"É preciso repetir que não há clubes imaculados. Todos têm telhados de vidro, ainda que não feitos do mesmo material.
Bendito fim-de-semana, este que aconteceu. E tenho esperança que também o próximo, embora já haja jogos da Taça de Portugal. E porquê? Não houve fake golos, meios-golos, foras-de-jogo milimétricos, encostos e encostas, erros e desacertos, logo, menos matéria-prima para a discussão que alimenta e atormenta o nosso futebolzinho...
Neste domínio, é preciso repetir que não há clubes imaculados. Todos têm telhados de vidro, ainda que não feitos do mesmo material. A ideia pateta que o clube A dá lições ao clube B e vice-versa não resiste ao mínimo teste de coerência e sensatez. O que hoje se defende, amanhã se contraria. O que hoje se nega, amanhã se afirma. O que agora é notável, depois é reprovável. O que então se afastou, mais tarde se aproximou. Nunca como agora se sente que estamos mais perto do precipício. É imperativo afastar esse perigo, sem que tal anule ou esbata o elemento genético desportivo que é vencer e reduza o natural apego e defesa civilizada dos clubes.
Hoje, no meio de tanta poluição visual, sonora, campal e retórica, olho para o que, para mim, ainda há de bom no futebol cada vez mais autofágico, senão mesmo patológico. Eis fez exemplos:
1. Os pequenos clubes, mesmo na divisão principal, que, tantas vezes, lutam silenciosamente por não desistir, apesar de ignorados, marginalizados e condicionados. Para eles não há lugar a lamúrias de arbitragem, de marcações dos dias dos jogos. Ou se as houver, não chegam a lado nenhum, a não ser a um ignorado rodapé perdido na selva do totalitarismo dos maiores clubes.
2. A larga maioria dos jogadores de futebol profissional em Portugal que, abnegadamente, são dignos do ofício que sonharam e escolheram no apogeu da sua juventude, tantas vezes com atrasos no recebimento dos seus magros proventos quando comparados com as (poucas) dezenas de ordenados fabulosos. São estes atletas que correm tanto ou mais do que a elite, ora preocupada com a carteira, ora com a transferência, ora com a vida social, ora com as tatuagens, acessórios e penteados, sempre mimada e apaparicada.
3. A maioria dos árbitros portugueses que, com erros, como é inevitável, dão prova de serem muito mais sérios e profissionais do que a maioria dos dirigentes dos clubes. Elogio a sua coragem num tempo em que só o facto de se ser árbitro é motivo de desconfiança, insinuação e soezes ataques pessoais. Imagino o que sentirão, depois dos jogos, ouvindo entre críticas legítimas e serenas, a atoarda ininterrupta sem o mínimo de respeito e cautela.
Aliás, quando vejo jogos lá fora, observo erros por vezes muito mais gritantes e até difíceis de entender, como por exemplo nos campeonatos espanhol, italiano e até inglês. E nas provas europeias, o que se diria por cá se erros como os que prejudicaram o Benfica na final contra o Sevilha, numa eliminatória na Luz contra o Chelsea ou, está época, em Manchester ou contra o CSKA, ou contra o Sporting em Schalke e muitos outros fossem reproduzidos no nosso campeonato?
4. O presidente da Federação Portuguesa de Futebol que, contra ventos e marés, escolheu um itinerário sério para credibilizar o futebol nacional, infelizmente logo rasgado por quem se deveria preocupar mais com a sustentabilidade da actividade e o reforço ético do seu desenvolvimento do que com constantes atoardas para consumo mediático.
5. Os dois estádios mais bonitos de Portugal - a Luz e o Dragão - candidatos a acolherem finais europeias de clubes. Através deles, o nosso país futebolístico mostra ao mundo que não é por falta de infraestruturas bem concebidas, apetrechadas e seguras que atravessamos uma fase deprimente do ambiente em redor deste desporto.
6. A grande maioria de quem vai aos estádios que merece ser respeitada pelo seu desportivismo aliado a uma saudável militância clubista, isto apesar de uma sempre presente escassa minoria de energúmenos que espalham impropérios, insegurança e acirram os ânimos de uma maneira por demais desproporcionada.
7. Alguns poucos programas de televisão sobre o futebol português (sobretudo na televisão pública e em canais temáticos de desporto) que vão para além da semana, que são contidos sem amordaçarem o natural entusiasmo dos comentadores e têm jornalistas com a sageza da equidistância, e equilíbrio da contenção e a competência de nos porem a reflectir e a ver mais longe.
8. O Plano Nacional para o Ética no Desporto liderado por José Carlos Lima, que teima em, pedagogicamente, tomar iniciativas louváveis, fomentadoras de exemplaridade desportiva, e de boas práticas seriamente estudadas. Refiro-me, por exemplo, ao Cartão Branco Fair Play e, ao projecto Bandeira da Ética, apresentado na segunda-feira, como «um processo de certificação dos valores éticos no desporto, dirigido a clubes, escolas, projectos ou qualquer outro tipo de iniciativas e entidades que queiram ver reconhecido e certificado o seu trabalho no âmbito da promoção dos valores éticos através do desporto». Pena é que iniciativas destas tenham um milésimo da atenção dos media face a uma qualquer bojarda na oralidade futebolística.
9. A política de formação dos principais clubes, que tem proporcionado bons resultados desportivos e humanos, e que tem demonstrado cabalmente que esta aposta é, a prazo, retribuidora e ganhadora.
10. E, the last but not the least, o notável trabalho e resultados da selecção portuguesa de futebol, liderada por Fernando Santos, um senhor, um homem bom e eticamente irrepreensível, um português exemplar e um líder com elevado sentido humanista.
Não sei se o desporto, futebol em particular, está de pernas para o ar ou de cabeça perdida. Seja qual for o diagnóstico ajustado para o momento, uma coisa é certa. Precisa que quem tem responsabilidades directivas, técnicas, desportivas, mediáticas, associativas, cívicas não atire mais achas para a fogueira. É que haverá o dia em que já não há retorno e, com a esperteza do oportunismo, os causadores da desgraça desaparecerão como se nada tivesse sido com eles.
Contraluz
- Palavra I: Matematicamente
Embirro com este advérbio pouco matemático. Acho-o até depreciativo para quem o diz e para quem se dirige- «Enquanto for matematicamente possível...» está para as competições como as sondagens para os derrotados. Acontece que a suposta possibilidade da matemática é o modo não assumido da impossibilidade da realidade. Como alguém disse, «na matemática, para saborear com prazer o fruto é preciso conhecer bem as suas raízes». Mesmo que raízes quadradas...
- Palavra II: Toalha
«Ainda não atirámos a toalha ao chão» é a medida higiénica da não aparência de desistência. Não atirar a toalha ao chão, pressupõe, desde logo, que haja toalha. E que haja toalheiro. É uma frase para se evitarem outras formas de se atirar. Por exemplo, atirar a primeira pedra, ser atirado às feras, ou atirar à cara dos jogadores o insucesso, embora os adeptos não possam atirar o dinheiro à rua, mesmo que, às vezes, atirem com tudo ao ar (incluindo a toalha). No fundo, diferentes modos de atirar o barro à parece...
- Número I: Mais cinco!
Nada melhor que as Arábias (neste caso Saudita) para mais uma catrefada de neófitos internacionais. A (escrevi propositadamente A, porque me lembrei das antigas selecções B, onde muitos agora A nem a ela teriam chegado). Edgar Ié, Kevin Rodrigues (certamente por falta minha, não sabia da sua existência), entre outros, eis os novos A.
- Número II: 127
Segundo li no Público, chegámos aos 600 internacionais, dos quais 127 só o foram uma vez. É caso para se dizer, mais vale ser internacional A uma vez do que apenas nacional toda a vida. 127 jogadores dariam para constituir quase 12 selecções! É obra.
- Moda: Lesões (?) antes de jogos das diversas selecções...
... estão a fazer escola. Lesões tão aparatosas e oportunas no campo, como logo tão misteriosamente recuperáveis no ginásio"
Bagão Félix, in A Bola
PS: Duas notas:
- verdade não há clubes imaculados, mas cuidado com as comparações... passar uma estrada fora da passadeira é crime, mas não está, nem nunca estará, no mesmo patamar de um assassino!
- José Carlos Lima, pode ser muitas coisas (não o conheço pessoalmente), mas a sua participação como colunista neste jornal durante alguns anos, deixou um registo pejado de anti-Benfiquismo primário, ao nível de um qualquer Babalu...!!!
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