"Ainda a propósito dos 80 anos de Pelé, cumpridos no dia 23 de Outubro, e o fantástico Benfica 2-5 Santos para a segunda mão na Taça Intercontinental de 1962. Lisboa pôde ver todo o talento de Edson Arantes do Nascimento em todo o seu esplendor.
O próprio Edson Arantes do Nascimento (por extenso, Pelé, como dizia o grande cronista brasileiro Nelson Rodrigues) guardava com carinho, na memória, a noite impressionante da Luz de 11 de Outubro de 1962. O que o crioulo fez em Lisboa entrou para a lenda. Sofreu o Benfica, mas os grandes clubes têm a sua história ligada a vitórias e a derrotas memoráveis, e por aí se mede a sua grandeza. Pelé foi divino. E Deus vê-se nos pormenores.
Toda a imprensa internacional veio de cambulhada para Lisboa. O Benfica-Santos era o jogo dos jogos!
E era Eusébio contra Pelé também. Um duelo que se prolongou ao longo dos tempos, ora a favor de um, ora a favor do outro.
No estádio, em redor do estádio, o espanto, a surpresa, a estupefacção.
Gabriel Hanot: mestre do jornalismo, figura máxima do L'Équipe, pai da Taça dos Campeões Europeus, autoridade máxima na crítica do futebol. Hanot tinha um fascínio imenso pelo Benfica. Era, nessa noite, um francês desiludido: 'Custa dizê-lo, mas o Benfica perdeu porque jogou mal. E porque Costa Pereia, sem posição na baliza ou fora dela, sem segurança de mãos, também ajudou ao descalabro. Em segundo lugar, o Benfica não demonstrou ter conjunto. Não encontrou o seu estilo de jogo e que eu já vi em outras ocasiões. Julgo que José Augusto, a quem já considerei o melhor extremo-direito da Europa, não está em forma. Há dois anos era o n.º 1. Agora, pelos vistos, teve uma queda vertical. Os dois interiores, Coluna e Santana, também não cumpriram. Eusébio foi, quando a mim, o único jogador do Benfica ao nível da classe dos jogadores dos Santos. Também a revelar categoria esteve o n.º 11, Simões, com os seus raides velozes a caminho da grande área contrária, obrigando a defesa brasileira a conceder cantos em série. Já vi os campeões da Europa jogaram na Dinamarca, em Viena, em Berna; vi os jogos que fizeram contra o Tottenham e o Real Madrid. Pois bem, o Benfica fez contra o Santos a mais fraca das exibições que tive ocasião de presenciar'.
Era preciso um daqueles habituais Benficas monstruosos para bater o Santos. E o Benfica não conseguiu sê-lo.
Vai, minha tristeza...
O João Gilberto cantava Jobim:
'Vai, minha tristeza
E diz a ela
Que sem ela não pode ser...'
A tristeza encarnada tomou conta da Luz.
Carlos Pinhão, outro dois monstros sagrados do jornalismo: 'Apetece dizer: «Com Pelé não vale...» Um desafio é uma coisa, Pelé é outra. Com Pelé de uma lado, não há desafio, não há despique, não há equilíbrio possível. Apetecia acrescentar: «Tirem Pelé e venham, então, jogar com o Benfica...» Em Pelé tudo é simples, tremendamente simples e... fácil. Ele é apenas uma perna que se estica, um pé que se dobra, um pescoço que sobe, um tronco que se estende. Um tropeção na bola que faz com que ela siga à frente do negrito; um toque que leva o esférico a contornar, a dois milímetros de distância, o bico da bota do adversário (sem que este possa estender o pé ao menos mais um milímetro); um acelerar de segundos, que faz passar aquele 'veículo' da bola de 40 para 100 quilómetros à hora em cinco metros de terreno, e aí está Pelé, o magnífico Pelé, em frente de um guarda-redes, ora perguntando-lhe por onde que passe a bola, ora dando-a, em bandeja de prata, a um companheiro de equipa para que este gaste apenas a tinta do ponto final... Pelé é único. E chamar-lhe monstro, rei, santo, que sabemos nós desta desenfreada ânsia de o exaltar, é sempre tarefa inacabada. Pelé é Pelé. Não se caracteriza, não se retrata, não se define. No caso do Benfica, deste infeliz Benfica de anteontem à noite, sofre-se, apenas se sofre'.
Prosa extraordinária. Tenho pena de não ser minha, de não ter talento para tanto. Mas sirvo-me a si, leitor, na bandeja de prata de um dos momentos mais extraordinários a história do futebol de todos os tempos. O Benfica perdeu, é certo. E a derrota foi dura. Mas estava lá. Estava no lugar que é seu: no ponto mas alto da lenda!"
Afonso de Melo, in O Benfica
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