"Era Natal, as razões para lembrar meu Pai não deixaram nada ao acaso - dobraram a parada! Além da enorme nostalgia que me invade recordando a Consoada dos Machados em casa dos meus avós paternos, a Câmara de Famalicão e o Museu Bernardino Machado tiveram a (justa) gentileza de baptizar com o seu nome a sala de conferências, e dei comigo hipnotizado por placa e nome,
'por que o não tenho aqui?'.
Não há duas sem três, diz o povo, o Sílvio desafiou-me para escrever na Mística, decidi dar razão ao ditado, afinal sou um conservador de esquerda, ainda gosto de pensar que um dia será o povo a mais ordenar. Meu Pai era portista e sócio. Jogara nos infantis e era detentor de um pé esquerdo temível, mas os centímetros tinham-lhe virado as costas e o treinador decretara-o incapaz de suportar os choques (quem sabe se não perdemos um precursor do Chalana vestido de azul e branco?). Entalado por sogra, mulher e filho vermelhos - com que prazer utilizo palavra então suspeita... -, aceitava o seu estatuto minoritário com bonomia filosófica, afinal as hipóteses de alguém estar feliz domingo ao final da tarde eram maiores em nossa casa do que noutros lares.
Da sua relação com o Benfica recordo três momentos: o primeiro, a 22 de Fevereiro de 1962, tinha eu 12 anos. Os três e um de Nuremberga lançaram-me numa vertigem de descrença, recusei a velha telefonia e procurei cedo o refúgio do vale de lençóis. Aos cinco minutos de jogo entrou de rompante no quarto, sorriso aberto, 'levanta-se, homem de pouca fé!'. E eu, vazio de esperança, sem perceber de que falava. Já ganhávamos por dois a zero... Gozei os outros quatro na cama de minha Mãe, o maroto lia o jornal, oficialmente imperturbável, mas feliz pela alegria de quem amava.
O segundo veio por arrasto. Meu Pai não demandava as Antas há bastante tempo, mas, para surpresa geral, decretou desejar ver os campeões europeus. Tarde de sol, o Eusébio puxa a culatra atrás, só a vimos lá dentro. Então, como diria o Artur Albarran, o 'horror!, a tragédia!' - meu Pai levantou-se e aplaudiu, para de novo se sentar e dizer para os nosso botões 'o rapaz é um extraordinário jogador'.
(Extra)ordinária considerou tal atitude o portista do outro lado, além de portista, tripeiro dos sete costados, num misto de espanto e ameaça interrogou-o: 'Mas você afinal puxa por nós ou por eles, seu filho de uma grande p...?'.
A situação rapidamente se tornou caricata, com o meu Pai a declarar que se retirava para não voltar e eu a explicar-lhe que, na nossa cidade, algumas palavras são utilizadas como interjeições, logo, a honra da minha santa Avó não estava em perigo. A pergunta ficou sem resposta, o portista que a fizera não acreditava no diálogo daqueles dois extraterrestres e nós desaguámos no riso da minha Mãe, a quem ele laboriosamente explicou que o desportivismo entrara em extinção.
O terceiro foi em 1969, a 26 de Novembro. Zero a três em casa do Celtic, três a zero na 'Catedral', prolongamento inútil, o árbitro com fundados receios após invasão do relvado, tudo resolvido nas cabinas. Por moeda ao ar, senhores, por moeda ao ar...! E eu, já com 20 Outonos no bolso, não aguentei e meti-me na casa de banho. Os passos dele pelo corredor, de mau agoiro, por quase silenciosos e pausados. A face, que tudo dizia. O meu choro desamparado; o abraço; a sua confirmação, admiravelmente solidária, 'perdemos'.
Nunca lhe consegui agradecer como devia aquele plural."
Júlio Machado Vaz, in Mística
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