desse jogo aparece um responsável do Belenenses. Disse logo que sim, era o quarto melhor clube de Portugal na altura.
Integrou logo a equipa principal?
Assinei por três anos, mas o treinador do Belenenses, porque eu era muito novo, tinha 18 anos, achou por bem que eu fosse emprestado a um clube para ganhar mais experiência e acima de tudo jogar. E o primeiro clube que apareceu foi o Campomaiorense. Eu nem sabia onde era Campo Maior. Fui ver no mapa. O presidente era o João Nabeiro, o homem da Delta café.
Como foi sair de casa dos pais?
Ao princípio não foi fácil. Eu gostava muito de estar em casa dos meus pais, chegava a casa tinha comida e roupa lavada, tudo feito. Fui viver para um quarto, arranjado pelo clube, nem sequer tinha televisão. Comia sempre fora. Mas tive um treinador, o Fidalgo, que hoje é comentador, era de Lisboa e quase todas as semanas vinha a Lisboa. Criámos uma boa amizade, de vez em quando íamos passear ao El Corte Inglés, a Espanha.
Correu bem a época?
Foi muito positiva, joguei sempre. Tenho uma história engraçada. O presidente estava muito poucas vezes connosco porque era um homem muito ligado ao trabalho, estava sempre a viajar, e deu todas as responsabilidades e poder a um director, Pedro Morcela. Nós tínhamos o objectivo de subir porque arrancava no ano seguinte o campeonato da II Liga. As coisas começaram a não correr bem. A meio da época esse director despede o Fidalgo. Nós ficamos chocados. Entretanto três dias depois, quando vem o presidente, que não sabia de nada, gerou-se uma grande confusão e o presidente decide que quem fica é o treinador. "O meu treinador é o Fidalgo, quem não estiver contente, que me diga agora e vai-se já embora". Voltou o Fidalgo e a partir daquele momento, ganhámos todos os jogos até ao final da época. Todos. E subimos de divisão.
Regressa ao Belenenses no ano seguinte.
Sim. O treinador era o Abel Braga.
Fica três épocas em Belém. Qual é a maior recordação que tem?
O Abel Braga era um génio. Gostava de treinar, era directo, dizia o que tinha a dizer. De todos os treinadores que tive ele foi o único que dizia logo no primeiro dia de treino qual era a equipa que ia jogar no fim de semana seguinte.
Como assim?
Depois do jogo e da folga, no primeiro dia de treino ele falava sobre o jogo anterior, o que foi bom e o que foi mau e depois dizia: "A equipa para o próximo domingo vai ser esta...". Não sei se fazia bem ou mal. Só sei que dava resultado. A equipa que ia jogar tinha de trabalhar bem toda a semana, porque mesmo sabendo que eras titular se não trabalhasses dentro daquilo que ele pretendia, não jogavas. Ele normalmente alterava uma peça. Isso fazia com que os outros também acreditassem e fizessem o seu trabalho para eventualmente conseguirem um lugar. O Abel Braga teve a coragem de me pôr a jogar frente ao Sporting faltavam 15 minutos para o final. Disse-me: "Onde estiver o Jorge Cadete, estás em cima dele". Eu estava a fazer marcação cerrada ao Cadete e lembro-me de ter comentado: "Se eu tivesse jogado este gajo não fazia nenhum golo". Alguém deve ter contado ao treinador, não sei qual foi o jogador. No primeiro dia de treino a seguir ao jogo o Abel Braga vira-se para mim: "Oh miúdo, ainda agora chegou e já está..." Sei que foi duro comigo. Parecia que estava a faltar ao respeito aos meus colegas por ter dito aquilo, mas não foi nada disso. Nós tínhamos uma grande equipa. Mas deu-me uma grande dura e eu, claro, caladinho, acabei por pedir desculpa. Depois começa a pôr-me a titular. E foi aí que cresci.
Em que aspecto?
És novo, achas que já conquistaste tudo e eu comecei a ser conhecido, a dar autógrafos, comecei a sair e comecei a chegar aos treinos sem estar em condições.
Começou nas noitadas?
Não saía todos os dias, mas saía duas, três vezes por semana, porque era jovem, tinha reconhecimento, era titular, tinha amigos, apareciam as miúdas e eu queria conhecer as raparigas... Nós treinávamos sempre de manhã e claro quando chegava ao treino... O mais importante que era o futebol, estava a ficar para trás. O Abel Braga fez uma coisa que nunca vou esquecer e acho que foi aí que acordei para a vida. Tenho de agradecer-lhe.
O que fez?
Uma semana ele não me convoca, o que eu achei estranho, mas não disse nada, continuei naquela vida. Ele chamou-me ao balneário e disse-me: "Olha miúdo, vou-te dar isto, leva para casa, vê o que andas a fazer". Era uma cassette VHS, onde estavam gravados os meus treinos das últimas 2 semanas. Posso dizer que eram horríveis os meus treinos, horríveis. No dia seguinte, pedi para falar com ele. Pedi-lhe desculpa e ele acrescentou: "João, tu tens boas capacidades, tens um futuro à tua frente, se quiseres amanhã podes jogar num grande clube. Agora, assim não". Acordou-me. Eu continuei a trabalhar e as oportunidades voltaram a surgir. Depois houve chicotada psicológica e com a entrada do novo técnico as coisas voltaram a não correr bem.
Quem era?
José Romão. Não me convocava, meteu-me completamente fora. Ainda por cima no final da época eu ia casar.
Como e onde conhece a sua mulher?
Conheço-a numa discoteca. Através de um colega, o Brassard. Eu tinha sido convocado para o meu primeiro jogo pela selecção de sub-21. Fomos jogar a Leiria e ganhámos à Escócia. Nessa noite saímos, fomos para o Alcântara-Mar, que era a discoteca mais famosa na altura. Fomos todos. Eu até era um rapaz sossegado, não bebia álcool, era raro. Mas lembro-me que o Brassard estava completamente embriagado, estávamos frente a um balcão e ao nosso lado estavam umas raparigas a beber o seu copo. Começamos a conversar com elas, eu mais tímido, e o Brassard a certa altura começou a meter-se com elas, a abraçá-las e a tentar beijá-las. Elas disseram-me: “Diz lá ao teu amigo que não gostamos destas coisas". Agarrei no Brassard, aquilo acalmou. Mas antes de acontecer isso elas disseram o que faziam. A Ana, que é hoje a minha mulher, trabalhava nas Amoreiras, na loja da Chevignon.
No dia seguinte foi à Chevignon. Acertei?
(risos) Fui. Comprei umas calças e lá estava ela. Eu pedi-lhe desculpa pelo que tinha acontecido. Passada uma semana voltei a lá ir, comprei outra coisa qualquer e convidei-a para sair. E foi assim que começou.
Daí até ao casamento passou quanto tempo?
Quatro, cinco meses. Eu já vivia sozinho, quando fui para o Belenenses pedi logo um apartamento para mim porque queria sair de casa dos pais, ser independente.
O seu primeiro contrato foi com o Belenenses?
Não, foi com o Oriental e ganhava 10 contos (50€).
Comprou alguma coisa com esse dinheiro?
Não. Lembro-me de o meu pai dizer-me "Quando ganhares o teu primeiro ordenado guarda esse dinheiro para o resto da tua vida, porque é o teu primeiro ordenado". Guardei o dinheiro.
Já tinha carta de condução?
Não. Quando fui para o Campomaiorense, uma da coisas que pedi foi a carta. O clube oferecia alojamento e alimentação e eu disse-lhes que gostava de tirar a carta. Perguntei se podiam pagar também. Disseram logo que sim, ainda por cima um dos directores era dono de uma escola de condução (risos). Mas nunca fui. Quando venho para o Belenenses é que tiro. O Belenenses alugou-me um apartamento na zona dos Prazeres, e curiosamente, a Ana vivia também nos Prazeres. Era vizinha do Cavaco Silva, ele mora no 1º andar e ela morava no 3º. Entretanto, depois de tirar a carta comprei um Peugeot 106 XSi vermelho, que na altura era o carro da moda.
Voltando ao José Romão...
No ano em que ele entra, a minha mulher fica grávida e eu vou casar, já casei com ela grávida. Deixei de jogar, não fazia parte dos planos para a próxima época no Belenenses e tinha mais um ano de contrato. O treinador foi muito direto, disse-me na cara: "João não conto contigo mas se quiseres ficar podes ficar, só que, digo-te já, não vais ter oportunidades, é um assunto entre ti e o presidente. Faz o que entenderes". Foi muito difícil para mim porque ia casar, ia ter um filho, não sabia para onde é que eu ia. Falei com o presidente Matias, que por acaso tinha convidado para ser meu padrinho de casamento. Disse-lhe que gostava de continuar independentemente do treinador não contar comigo. E foi assim. Casei nas férias e voltei ao clube.
O seu filho nasce quando?
O João Ricardo nasce em dezembro. Antes disso, a época começou, eu não jogava, mas as coisas começaram também a não correr bem para o treinador, porque não havia resultados. E aparece uma luz, o João Alves. Quando chegou mudou muita coisa. Pôs-me logo a jogar. Viu a forma como eu trabalhava e depois tem uma coisa muito boa, gosta da juventude, dá oportunidade a jovens, não tem medo, arrisca. Mas atenção, ele ajuda-nos mas nós também temos de trabalhar. Comecei a jogar, começaram a vir os resultados, o meu filho prestes a nascer. Num curto espaço de tempo tudo vira outra vez e acontecem-me coisas fantásticas. Lembro-me que quando vi o meu filho a primeira coisa que marquei foi que ele tinha um sinal no joelho. Senti-me um homem muito feliz quando o meu filho nasceu. Estava tudo a correr bem, tinha 21 anos, aparecia nos jornais. Em dois meses começo a jogar a titular, nasce o meu filho, o João Alves dá-me a braçadeira de capitão, aparece-me o empresário e surge o interesse dos três grandes.
Quem era o empresário?
José Veiga. Era o homem do momento, que trabalhava com todos os clubes. contacta-me, conversámos e torna-se meu empresário. Mas nunca assinei nada com ele. Estive 10 anos a trabalhar com ele. Se alguma coisa os meus pais me deram foi educação. Fui sempre um homem de palavra. Ele veio com contratos para assinar e eu disse-lhe: "Desculpe, mas eu não assino nada. Para mim o mais importante é a palavra, foi aquilo que os meus pais me ensinaram. Se você quiser acreditar em mim tudo bem, se não quiser também compreendo perfeitamente. Se quiser trabalhar comigo são estas as condições. É a palavra. Você ajuda-me, eu ajudo-o". Passadas duas semanas ele ligou-me.
Qual foi o primeiro dos três grandes a mostrar interesse?
Sporting. O Veiga liga-me para eu ir jantar com ele. Durante a viagem para o restaurante não me disse nada, perguntou-me só onde é que eu gostava de jogar. Disse-lhe que num grande qualquer, que o meu clube de coração era o Benfica, mas que queria era jogar. Quando chegamos ao restaurante, quem é que lá estava? Sousa Cintra.
O que lhe disse?
Sentámo-nos. Na mesa já estava marisco, ele parte um marisco ao meio com as duas mãos e pergunta-me logo directo: "Então, queres vir para o Sporting?". Eu não estava preparado. Até me engasguei. Mas disse que sim. E ele, sempre a comer, continua: "Vamos já tratar disso". Durante a conversa ele conclui: "Só tens de dizer quanto é que queres ganhar". Despedi-me dele e quando ia a despedir-me do Veiga disse-lhe: "Liga-me, diz-me quanto é que eu quero ganhar para prepararmos estas coisas". Passados dois ou três dias liga-me o Veiga: "João vem ter comigo, vamos almoçar a Belém que quero falar contigo". Vamos lá.
Quem é que lá estava dessa vez?
(risos). António Simões. Eu só pensava: "Isto não está a acontecer". Ele com um discurso completamente diferente, muito calmo. O Simões é um gentleman do futebol. Muito sereno, parece que as palavras estão todas ajustadas. "Então, gostavas de ir para o Benfica?". A mesma história. Disse-lhe que o Benfica é o meu clube de coração. Ele sempre muito tranquilo: "Ainda bem, não sabia. Sabes, nós já te observamos há algum tempo. Desde o ano passado, depois deixaste de jogar..." Um discurso muito mais cauteloso. Mas já não perguntou quanto é que eu queria ganhar. Não, simplesmente disse que poderia ser uma hipótese para a próxima época, que só queria falar um bocadinho comigo, saber como eu era e que estavam a avaliar-me. Disse-me para continuar a trabalhar.
Depois veio o FCP, suponho.
Na semana seguinte, o Veiga liga-me novamente: "Amanhã depois do treino vais para o Porto". Disse-me só isto. Perguntei-lhe logo se era o Pinto da Costa. Disse-me que não, que era outro clube, era um bom clube. Não me quis dizer nada. E lá fui para o Porto.
A pensar que era o Boavista?
Pensei que podia ser o Boavista ou outro clube do norte de Espanha, porque Vigo é muito perto. Podia ser o Celta de Vigo ou o Tenerife. Chego lá, ele diz-me para ir ter com ele ao café Velasquez, porque toda a gente sabe onde fica. Entro no carro dele, a minha mulher, que tinha ido comigo, teve de ficar. Em três minutos estava dentro do estádio do FCP. E ele continuava a negar: "Nada disso. Já vais ver para onde é que vais". Subimos no elevador e quando saímos, só me lembro de ter entrado num gabinete que parecia sala de cinema, muito grande. Era muito grande, com uma secretária enorme. Sentei-me. Quando se abre a porta atrás de mim e vejo o Pinto da Costa vir na minha direcção... Estamos a falar de uma figura que tinha uma mística à volta dele enorme, era uma figura emblemática. Cumprimentar o Pinto da Costa ou falar com ele não era para qualquer pessoa naquela altura.
E ele?
Muito educado. Perguntou-me se a viagem tinha corrido bem. Depois veio a pergunta da praxe: "Gostavas de vir para o FC Porto?". "Claro que sim". E ele "OK. Então tenho isto aqui para ti, quatro anos de contrato. Este é o teu contrato". Deu-me o contrato para a mão. Olhei para aquilo e era muito dinheiro. Olhei para o Veiga: "O que é que eu faço? Isto é mesmo para eu assinar? Isto é mesmo verdade?". Disse mesmo assim. Toda a gente sabia que o presidente era muito brincalhão. E o Pinto da Costa: "E tens mais isto". E dá-me um envelope para a mão, com dinheiro. "Este envelope é para tu gastares no que quiseres. Olha, vai comer camarão". Lembro-me perfeitamente: "Isto é para ires comer camarão".
Era muito dinheiro?
Era. Para aquela altura era. Não sei fazer bem as contas, mas acredito que aos olhos de hoje o que estava dentro do envelope era um valor de mais ou menos 2000, 2500 euros. Não me lembro do valor, lembro-me que era muita nota. Olhei para o contrato e eu não percebia nada daquilo, só queria ver era os números, queria saber era o ordenado. O Veiga olhou para mim: "Estás à espera de quê". "Eu? Nada". Pedi uma caneta ao presidente e assinei. A única coisa que ele me disse foi: "João, isto não é para sair cá para fora. Isto é segredo. Aqui na minha casa é tudo segredo, é tudo blindado. No dia em que quiseres falar para a comunicação social, eu é que te digo quando é que deves falar. Sou eu que te digo quando é que podes comunicar que és jogador do FC Porto". Foram as palavras dele. E assim foi.
Uma abordagem diferente dos rivais.
A forma como o FCP trabalhava na altura era muito diferente dos outros, por isso é que contratava os melhores. Chegavas ali e não havia cá conversa. A conversa era ou queres vir para o FCP ou não queres vir para o FCP. Se queres, está aqui, nem discutiam. E tu olhavas para aquilo e o que é que pensavas? Eu não posso estar dependente de um clube como o Benfica ou como o Sporting, que não sei se vou ou não, mostraram interesse, mas não disseram: "Embora, está aqui, vamos já assinar".
Aquilo que foi ganhar para o FCP era muito mais do que ganhava no Belenenses?
Quatro ou cinco vezes mais. Lembro-me que no Belenenses já tinha um ordenado de mais de 700 contos/mês, mas no FCP fui ganhar muito mais.
Qual foi a reacção da sua mulher quando lhe disse que iam para o Porto?
Quando cheguei ao carro, dei-lhe o envelope para as mãos, ela perguntou o que era e eu disse-lhe "Assinei pelo FCP". Ficou contente.
Ela já não trabalhava nessa altura?
Não. Foi uma das coisas que lhe pedi quando decidimos casar. Eu tinha condições para nos sustentar e queria que ela deixasse de trabalhar. Ela assim fez, respeitou. Embora ao princípio não quisesse, porque gostava de trabalhar e tinha os seus amigos, eu disse-lhe que compreendia mas que ela tinha de perceber que agora estava comigo e que tinha condições para os dois.
Por que razão não queria que ela continuasse a trabalhar?
Os jogadores gostam da sua privacidade, gostam de ter a sua mulher ao seu lado, sem ninguém saber, queria que ela só se concentrasse em mim porque era uma mulher bonita e qualquer homem podia interessar-se por ela, ou ela podia interessar-se. Eu tive o cuidado de dizer: "Vem para junto de mim, cuidas de mim, cuidas da casa, estás grávida e acho que é nisso que tens de estar concentrada e não em ires trabalhar". Se pergunta se fiz bem ou mal, acho que fiz o certo porque ela ficou contente. Ela não percebia nada de futebol e quando lhe disse que ia ficar no FCP ficou muito feliz. O meu pai era benfiquista, o meu sogro sportinguista (risos).
Como é que foi a recepção no FCP, foi praxado?
Fui. Ainda hoje o fazem, atiram o famoso balde de água. O FCP tinha uma super equipa, um grande treinador, Bobby Robson, os adjuntos eram José Mourinho e Inácio. Era uma equipa fantástica. Vítor Baía, Aloísio, Jorge Costa, Bandeirinha, José Carlos, Secretário, João Pinto, Semedo...
Quais foram as suas primeiras impressões?
Positivas. Uma equipa de outro calibre. Um povo fantástico, nunca dei tantos autógrafos, dei mais autógrafos num dia do que nos anos em que estive no Belenenses. É um clube com uma massa associativa que adora futebol e os seus jogadores. Rapidamente juntei-me aos jogadores mais fortes e carismáticos da equipa. Eram jogadores importantíssimos e eu estava no meio daqueles tubarões todos, a aprender, a observar. E fui bem recebido.
Começou logo a jogar?
Não, não. Era difícil. Eu tinha três grandes centrais, Jorge Costa, Aloísio e José Carlos. O Jorge Costa ainda não jogava a titular, para ter uma ideia. Quem jogava era o Aloísio e o José Carlos, o Jorge aparece nesse ano, começa a jogar depois porque o Bobby Robson tirou o José Carlos e meteu-o a ele. O José Carlos não aceitou muito bem, deixou de ser titular e foi embora, logo em dezembro ou Janeiro. Abriu uma porta para mim, uma possibilidade, porque eu era o quarto central. E ser convocado para mim já era...
Que marcas lhe deixou Bobby Robson?
Era um gentleman. Naquela altura qualquer jogador que não jogava ficava triste e chateado, mas com o Bobby Robson era impossível. Ele era muito energético, falava com todos os jogadores, a forma como comunicava era engraçada. Meio português, meio inglês. Os processos e métodos de trabalho eram sempre bons, era futebol ofensivo. Não havia cá futebol defensivo. Ele nunca trabalhava o futebol defensivo porque nós tendo bola marcávamos sempre três ou quatro golos. Só trabalhávamos cruzamentos, remates, um autêntico inglês.
No final da época ele foi embora para o Barcelona. Veio António Oliveira.
Foi bom. Foi muito bom, mas acho que qualquer treinador que viesse naquela altura para o FCP era campeão, porque tínhamos os melhores jogadores. O Benfica entrou numa crise financeira e era o Sporting que podia fazer-nos um pouco de frente ou mesmo o Boavista. Mas o Oliveira deu-me oportunidade de jogar porque o Jorge Costa teve uma lesão grave, uma ruptura de ligamentos, a meio da época. Era muito difícil eu jogar tendo o Aloísio, tendo o Jorge Costa, que nessa época assume completamente o balneário. Quando cheguei ele já lá estava, mas não era titular, só que não jogava no FCP mas jogava na selecção, era jogador de selecção, já era uma pessoa com aquela postura forte nos treinos, dobrava a língua: "Tens que pôr o pé, temos que os comer, temos que isto e aquilo". E o Jorge começa a jogar, depois tem a lesão e o Oliveira põe-me a jogar.
Seguem-se mais duas épocas com Fernando Santos.
Na primeira época com ele ganhamos o pentacampeonato. E a minha segunda época foi muito difícil, talvez o momento mais difícil na minha carreira.
Já lá vamos. Das primeiras quatro épocas no FCP, qual é a primeira coisa que lhe vem à memória?
O Bobby Robson. Foi um homem que fez e mudou um bocadinho a história do futebol. Ele fez de mim ponta de lança. Depois muitos treinadores fizeram o que ele fez. Mas ele punha-me muitas vezes a jogar a ponta de lança. Muitas vezes estávamos empatados e eu ia para a frente e fazia golos. Isto vem-me sempre à cabeça. Muitos jogadores ainda hoje dizem: "João, sempre que tu entravas, já sabíamos que ias marcar".
Gostava de jogar a ponta de lança?
Sim. Era uma missão impossível. Como é possível um jogador como eu, um defesa central, ser ponta de lança? Eu dava o meu melhor, claro que não podia ser melhor do que o meu ponto de lança que lá estava porque ele tem essas características, eu não tenho. Era uma missão impossível. Mas dava resultado.
No meio disso tudo nasce o seu segundo filho.
Sim, aí já não estive presente porque estávamos a fazer um digressão no final da época 1996/97, na Tailândia. Recebi uma notícia triste porque o meu filho Hugo nasceu com muitas dificuldades respiratórias. Muito grave mesmo, teve de ser entubado, a minha mulher a chorar e eu sem poder fazer nada. Falei com os directores para me deixarem regressar mais cedo, mas eles disseram: "João, nós também vamos embora dentro de dois dias". Íamos ter uma final com o Inter de Milão. Nesse torneio eram quatro equipas, o Boca, nós, o Inter de Milão e a selecção da Tailândia. Nós íamos jogar a final, e era importantíssima para o clube em termos financeiros, porque quem ganhasse recebia muito dinheiro. Quando cheguei e encontrei o meu filho entubado foi muito difícil.
As complicações resolveram-se?
Sim. Tive de comprar máquina de oxigénio, ele ainda foi algumas vezes internado com falta de ar, foi complicado. Principalmente para a minha mulher porque as mães têm uma sensibilidade diferente, uma ligação muito forte aos filhos, diferente do pai. A mãe tem aquele sentimentalismo, são as mulheres que os carregam e trazem ao mundo, cuidar deles faz parte da sua natureza, por isso só ela sabe o que sofreu. Mas felizmente esses problemas foram ultrapassados, o coraçãozinho dele lá fechou, porque ele tinha sopros e dificuldades em respirar e tudo passou.
Entretanto na segunda época joga pouco com o Fernando Santos. Porquê?
O Fernando é um grande treinador, foi dos melhores com quem trabalhei mas ele gosta muito de experiência. Gosta muito de ter experiência em campo. Ele falava comigo, dizia-me para continuar a trabalhar, mas eu sabia que era muito difícil com Aloísio e Jorge Costa na equipa. E na última época então foi terrível.
O que aconteceu?
Era o meu último ano de contrato com o FCP. O presidente veio ter comigo e disse-me: "João temos aqui um clube para ti, no estrangeiro, pode ser importante para ti, é uma liga muito boa, o clube é bom". Era a liga inglesa e o clube era o Sheffield Wednesday. Antes disto, na época anterior já havia uma guerra profunda entre José Veiga e Pinto da Costa.
Que guerra?
A guerra tinha a ver com negócios de empresário e jogadores. Mas vem um bocadinho do filho do presidente, que na altura começa a trabalhar com o Veiga. É que primeiro houve uma guerra entre pai e filho, por causa da mãe. O Alexandre não aceitou que o Pinto da Costa tivesse deixado a sua mãe, a grande mãe de que tanto gosta. A relação entre pai e filho partiu-se completamente e gerou-se uma guerra, depois o filho começou a trabalhar com o Veiga, entretanto Pinto da Costa soube que o Veiga desviou alguns jogadores do FCP para os rivais e não perdoou. Já se sabe que quando Pinto da Costa põe uma coisa na cabeça não há ninguém que consiga desviá-lo do que pretende. Ele começou a pôr os jogadores do Veiga de lado. No final da época senti já não estava muito confortável, sabia que ia sobrar para mim. Tanto que eu, o Panduru, uma série deles, fomos recambiados para a equipa B por causa dessa guerra. Começámos a época e senti que o Fernando Santos não contava muito comigo.
Porque tinha recebido ordens?
Possivelmente. Sabe que um presidente e um treinador unem-se... mas não quero falar porque não sei. O que sei é que o presidente é uma pessoa muito inteligente, que percebe muito de futebol, que escolhe os seus jogadores para a época desportiva. Escolhe os treinadores e jogadores certos. Logo nos primeiros anos senti que quando o Pinto da Costa não gostava de um jogador, era posto de parte. Comecei a sentir-me desconfortável no final da época, um bocado longe, eu até me dava muito bem com ele, ele chegou a dizer-me: "Eu é que vou ser o teu gerente de conta, vou controlar a tua conta bancária". Ou seja, havia uma ligação forte, que depois se estragou por causa de uma guerra que começou entre pai e filho, este depois junta-se ao Veiga, o Veiga também desviou alguns jogadores para os rivais, o presidente não aceitou bem isso…
O que fez?
Tivemos um jogo treino da equipa B contra uma equipa da Maia e fui o único que fui jogar pelos juniores. Pensei: “Bom, já percebi onde é que eu estou, para onde é que eu vou e aqui só tenho um caminho". O Reinaldo Teles entretanto liga-me para ir ter aos escritórios da SAD. O presidente foi muito directo. “João tenho um clube para o qual podes ir já, o Sheffield Wednesday de Inglaterra ou então vais para a equipa B". Tudo muito simples. Ele não se expunha, não falava sobre a vida dele ou se tinha problemas com o Veiga, mas nós sabíamos o que se estava a passar.
O que respondeu?
Disse-lhe que ficava triste por estar a descartar-me porque achava que tinha sido sempre uma pessoa importante no clube, tinha criado amizade com todos os jogadores, fui feliz no clube, dei muitas glórias aos adeptos, dei muitos pontos ao clube e respondi-lhe: "Eu sei que vou embora porque há aqui uma guerra e eu não sou o responsável por isto. Mas você e o treinador entendem que não tenho lugar, muito bem, vou ter de pensar e vou ter de falar com o meu empresário". E ele logo "Sim, sim. Fala com ele. Fala com ele. É o que tu tens aqui e diz-nos rapidamente porque temos de tomar um decisão". Liguei ao Veiga, e ele também foi directo "João, se quiseres ir para o Sheffield vais. Prometo-te uma coisa, se aguentares este ano todo na equipa B, para o ano estás numa equipa grande aqui em Portugal. Garanto-te que em Janeiro tenho um contrato para ti. Até lá não, porque não é legal, só a partir de Janeiro é que podemos fazer isso. Mas se aguentares estes quatro meses sem nada, e sei que vai ser difícil para ti... agora é uma decisão tua".
Foi uma decisão difícil?
Sim. Falei com a minha esposa. Fui ver quem era o clube inglês, não era um grande clube, mas é sempre prestigioso jogar na primeira divisão inglesa. Liguei ao Veiga e disse-lhe "Se você me promete, eu aguento". Ele voltou a prometer que em Janeiro eu estava ou no Benfica ou no Sporting. Assim aconteceu. foram quatro meses difíceis. O meu treinador era o Ilídio Vale, que hoje é treinador adjunto do Fernando Santos.
A seguir vai para o Benfica.
Antes há outra história. Estive então a treinar na equipa B, nem jogava sequer pela equipa B. Fui para lá eu, o Panduru, o Folha e outros jogadores. Foi muito difícil porque parecia que estava a voltar à estaca zero. Foi tudo tão bonito até aí, os campeonatos que ganhei no FCP, eu ganhei tudo no FCP. E de repente parece que caiu o mundo. Estar um ano sem jogar foi muito complicado e ainda por cima houve uma altura em que o presidente deixou de pagar, durante três ou quatro meses.
E tinha de acreditar que o Veiga arranjava um clube em quatro meses.
Pois. Entretanto passou o ano novo e ele liga-me, diz-me para ir a Lisboa ter com ele. Fui com a minha mulher e filhos. Vou ao escritório dele e quem lá estava? O vice-presidente do Sporting, Luís Duque. O treinador era o Inácio, com quem falei depois e estava muito contente por eu ir para o Sporting. Assinei pelo Sporting por quatro anos e havia uma cláusula muito grande no caso de alguém corromper o contrato assinado. E passado pouco tempo o Inácio é despedido, a direcção do Sporting sai e fiquei preocupado. Eu tinha um contrato assinado com o Sporting mas... Falei com o Veiga, perguntei-lhe se estava tudo bem. Ele diz que sim. Passado uma semana o presidente do FCP ligou-me. "Vem aos meus escritórios que quero falar contigo". Fui.
O que aconteceu?
Ele muito calmo, muito tranquilo, como sempre, disse-me só isto. "Olha, se tu pensas que vais para o Benfica ou para o Sporting estás muito mal enganado porque não vais nem para um nem para outro". Eu fiquei calado. Eu não conseguia reagir, porque ele no fundo já sabia que eu tinha assinado o contrato, ele já sabia. A verdade é que passadas umas semanas sai um acordo entre o Sporting e o FCP que dizia que nem os jogadores do Sporting iam para o FCP, nem os do FCP para o Sporting. Aí é que me caiu tudo. Liguei ao Veiga. "Calma, calma, que vou resolver isto". Acaba a época e o único contrato que tinha assinado era com o Sporting. Disse ao Veiga: "Vou de férias, foi um ano muito difícil para mim, quero sair daqui. Vou uma semana, quando voltar, se não tiver isto resolvido, se o Sporting não me quiser, muito bem, tem toda a legitimidade de não querer, é uma nova direcção, mas eu tenho um contrato e alguém vai ter pagar o valor que lá está".
E ele?
Só me dizia para ter calma, que ia resolver o assunto. "Eu acreditei em sim, estive um ano parado por sua causa. Eu é que fui a vítima. Acreditei em si e podia ter ido para Inglaterra. Se quando chegar de férias não tiver algo de bom, até pode ser no estrangeiro, eu arranjo um advogado e alguém vai pagar este dinheiro, provavelmente será o Sporting. Eu sei que é muito amigo do Luís Duque, não quero estragar nada, nem arranjar confusão com ninguém, quero é a minha vida resolvida. Não me querem, paguem-me". Nessa altura tinha 26, 27 anos, não era fácil um clube bom vir ter comigo, até porque eu parecia o desaparecido em combate porque estive um ano parado.
Quando regressa...
...Voltei passada uma semana, sem nenhuma chamada do Veiga. Liguei-lhe, não me atendeu. Fui ao escritório dele. Disse-me que estava a tratar do assunto. Faltava uma semana para começar o início da época das equipas. Ele pediu-me uma semana. E assim foi. Na véspera da apresentação do Benfica, liga-me: "Amanhã vais ter comigo ao estádio da Luz. Estacionas o carro mesmo ao lado da estátua do Eusébio". Cheguei, ele estava à minha espera, fui ter uma conversa com o presidente da altura, Vilarinho. Já estava em funções também o Luís Filipe Vieira. Estávamos os quatro na mesa. E acho que também o Simões. Disse-lhes que representar o clube do coração é sempre algo de especial e um orgulho. Falámos e acertámos o contrato. E há algo que nunca mais vou esquecer.
Conte.
Eu vinha de um clube ganhador, com Jorge Costa, Aloísio, João Pinto, com pessoas de carisma, emblemáticas que te ensinam como é que te mexes no balneário, como é que podes ganhar. Tentei introduzir isso no Benfica. E lembro-me que na primeira intervenção que tive, nesse mesmo dia quando assino o contrato, fiquei completamente desiludido, frustrado. Viro-me para o Vilarinho e digo-lhe: "Este ano temos de formar uma boa equipa para sermos campeões. Temos de ser campeões". E a resposta dele: "Não, João, nós não podemos ser campeões". "O quê, não podemos? Você não quer ser campeão?". "Não, João, não podemos". "Mas não podemos porquê?". "Porque nós não temos dinheiro para pagar prémios de jogos". Eu fiquei... Não podia ser pior. Veja a grande crise que estava instalada no Benfica desde o Vale e Azevedo.
Ao dizer isso está a insinuar que os jogadores não se esforçam se não tiverem prémios de jogo?
Acho que foi uma forma de dizer que o Benfica não estava bem financeiramente. Foi uma forma de dizer que íamos tentar fazer pelo menos o 2º lugar para entrarmos nas competições europeias, às quais o Benfica já não ia há muito tempo. Nós não tínhamos equipa para o Sporting e para o FCP. O Benfica estava de alguma maneira a tentar reorganizar-se e preparar o futuro. Não era fácil arranjar jogadores porque toda gente queria ir para o Sporting e para o FCP, porque eram os clubes com melhores condições financeiras. Acho que foi isso que ele quis dizer, que íamos tentar fazer um campeonato melhor do que o ano anterior, só que disse de uma forma errada. E foi assim que tudo começou, o Luís Filipe Vieira começou a levantar o Benfica aos poucos.
Mas nessa altura ficou bastante desiludido.
Não espera ouvir aquilo. No FCP habituei-me a ganhar e nunca houve estas expressões, por causa de não pagar prémios não queres ser campeão. Quem é que não quer ser campeão? Mas aquilo foi uma forma de mostrar que não tínhamos capacidade nem estrutura para sermos campeões.
Quando chega ao Benfica quem era o treinador?
Toni. O Toni era daqueles treinadores que era impossível chatearmo-nos com ele, ou ter algum problema. Porque estava sempre tudo bem com ele, não se chateava com ninguém, é uma pessoa que ama muito o Benfica, que não consegue bater o pé. O Toni pode ser despedido 50 vezes e se for preciso volta outras 50. Ele até pode ser contratado para jogar uma semana, fazer um jogo, e vir outro, que ele não se importa porque ele adora o Benfica. É uma pessoa carismática, com um grande coração.
Como é que correram as duas épocas no Benfica e a readaptação a Lisboa?
A adaptação foi boa, Lisboa é uma cidade linda que eu adoro.
Ficou a viver onde?
Já tinha comprado casa em Cabanas, perto de Azeitão, quando estava no Porto. O Benfica perguntou se precisava de casa, mas disse-lhes que não, que tinha cá casa, foi menos uma despesa para eles. Foi uma época muito difícil no Benfica, nunca faltou nada, é verdade, éramos apoiados pelos benfiquistas, tínhamos sempre muita gente atrás de nós. Mesmo nos treinos havia muita gente a assistir. Mas o clube estava caótico, eu à vezes olhava para as paredes e a água escorria. Viam-se as fissuras no balneário, no estádio da Luz. O Luís Filipe Vieira foi levantando aos poucos, a primeira época foi razoável, a segunda já foi melhor, já fomos à Liga dos Campeões.
Qual é a melhor memória que tem do Benfica?
O dia em que conheci o Eusébio pessoalmente e quando me foi dada a braçadeira de capitão, logo no primeiro ano. Nunca pensei jogar logo a titular porque tinha estado uma época parado e havia bons centrais no Benfica.
E coisas menos boas ou estranhas?
Tínhamos o Argel, que era completamente louco.
Como assim?
Às vezes era bruto, era muito agressivo quando abordava as bolas, ninguém podia dizer-lhe nada, ninguém podia chamar-lhe a atenção. Lembro-me de uma zaragata que ele teve com o Porfírio, só porque o Porfírio lhe disse para ter mais calma. Ele passou-se completamente, foi direito ao Porfírio e deu-lhe um soco que lhe abriu o lábio. Levou um processo disciplinar e foi para a equipa B. O Argel perde o lugar na equipa por causa disso.
Foi capitão no Benfica.
Sim. O Enke quando é capitão deixa de jogar, não quis assinar pelo Benfica e acho que acabou por ir para o Barcelona e como ele não quis assinar pelo Benfica, o Jesualdo Ferreira resolveu tirá-lo da equipa, não sei se foi ele ou se foi o Luís Filipe, não me interessa, tirou-o e meteu o Moreira. Quem ficou com a braçadeira fui eu. Lembro-me das palavras do Eusébio: “Bem vindo a casa grande capitão. São precisas pessoas como tu, com a forma como trabalhas”. Ouvir isso do Eusébio que fez tanto pelo nosso país é uma coisa que marca. Foi uma época desportivamente muito boa para mim, porque me deram a braçadeira, uma segunda época muito boa, ficámos logo na frente com quatro jogos, quatro vitórias, fui chamado à selecção nacional... O primeiro jogo que faço pela selecção foi logo contra a Inglaterra. Mas depois as coisas não correm bem.
Porquê?
O Jesualdo foi mandado embora. Eu que ainda era um dos capitães, liguei ao Luís Filipe Vieira, tive uma reunião com ele, falámos muito tempo para segurar o treinador, falei com o Jesualdo também, mas era mesmo uma altura de mudança. O Luís Filipe Vieira foi buscar o Camacho mas antes ainda é o Chalana que assume o jogo. O Camacho estava na bancada. O Chalana tirou-me da equipa sem me dizer nada. Sempre fui uma pessoa que nunca pediu satisfações, aceitei. Não joguei frente ao Braga em que ganhámos 3 ou 2-0. Fizemos um grande jogo. A partir daí o treinador que viu aquela equipa chegou ao pé de mim e disse: “João, eu sei que és o capitão, que és um exemplo e um grande profissional, mas eu vou manter a equipa que jogou neste domingo”. Aceitei e disse-lhe: “Mister, independentemente de jogar ou não, eu vou continuar a trabalhar e estou cá”. Mesmo no banco dava indicadores daquilo que achava que não estava a funcionar bem. Sempre gostei de apoiar porque acima de tudo eu amava o Benfica, não era só por ser o capitão. De alguma maneira são estas coisas boas que ficam quando fui embora do Benfica.
Mas acaba por deixar o Benfica. Não lhe renovam o contrato?
Não, eu tinha mais um ano de contrato. Tive uma reunião com o Veiga e com o presidente. O mister estava a renovar a equipa, o presidente estava a tentar satisfazer os desejos dele e do clube e disseram-me que o treinador não contava comigo. E saí. Só que saí depois daquela conversa com o presidente e já não me apresentei no início de época. Soube mais tarde que o Camacho perguntou por que não fui falar com ele. Não fui porque me tinham dado ordens de que não valia a pena, que o treinador não contava comigo. Depois soube que afinal o treinador não tinha dito isso. E para o meu lugar veio o Luisão que é um grande central e um grande capitão. A liderança é uma coisa de que gosto muito e que faz parte de mim. Gosto de ser líder. Se reparar bem, no FCP também fui algumas vezes capitão, no Oriental fui capitão, quando acabei a minha carreira no FC Sion era capitão. As pessoas pediam-me para ser capitão não por ser bonito, mas porque era um líder.
Sentiu-se enganado naquela altura?
Não sei se me senti enganado ou se alguém não me queria ali. Isto de ser capitão é muito difícil. Numa equipa como o Benfica, em que toda a gente quer ser capitão, há gente com inveja. Eu não sei se foi o treinador, o presidente ou se foram alguns colegas meus. Em relação ao Camacho, e podem dizer que ele não contava comigo, acredito que era mentira. A forma como ele trabalhava comigo, como falávamos os dois, tinha uma boa relação com ele. Dizerem que ele não contava comigo… Mas tive de acreditar e como não quero arranjar confusão com ninguém... O que sei é que tinha uma boa relação com o presidente e com o treinador. Tinha lá um ou outro jogador dentro da equipa que... Não vou falar nomes. Acima de tudo sou amigo do clube e ainda hoje sou convidado para ir a festas, porque também fiz parte daquela família. Eu saio do Benfica bem, independentemente de ter mais um ano de contrato.
E como é que surge o Murcia? Como é que vai parar a Espanha?
Quando saio ainda tenho um ano de contrato com o Benfica, portanto ainda tinham de pagar-me esse ano ou passavam-me para a equipa B, mas isso eu não queria. Tive uma reunião com o Veiga, perguntei-lhe como é que era a minha situação e disse-lhe: “Mais uma vez passou-se alguma coisa esquisita. Não quero falar disso mas você deve saber, porque você trabalha no Benfica”. Mais tarde veio a saber-se que o Veiga era director geral do futebol do Benfica com o Luís Filipe. Bem, perguntei-lhe como é que era, se me arranjava clube ou não. Disse-lhe até que gostava de ir para o estrangeiro para conhecer outra culturas e para jogar. Ele ligou-me, eu estava de férias, se não me engano no Brasil, “João, já tenho clube para ti. É o Charlestown, um clube inglês”.
Mas não vai para Inglaterra.
Quando chego de férias e vou ter com o Veiga, ele começa a dizer que afinal as coisas não tinham corrido bem com o Charlestown, que eles tinham desistido, mas que já tinha outro clube para mim. Fiquei chateado. “Então o Charlestown volta atrás e você não me diz nada? Arranja outro clube e não me diz nada?”. Entretanto bateram à porta e quem entra? O presidente do Sp. Braga, cujo treinador era Jesualdo Ferreira. Cumprimentei-o educadamente, começámos a falar e ele: “João sabes que sempre te admirei, já quando estavas no FCP. E sabes que o treinador é o Jesualdo e que vamos ter um estádio novo”, foi naquela época do Euro 2004 e dos estádios novos. Fiquei sem saber o que havia de dizer. Só que se há uma coisa de que não gosto é de mentiras. Não gosto, sempre fui leal, direto e sempre disse ao Veiga para nunca me mentir. Resultado, virei-me para o presidente do Sp. Braga: “Presidente fico muito orgulhoso de saber essas coisas e que você está interessado em mim, mas eu preciso de pensar. Vou ser muito franco, não estava à espera. Não é nada contra o Sp.Braga, que é um excelente clube, está em crescimento, a cidade também, mas neste momento também vou ser muito sincero, a mim foi-me dita outra coisa. Não é, senhor Veiga?”. Disse mesmo assim. O presidente Luís Filipe Vieira ainda me diz: “João pensa bem, vais lá para cima, tens mais dois ou três anos com o Sp. Braga, que é um bom clube, e tu também já estás numa idade que não podes pensar muito...” Agradeci o cuidado, despedi-me, pedi ao Veiga para vir comigo e meti-o dentro de outra sala: “Você nunca mais me faz isto. Eu só não disse 'não' à frente dos presidentes por respeito. Mas eu não vou para o Braga. Não é que o Sp. Braga não seja um grande clube e amanhã até posso estar muito arrependido de não ter ido mas não vou acima de tudo porque você falhou comigo, não teve palavra comigo. Como você me mentiu, como não teve princípio comigo, eu não vou”.
Qual foi a reacção dele?
Começou a dizer que não tinha mais ninguém, que estava difícil, que o futebol estava a mudar… Depois apareceu-me com um clube francês, o Saint-Étienne. Disse-lhe que podia avançar. Mas não avançou com nada. Entretanto estive alguns dias com o presidente do Braga sempre a ligar-me a tentar convencer-me a ir, ligou o Jesualdo Ferreira também a tentar convencer-me, mas insisti na minha: “Mister, custa-me muito dizer não e até posso dar um passo para trás, mas não posso aceitar o que fizeram comigo”. Hoje confesso que estou arrependido e que devia ter ido.
Mas como é que aparece então o Murcia?
Através do Futre. Sou amigo dele. Estivemos juntos na selecção e o Futre é um companheiro fantástico. Estive lá seis meses, mas não foi muito bom. Fui sozinho, a família ficou cá porque tinha os miúdos na escola e por seis meses achamos que não valia a pena mudar. Depois do Murcia aparece o FC Sion, da Suíça.
Como? Através do Veiga?
Não, já não estou com o Veiga nessa altura. Conheci um empresário italiano quando estava no Benfica e é ele que me faz esta proposta. Associei o FC Sion ao Carlos Manuel que esteve lá, e assinei um contrato de três anos. Cheguei lá e foi um bocadinho como no Porto. Apresentaram-me um contrato muito bom, realmente é uma realidade diferente, a gente pensa que a Suíça não faz grandes contratos, mas neste caso foi muito bom para mim, ainda por cima em final de carreira, 29, 30 anos. Depois acabei por assinar mais um ano.
A família foi consigo?
Foi, foi toda comigo.
Como é que foi a adaptação, à língua, um país diferente?
Foi uma experiência muito boa. Uma cultura fantástica. Adoro Portugal, mas viver na Suíça é outro mundo. Não podemos comparar. Há um respeito muito grande. Ao início fazia-me confusão, as pessoas deixavam a chave do carro na ignição e iam para o café descansados. Todas as pessoas na rua diziam “Bonjour”. Tem a ver com a educação. Quanto à língua, foi difícil no primeiro ano, a minha sorte é que tinha dois brasileiros na equipa que sabiam falar francês e que iam traduzindo. O clube também arranjou um professor e começamos facilmente a falar francês. Os miúdos adoraram lá estar.
Foram para a escola inglesa ou francesa?
Francesa. As crianças têm uma capacidade fantástica para aprender. Em dois ou três meses já falavam francês. Eu só ao segundo ano é que comecei a falar algumas coisas.
Desportivamente foi bom?
Sim. Levei alguns jogadores para a Suíça. Perguntaram-me sobre o Carlitos e eu disse “tragam já o Carlitos que é um grande jogador e vai dar-nos uma grande ajuda”. Depois trouxe também o central, o angolano Kali. Muitos jogadores que foram de Portugal para lá, fui eu sempre que dei o aval, mesmo até jogando na minha posição. O meu segundo ano foi uma época fantástica, ganhámos a Taça da Suíça. Foi a primeira vez na história do futebol da Suíça que uma equipa de 2ª divisão ganhou. Mas o presidente não era fácil de lidar. Só para ter uma ideia, em três anos, tive 12 ou 13 treinadores. É um presidente apaixonado, mas é um louco e quando não há resultados em três ou quatro jogos vem outro treinador. Toda a gente conhece o Christian Constantin, é uma pessoa com uma personalidade muito forte. É um homem que gosta muito do clube e faz muito pelo clube.
Mas é na Suíça que tem a sua primeira grande lesão?
É, na minha terceira época parti a anca e estive sete meses a fazer recuperação. Voltei para a minha última época. As coisas começaram a correr bem, não sentia dores, mas depois aquilo tornou a agravar e eu disse “basta”. Tive uma reunião com o presidente e disse-lhe: “Eu não quero enganar ninguém, temos que arranjar aqui uma solução”. A solução que ele arranjou rapidamente foi: “João vais ser treinador da equipa dos sub-21”. E fui.
Já tinha curso de treinador nessa altura?
Não, não tinha. Ele meteu-me como delegado ou outra coisa qualquer e eu fui treinar. Faltavam sete ou oito meses de contrato.
Custou-lhe pendurar as chuteiras?
Custou mas acho que custava mais se estivesse em Portugal. Depois vim para Portugal, onde comecei a tirar o meu curso de treinador e fundei uma Academia de Futebol.
Onde?
Quando regressei fui passar umas férias com os meus pais, que são de Tarouca, e fui desafiado pelo presidente da Câmara Municipal. E durante quatro ou cinco anos tive uma Academia por aqueles lados. Ajudei muitas crianças, foi um trabalho muito bonito. Enquanto estava com a Academia fiz os meus cursos de treinador e fui treinador principal no Cinfães. Depois voltei à Suíça e treinei um clube suíço, Martigny-Sports. Mas fui sozinho. Depois fui para o Brasil. Recebi um convite para ir para a Portuguesa dos Desportos ser o coordenador da formação toda e também um dos directores desportivos. Só que as coisas não correrem bem porque estavam numa crise profunda financeira, os diretores começaram a demitir-se um a um. Antes de partir para o Brasil, um director demitiu-se, quando vou a caminho, no avião, há outro que se demite e quando lá chego só sobrava o presidente que era quem me tinha contratado e que depois também se demitiu. Fiquei numa situação muito complicada. Vim embora. Estive lá uma semana e um dia.
Quando regressa vai logo para o Algarve?
Eu já estava no Algarve, já tinha casa em Tavira, onde vivo. Fui desafiado por uma pessoa do Moncarapachense. Ouvi a história do clube, que não era muito boa porque já há mais de 40 anos que não estava nos nacionais, tinha um campo de futebol sintético, é uma vila muito pequenina... O Algarve ainda está em crescimento em termos de futebol, há pouca gente a ir ver futebol. Mas aceitei o desafio.
Conheceu outra realidade, a dos jogadores/trabalhadores...
Sim, isso custa, tinha essa noção de que ia trabalhar à noite, porque os jogadores trabalhavam. Depois não conheces ninguém. Mas as direcções foram espectaculares, ajudaram-me muito. Começámos a trabalhar em Abril para a época seguinte. Eu adoro trabalhar, seja no Benfica como no pior clube do mundo, mas vou tentar fazer o melhor.
E correu bem?
Correu bem mas foi muito difícil porque o alvo a abater era eu. O Moncarapachense é o único clube do Algarve que não tem bancadas. Se calhar muita gente não queria que estivesse na divisão dos nacionais. Não tem condições, campos relvados, campos com história, com uma estrutura mais elevada e mais profissional.
É por isso que chorou quando ganhou o título?
Foi muito difícil. Eu senti, principalmente no último mês, a minha equipa muito cansada. Comecei a sentir a equipa muito abatida, ou melhor, a ser abatida por parte de alguns árbitros. Sentia que estávamos a ser prejudicados, sentia que tínhamos dois ou três clubes rivais fortíssimos com outra estrutura a quererem o nosso lugar.
Quem são esses clubes?
O Ferreiras, que este ano subiu, tem uma boa estrutura, tem um bom campo e uma boa equipa. O Quarteirense, uma equipa onde se fez um investimento brutal. São só jogadores colombianos, é uma equipa muito jovem, mas com alguma experiência.
Ganha mas vem embora, Porquê?
Porque, como disse, foi uma época muito sofrida, de muito trabalho. Sabe o que é passar uma época toda em 1º lugar e chegar à última jornada e ir para 2º lugar? Sabe o que é isso? Imagine essa semana o que é que tive que fazer com os meus jogadores para acreditarem, para os meus directores acreditarem. Ninguém acreditava, ninguém. E eu tinha que fazer alguma coisa. Por curiosidade, íamos jogar o último jogo em casa contra o 1º. Era uma final e tínhamos que ganhar. Para eles bastava empatar. Começámos por marcar 1-0, depois eles empataram, faltavam 20 minutos para acabar. Ganhei 3-1 porque tive que mexer no jogo e correu bem. Aquele choro... Parece que eu tinha algumas 50 pessoas em cima de mim e, quando ganho, veio tudo cá para fora.
Sai porquê?
Porque a época a seguir não começa bem. Não sabia se ia ficar, se ia sair, começámos a preparar a época um bocado tarde e fiz o primeiro jogo mais cedo, porque íamos ter a Supertaça do Algarve. Não nos preparámos, não tínhamos equipa. Eu deixo o clube a meio da época. Saio bem, não saio chateado, só que infelizmente o clube desceu de divisão.
Quando sai vai logo para o Lusitano?
Sim, duas semanas depois recebo um telefonema do director desportivo do Lusitano, fui. Quando cheguei ao clube tinha quatro pontos com dois meses decorridos e foi complicado, mas consegui ganhar jogos, só que depois meteram-se problemas internos, parecia que já toda a gente queria ser treinador, e pensei “espera aí que já devo estar aqui a mais”. Acredito que a melhor opção foi ter saído.
Mas sai pelo seu pé ou porque eles o mandam embora?
Porque eles disseram: “Se calhar João...” E eu: “Ok, saio já”.
Está desempregado?
Neste momento não tenho clube, estou à espera de projectos. Tive a proposta de um clube mas não posso cometer os mesmos erros.
Neste momento os seus filhos estão com que idade e fazem o quê?
Com 22 e 20 anos. O mais novo, o Hugo, está a jogar no FC Sion. O mais velho está na restauração, é cozinheiro e gosta muito.
Ao longo dos anos onde é que ganhou mais dinheiro?
No FCP.
Além da academia meteu-se em mais algum negócio?
Meti-me num negócio de vestuário e confeitaria. Mas já não tenho. Entretanto fui para a Suíça, deixei entregue a pessoas que pensei serem de confiança e deram-me cabo daquilo tudo.
Os seus filhos nunca reclamaram por “andar com a casa às costas”?
Não. Se hoje for perguntar-lhes onde é que gostaram mais de viver, foi na Suíça. Têm lá grandes amigos.
Quais foram as amizades maiores que fez no futebol?
Foi com o Andrade, com quem ainda hoje mantenho contacto. Falo muito com o Jorge Costa, aprendi muito com ele, somos muito amigos. O Domingos. Acho que são estas pessoas.
Dos títulos todos que conquistou, qual foi o que gerou uma emoção maior?
Todos têm um momento, todos têm uma história. Mas para mim especial mesmo acho que foi como treinador, quando subi de divisão, porque é diferente, tu vives uma pressão tremenda, é muita gente à tua volta. Quando é uma equipa que ganha e és jogador, estás focado. Uma equipa são muitos jogadores lá dentro. Agora o grande responsável e o grande sofrimento é do treinador. E eu hoje sei o que é. Muitos treinadores diziam: “Um dia se forem treinadores, vão perceber o que a gente sofre aqui. O que a gente trabalha”. E é verdade. Por isso quando me pergunta qual foi o momento mais especial, para mim foi como treinador. Porque foi muito difícil, foram desafios muito grandes e tu tens que arranjar soluções.
Qual é a sua maior ambição a nível profissional?
Treinar, a minha missão é treinar e chegar a um patamar alto. Seria hipócrita e estúpido dizer que não gostava de treinar um clube da 1ª divisão. Mas também não posso dizer que não gostava de treinar o Benfica. Claro que gostava, mas tenho que saber em que nível é que estou. Agora a minha ambição máxima é treinar uma equipa da 1ª divisão.
Qual foi a maior loucura que fez com dinheiro?
Comprei um Porsche.
Ainda o tem?
Não. Eu ganhei algum dinheiro, mas não me saiu o Euromilhões. Hoje a indústria do futebol é um bocadinho diferente. Hoje é fácil ganhar-se muito dinheiro. Quando eu tinha 18, 19 anos não se ganhava o que os miúdos hoje ganham. Portanto a maior loucura que fiz foi ter comprado um Porsche. Lembro-me de um brinquedo que o meu pai me deu, um Porsche verde do tamanho do meu dedo. Era o carro dos meus sonhos, desde pequenino.
Dos tempos do Porto, é verdade que os jogadores são hiper controlados pelas pessoas da cidade? Sentiu isso?
Claramente. O presidente e os directores não precisavam de sair à noite. As próprias pessoas dentro das discotecas, os donos das discotecas informavam, não havia hipótese.
Viveu alguma situação chata?
Não, porque nunca gostei muito de sair ou quando saía, saía com a mulher. Um atleta tem que perceber qual a altura certa e o momento certo para sair. O gajo que não foi convocado ou que não joga e vai sair à noite, está a dar um tiro nos próprios pés porque é sempre mais fácil bater nos mais fracos.
Tem algum hobby?
Não. Gosto de ouvir programas desportivos. Adoro cinema.
Tem algum filme de eleição?
A “Lista de Schindler”. O meu actor preferido é o Anthony Hopkins.
Qual foi a situação mais caricata que viveu no futebol?
Talvez tenha sido quando o presidente do FC Sion bateu num árbitro mesmo à minha frente. Foi num jogo fora, que precisávamos de ganhar. O árbitro não esteve muito bem nesse jogo, é verdade, mas quando o árbitro apita o final do jogo, vai ao centro do terreno e vejo o presidente a entrar pelo campo adentro em direcção ao árbitro e... Eu nunca vi ninguém bater tanto num árbitro, no chão, a dar-lhe tanto pontapé. Eu era o jogador que estava mais perto, mas não consegui ter reacção. Fiquei colado ao chão. Não conseguia reagir. Depois veio a polícia e acabou com aquilo. Claro que ele foi castigado. Mas tenho outra história engraçada, no Belenenses e que mete o Ronaldo, o Fenómeno.
Conte.
Foi num jogo de apresentação do Belenenses, com o clube brasileiro Cruzeiro. Na noite antes do jogo foi comunicado que ia haver uma chuva de estrelas, uma coisa inédita. Eu na altura tinha 20, 21 anos, já tinha namorada, peguei nela e fui para a Fonte da Telha, para ver a chuva de estrelas. Ficámos lá toda a noite acordados à espera da chuva de estrelas e nada, nem uma. No dia seguinte, antes do jogo com o Cruzeiro, onde jogava o Ronaldo, o Fenómeno, o Abel Braga veio falar comigo: "João, atenção vais jogar contra um miúdo que tem 17 anos, mas que é um fora de série, muito rápido e muito tecnicista. É preciso ter alguma atenção." Eu, sinceramente, não liguei muito, embora ele falasse num miúdo que já tinha provas dadas no Brasil. Eu não sabia quem ele era e não liguei. Depois de uma noite em que quase não dormi nada, só dormi um pouco durante o dia, pensei que ia ser tranquilo. No aquecimento até perguntei quem era o tal miúdo. Olhei para ele, era franzino. Entretanto o jogo tem início e só sei que quando chegou ao final da 1ª parte eu já não sabia para onde havia de me virar. O Abel Braga vem ter comigo: "Então pá?" "Ó mister, o gajo realmente é muito rápido" (risos). Tive muitas dificuldades em segurar o miúdo, porque era um fora de série. "Eu avisei-te, disse que era assim. Por isso, vais sair." E saí, não joguei mais nessa partida. Perdemos 2-0, ambos marcados na 1ª parte, se não me engano, ele marcou o 2º golo e eu tive alguma responsabilidade. Estive alguns jogos sem jogar, porque eu desvaslorizei aquilo que o treinador disse, comprometi a equipa, mas acima de tudo foi uma lição para mim."
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