"Jogar no distrital nos vários escalões de formação foi uma escola de vida. Uma experiência mais que desportiva. Foi o primeiro curso intensivo de sociologia, antropologia e filosofia: aprendi sobre as dinâmicas de grupo, de extractos sociais, de saber quando ouvir e falar, de respeitar hierarquias e questioná-las quando necessário.
Tive a sorte de apanhar técnicos, directores, massagistas e roupeiros com grande formação humana, que compensavam a rudeza das falas e dos gestos com enorme coração. Lembro-me, por exemplo, de um treinador que dava prémios do próprio bolso para aqueles que tivessem uma folha disciplinar limpa. A expressão fair play não se usava, mas havia o conceito, apesar da malícia que usava naqueles pelados. Afinal, era o distrital.
Mas também me recordo das equipas cujos jogadores eram instigados por treinadores, directores e público para as práticas sujas, para fazerem a vida negra ao árbitro, começando pela idade falsa de muitos deles. Recordo-me,numa partida de juvenis, de ouvir um tiro para o ar de uma multidão em fúria por causa de três decisões do juiz (que teve de ser posteriormente escoltado por um batalhão da GNR) que nos permitiram passar de um 2-3 para um 4-3. Repito: um jogo de juvenis.
Não fico, por isso, surpreendido com as agressões que por aí existem aos árbitros nas provas amadoras. A diferença é que hoje os telefones filmam e partilham os horrores do dia a dia. Nos campos ou nas escolas. A justificação encontra-se lá atrás na linha do tempo e só com muita pedagogia e saltos geracionais haverá uma inversão.
É verdade que em mais de 20 anos melhorámos em alguns comportamentos cívicos (nas filas de supermercado, nas estradas, nas praias) mas continuamos a estimular, no café ou na timeline, os discursos de ódio que semana após semana alimentam a clubite e deixam o verdadeiro futebol passar fome. Haverá cura para esta doença?"
Fernando Urbano, in A Bola
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