"Durante o PREC e nos anos seguintes, qualquer discordância política, cultural, pessoal ou outra era resolvida com o derradeiro insulto: “fascista”. Ninguém se preocupava muito com o rigor mínimo na utilização do termo, quer fosse na sua definição ideológica mais estrita ou na sua caracterização política mais abrangente. Tudo o que não correspondesse às indiscutíveis verdades daquele tempo entravam nessa enorme gaveta onde cabiam milhões de fascistas.
No inicio deste século, um outro termo passou a definir tudo o que não se conforme com o discurso dominante: “populista”. Ninguém perde muito tempo com o que quer realmente a palavra dizer. Ela tanto pode caracterizar alguém que diz coisas facilmente populares, que proponha coisas que outros considerem impossível de fazer, que seja muito radical, que divida os conflitos entre elite e povo, que acredite na luta de classes, que seja contra a globalização ou contra o projecto europeu ou contra a imigração ou contra o capitalismo financeiro. Tudo cabe nesta enorme caldeirada conceptual que, em vez de ajudar ao debate, apenas o torna mais nebuloso. De tal forma que o termo tem sido usado, em quase todos os textos e declarações públicas de analistas e jornalistas, para caracterizar um dirigente desportivo.
A palavra “populismo” não é, nos Estados Unidos, depreciativa (também não o é a palavra “revolucionário”). E não tem de ser. Na América Latina o populismo foi um fortíssimo instrumento de integração da maioria popular no processo político e de combate ao privilégio, de que Getúlio Vargas foi um bom exemplo. Na realidade, o nojo pelo “populismo” corresponde, em muitos casos, a uma inconfessável repulsa por políticas populares. Como escreveu Francis Fukuyama, insuspeito da minha simpatia, “populismo é o termo que as elites usam para as políticas de que não gostam, mas que a gente comum apoia”.
Há diferentes populismos, mas todos eles alimentam (ou exibem) clivagens sociais profundas existentes na sociedade. O populismo de direita, representado por Le Pen, Trump ou o UKIP, contrapõe o povo à elite e procura as responsabilidades num terceiro grupo, quase sempre excluído: imigrantes, refugiados, minorias étnicas e religiosas, beneficiários de apoios sociais. O de esquerda, representado por pessoas como Bernie Sanders ou Mélanchon, contrapõe o povo às elites económicas, usando a eficaz fórmula “99% contra 1%”. Uns e outros ganharam força com o processo de globalização, seja pela intensificação dos ciclos migratórios seja pela intensificação dos fluxos financeiros e comerciais. Mas uns e outros são estruturalmente antagónicos. Seja como for, o seu discurso afirma a existência de uma fronteira que define um “nós” e um “eles”. Em sociedades profundamente desiguais, esse “nós” e esse “eles”, com uma fratura inultrapassável entre os dois, é fácil de explorar porque é absolutamente real.
Por fim, o populismo pode corresponder a lideranças caudilhistas que, dependentes do carisma do líder, dispensam todas as formas de intermediação política, empurrando as democracias para formas autoritárias de poder. Também a América Latina é pródiga neste tipo de fenómenos, à esquerda e à direita.
Assumindo todas estas definições de populismo, e pondo de lado a informalidade com que se usam termos políticos para caracterizar pejorativamente tudo o que nos desagrada, chamar Bruno de Carvalho de “populista” ou não chega a ser uma crítica ou é um total absurdo. Bruno de Carvalho pretendeu representar um sentimento “popular” dos sócios contra as “elites” do clube? Pode dizer-se que sim e a improvável “luta de classes” no Sporting está traduzia na expressão “croquetes” e bem representada pela ideia peregrina de que uma carta de um “grupo de notáveis” pode sobrepor-se à vontade dos sócios, que desconhecemos neste momento qual seja. Se isso é “populismo”, seria uma coisa boa. Mas convenhamos que é preciso forçar bastante a nota para transportar de forma tão linear para um clube dinâmicas dos confrontos sociais e políticos. E mesmo que tal fizesse sentido, sabemos como Bruno de Carvalho acabou por não afrontar nenhum desses poderes, mantendo-se dependente da opacidade financeira de pessoas como José Maria Ricciardi e Álvaro Sobrinho, que o apoiaram. A essa capitulação ele chamou, na sua extraordinária (no pior sentido do termo) conferência de imprensa, de “hipocrisia”.
Se o populismo de Bruno de Carvalho resulta do facto dele alimentar uma clivagem entre “nós” e “eles”, então basta ficarem-se pelo óbvio: ele é presidente de um clube. Os clubes, como fenómenos tribais, vivem disso mesmo. Se usamos a expressão “clubismo” como uma critica a certas formas de comportamento político faz pouco sentido esperar que o “clubismo” propriamente dito manifeste, mesmo como metáfora da vida em sociedade, características opostas às que são da sua natureza. Na divisão tribal entre “nós” e “eles”, Bruno de Carvalho é tão populista como Pinto da Costa ou Luís Filipe Vieira. Lidera uma tribo que se assume como uma tribo que combate, esperemos que de forma limpa e seguindo regras éticas, outras tribos. É disso que vive o fenómeno do futebol. Se lhe começarmos a aplicar conceitos políticos acabamos a exigir-lhe uma racionalidade que não pode ter.
Por fim, se a questão é Bruno de Carvalho dispensar estruturas intermédias que sejam um contrapeso ao seu poder, também aí é igual aos presidentes dos outros grandes. Na realidade, mais por características do clube do que do presidente, Bruno de Carvalho até concentra em si menos poder do que Pinto da Costa ou Luís Filipe Vieira. No Sporting nunca deixou de existir oposição, no Benfica ela é irrelevante e no FC Porto inexistente. Em qualquer um dos três grandes há um sistema totalmente presidencialista, em que os líderes falam directamente aos sócios e adeptos e as estruturas de controlo são quase decorativas.
O que me preocupa na utilização do termo “populista” para definir Bruno de Carvalho não é o bom-nome do presidente do Sporting, que esse não tem salvação possível. Acho que ele é muito menos – na racionalidade do seu comportamento – e muito mais – no dano que causa à instituição – do que isso. Preocupa-me a falta de rigor de pessoas que moldam a utilização da linguagem no espaço público à sua vontade circunstancial e a redução de todos os conceitos a meros insultos. O que me irrita na utilização da expressão “populista” a torto e a direito é o mesmo que me irritaria a utilização da expressão “fascista” para definir tudo aquilo que se afastava da norma em meados dos anos 70: é a estupidificação maniqueísta do discurso público e o abastardamento de conceitos políticos."
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